O Natal
O Natal brasileiro de que a minha mãe me falava, com
as indispensáveis idas à praia, nunca me entusiasmou. Ao falar desse natal, a
minha mãe não falava das idas ao musgo, da fogueira da praça nem do cantar dos
Reis. E disso eu gostava muito. Começava a pensar nele muito tempo antes, não
sei bem quanto, mas só quando chegavam a TIA e o tio Justino é que o Natal
começava realmente para mim. No dia seguinte à sua chegada, o meu pai, o tio Justino e eu íamos ao
musgo. Às vezes tinha pena de arrancá-lo, tão verde e tão fofo ele estava,
agarrado às paredes. Parecia veludo. Arrancado o musgo começava a construção do
presépio, essencialmente a cargo do tio Justino e da minha mãe. Eu colaborava
ativamente. Também os meus colegas de escola vinham muitas vezes ajudar.
Fazia-se no pátio de baixo. O tio Justino começava por empilhar várias cortiças
de modo a criar uma estrutura em relevo. Depois cobríamo-las com o musgo. Em
seguida, com areia fazíamos uns carreirinhos, ao longo dos quais iríamos
colocar várias figuras. Estas eram de barro pintado e tinham sido trazidas de
Viana pelo tio Justino. Também foi ele quem fez a cabana do Menino Jesus, com
uma cortiça virgem. Para além das figuras, da cabana e dos carreirinhos, havia
no presépio um lago, feito com um espelho envolvido de musgo, ao qual dava
acesso um regato que serpenteava ao longo da cascata e era feito com papel
prateado. Havia ainda uma fogueira feita com papel celofane vermelho, coberto
com galhinhos de lenha, e por baixo do qual se colocava uma lanterna acesa. Era
à volta desta fogueira que se colocavam os pastores. Presa do teto havia uma
estrela que iluminava os reis magos. Era de cartão coberta com papel dourado.
Para além do presépio, havia lá em casa uma árvore de
Natal, e creio que seria a casa de cima a única casa da TERRA onde tal
acontecia. A ideia da árvore de Natal tinha vindo com a minha mãe. Era feita
com um zimbrinho que era colhido no mesmo dia em que íamos ao musgo. Os
enfeites eram pompons de lã, coloridos, que eu fazia com a ajuda da Mininha, e
pequenos biscoitos que a minha mãe fazia com vários formatos de estrela, de
meia lua, de sino, de árvore. Na parte superior da árvore havia um grande laço
de seda arranjado pela minha mãe.
Mas o Natal era muito mais que o presépio e a árvore.
Era a ceia, sempre na CASA, até à morte da TIA. Comíamos todos à mesa- os meus
pais, a TIA e o tio Justino, a Germana, a Balbina, o António Joaquim e a
família. A ceia constava de bacalhau, polvo e pescada cozidos com batatas e
couves da TERRA, que têm um sabor diferente de todas as outras que eu conheço.
E tudo isto era regado com o azeite dourado das oliveiras, também da TERRA. Eu,
na altura, não apreciava muito essa comida mas sabia que depois vinham as
sobremesas. E dessas eu gostava. Eram as rabanadas, as filhós, os milhos doces,
o arroz doce, a aletria, os fritos de jerimum, os rochedos de amêndoa. No dia
de Natal, o almoço era na casa de cima. Invariavelmente era peru recheado com
farofa, acompanhado de arroz com amêndoas, passas e nozes. À sobremesa eram
doçarias brasileiras- quindins, bom bocado, docinhos de amêndoa, pudim de
laranja. Eu gostava de ajudar a fazer estas doçarias, particularmente os
docinhos de amêndoa. Eram feitos de véspera com uma pasta de açúcar, gemas e
amêndoa, que era introduzida dentro de cascas de nozes para ali secar. No dia
de Natal saíam das cascas docinhos de amêndoa com o formato de noz.
Depois do almoço eu ia sempre, com o meu pai e o tio
Justino, ver a fogueira na praça. Ainda hoje se faz a fogueira. Antes do Natal
os rapazes da TERRA vão pelas casas mais abastadas pedir lenha. As pessoas
indicam-lhe onde a podem ir buscar. Na véspera de Natal lá vão eles. Após a
ceia de Natal, lá pelas 10 h da noite, a lenha, grandes toros e raízes, começa
ser empilhada na praça, em frente à igreja. Em seguida acende-se a fogueira.
Levam-se umas chouriças para assar e assim, entre conversas, comendo chouriça
assada, os homens vão passando a noite. Se há Missa do Galo, vai-se à Missa.
Caso contrário por ali se fica até passar da meia-noite. A fogueira manter-se-á
acesa por vários dias, enquanto a lenha durar. As mulheres não participam deste
evento. Podem ir ver, passar algum tempo, mas é uma prática essencialmente
masculina.
Outra boa recordação que tenho da época natalícia é o
cantar dos Reis. Aí participam crianças e jovens que vão de porta em porta
cantando. Lembro-me particularmente de alguns excertos de duas canções de Reis.
Uma delas era:
Dai-nos
leitão e cabrito,
arroz
doce e marmelada,
dai-nos
vinho de há cem anos
já
não vos queremos mais nada.
Trigo
e nozes e marmelada,
lombo
de porco, vitela assada,
pão
com manteiga, chá ou café
e
o Deus Menino nascido é.
A outra, era a última a ser cantada:
Ao
carrasco de Lisboa já lhe caiu a bolota
Se
nos querem dar os Reis venham-nos abrir a porta.
E as portas abriam-se e lá vinham as nozes, a
marmelada, os figos, as chouriças. Eu gostava muito de cantar os Reis em todas
as casas mas, muito em especial, na casa de cima. A minha mãe preparava uma
cesta com uns embrulhos feitos em papel de seda com uns grandes laços. Cada um
retirava da cesta um embrulho. Era bonito, pela surpresa. Lá dentro podia haver
caramelos de leite (que ela fazia tão bem), biscoitos iguais aos da árvores,
docinhos recheados com amêndoa, pé de moleque. Eu ficava muito feliz até porque
me parecia que a minha mãe também estava feliz.
Regina Gouveia
(Excerto de Estórias com sabor a Nordeste)
3 comentários:
Encantador relato de rituais que me levam à minha infância.
Parabéns, Regina Gouveia
Obrigada Odete Ferreira
Votos de um Feliz 2018
Regina
Agradeço e retribuo, destacando que o 2018 se cumpra em conformidade com os seus desejos.
Bjinho, Regina
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