10 dezembro 2012

O Rio da Amargura


Maria Hercília Agarez apresenta O rio da amargura (Diário de Mercedes), de Eurico Figueiredo, no dia 14 de Dezembro de 2012, pelas 21h00, no Auditório da Biblioteca Municipal Dr. Júlio Teixeira (Vila Real).

12 novembro 2012

ARS VIVENDI, ARS MORIENDI



Notas biográficas

    A vida de Amadeu Ferreira (este nome lhe coube em 1950, em Sendim) é como uma montanha de difícil e penosa escalada a oferecer sempre mais obstáculos e perigos a quem tem a veleidade de lhe atingir o cume. Só os fortes resistem, só os obstinados não desistem. Páram para tomar fôlego. Cada etapa da aventura tem a sua duração, os seus escolhos. Foi longa a caminhada ascendente de Amadeu. Mas ele tem a força física e anímica dos rijos transmontanos, desses “homens de granito” que se negam a torcer. Que, quando no longe põem a boina basca, ao modo de Bento da Cruz, acariciam a cabeça com um cibo de aconchego transmontano.
    Para trás e para longe ficou o seminário, a construção civil, a tropa em Mafra, o emprego em adega corporativa, os estudos de Filosofia e de Letras, primeiro no Porto, depois em Lisboa. Aí acabou por fixar-se. Envolveu-se activamente na política e foi, de raspão, deputado pela UDP. Licenciou-se em Direito e trabalhou em publicidade. Publicou livros. Fez o mestrado, agora o doutoramento. É presidente da Associação de Língua Mirandesa na qual tem escrito poesia, conto, histórias infantis, romance. Traduziu escritores latinos, os Lusíadas, os quatro evangelhos. É professor auxiliar convidado na Faculdade de Direito de Lisboa e vice-presidente da Comissão do Mercado de Valores Imobiliários. Vice-presidente é também da Academia de Letras de Trás-os-Montes. Chegou como partiu – simples, despretensioso, afável, bom conversador.  Amadeu e Francisco, duas faces da mesma moeda. O homem e o artista.

    Escreveu um autor latino que “os poetas e os reis não nascem todos os dias”. Porque, segundo Francisco José Viegas “A poesia não tem a ver com a literatura. Releva do domínio do sagrado indizível”. Porque, como diz Torga, “Os poetas são como os faróis: dão chicotadas de luz na escuridão”.
    São incontáveis as abordagens do complexo fenómeno da criação poética pelo que ela encerra de misterioso, de oculto, de enigmático, de profético, de revolucionário, de metafísico, de iniciático, de ambíguo, de plurissignificativo, de imprevisível – “um poeta nunca sabe quando um verso lhe é dado”, disse o Orfeu Rebelde. Pela magia das sugestões imagéticas e eufónicas, pela harmonia e o ritmo e a prosódia, pelo tratamento dado às palavras que são, para Eugénio de Andrade como para qualquer poeta, “como o cristal”. Pela singularidade de uma manifestação artística nascida de corações sensíveis, aparentemente frágil mas que atravessa, altaneira, tempos e espaços a caminho de uma eternidade que é para os homens escondidos atrás dos poetas compensação para a efemeridade das suas vidas.
    Na introdução da colectânea A Rosa do Mundo – 2001 poemas para o futuro, Hermínio Monteiro, transmontano precocemente desaparecido, escreve: “ Há muitos e muitos milhares de anos, a poesia aproximou-se do homem e tão próximos ficaram, que ela se instalou no seu coração. E começaram a ver o mundo conjuntamente estabelecendo uma inseparável relação que perdurará para sempre. (…) Com um pequeno gesto, os poetas soltam o seu pólen que, levado pelas palavras vai eternamente fecundando os arcos da beleza que erguem o universo e o põem em comunicação com Deus”.
   
    O grande poeta Eugénio de Andrade introduz a ANTOLOGIA BREVE com uma espécie de aviso, de esclarecimento. Parece recear que os seus eventuais leitores não valorizem devidamente a sua arte e, por isso, esclarece, pondo a tónica naquilo que opõe o cidadão comum ao poeta, naquilo que singulariza este, guindando-o a alturas para outros inalcançáveis:

    O acto poético é o empenho total do ser para a sua revelação. Este fogo de conhecimento que é também fogo de amor, em que o poeta se exalta e consome, é a sua moral. E não há outra. Nesse mergulho do homem nas suas águas mais silenciadas, o que vem à tona é tanto uma singularidade como uma pluralidade. Mas, curiosamente, o espírito humano atenta mais facilmente nas diferenças do que nas semelhanças, esquecendo-se, e é Goëthe quem o lembra, que o particular e o universal coincidem, e assim a palavra do poeta, tão fiel ao homem, acaba por ser palavra de escândalo no seio do próprio homem. Na verdade, ele nega onde outros afirmam, desoculta o que outros escondem, ousa amar o que os outros nem sequer são capazes de imaginar.

    Muitos são os registos poéticos em que o autor fala da sua concepção de poesia, da importância de que esta se reveste na sua caminhada. Para Pires Cabral, em “O Navio dos Loucos”, in Douro: Pizzicato e Chula afirma: A bordo duma nave, alguns poetas detentores, como todos os da espécie, do seu pequeno gene de loucura e em “Poetas e Deuses” (título expressivo) in Cobra-d’ Água faz um convite:

                        Vede: um poeta em exercício.
                        Dir-se-ia que algum deus equilibrista
                        Trepou por ele acima e se empoleirou nele.

                        Ei-lo: exposto como um Cristo a que caísse
                        O pano do pudor.

                        Abrasado em chamas que se presumem sagradas,
                        E que não ardem somente, mas também alumiam
                        O próprio poeta e os seus arredores [...]

    Florbela Espanca considera o poeta “maior do que os homens”, metaforizando-o: [ser poeta] é ter garras e asas de condor”
                       
    Francisco Niebro apresenta-nos a poesia como algo vital, quase como uma necessidade biológica, como “um nada que vale tudo”:

                        São nadas os poemas
                        a que me agarro em todas as coisas:
                        sem eles, onde meteria
                        o fogo que me queima?
                        sem eles, onde enterraria
                        a morte que me mata?
                        sem eles, como aprenderia
                        o ofício de viver a cada dia?

                        quando descobri que não sou mais que nada,
                        descobri também que só nadas me podiam valer;

                                   depois disto, dizer que poemas são
                                   literatura, é um puro engano.


    Vamos, então, ao que aqui nos trouxe: a apresentação de um livro de poesia de Francisco Niebro que muitos vila-realenses conhecem pelo nome de Amadeu Ferreira, aquele homem que encheu, há tempos, uma sala do Museu da Vila Velha e a alma de quantos o escutaram a falar da menina dos seus olhos – a língua mirandesa: uma língua que quase ninguém fala e muito poucos/sabem que existe, nem por isso deixa de ser um pilar/ do mundo, pequeno, é verdade,/ mas são sempre pequenas as fendas/ por onde começam as grandes ruínas..
 Interpreto a minha presença aqui, investida desta responsabilidade, como um erro de casting, como está na moda dizer. Pelo que atrás ficou exposto, ou seja, pela singularidade e transcendência da criação poética, considero que só um poeta está à altura de falar doutro poeta. Porque falam a mesma língua. Porque têm a mesma percepção dos meandros do fenómeno poético, das suas exigências, do trabalho de oficina que exige. Porque comungam, tratando-se, como é o caso, de poesia lírica, das mesmas angústias e insatisfações, dos mesmos apelos, das mesmas convocações.
    O tempo de que dispus para apresentar este livro teria sido suficiente se cada poema se contentasse só com uma leitura. Para mim, o que distingue versos de poesia é que o sentido dos primeiros é unívoco, linear, entendível, e não nos deixa margem para reflexão, para recolhimento, para busca de subentendidos. Versos não têm entrelinhas.
     Esta colectânea é rica desde o título. Contornando o desconforto de nomeá-la também em duas línguas, o autor recorreu ao comum latim, aqui com sonoridades doces, cantantes.
    É sob o signo da morte, seguido do da velhice, sua normal antecessora, que o livro começa, em abordagem de temática que, na nossa literatura, nos acompanha desde a lírica trovadoresca: “Nen ey barqueiro nem sey remar / e morrerei fremosa no alto mar!”
Num primeiro recurso à mitologia pagã, Niebro, um clássico moderno, invoca Orfeu e a melodia da morte que sai da sua lira para, em jeito de consolação para os mortais, lembrar que “Os próprios deuses estão já feridos de morte”. E a si próprio se conforta, mais adiante: “estão vivos os meus mortos, […] sem eles onde é que o futuro havia de /deitar raízes?”
    Quanto à velhice, aquela ameaça negra que em vão se escorraça, assume em É TRISTE SER VELHO 1 (p. 18) um duplo sentido. Se, por um lado, “tudo fazemos para esconder a morte / e mais ainda para negar a velhice”, esta tem, sobre as outras fases da vida, uma particularidade: “- bem vês, a velhice é a única idade / de que nunca vamos ter lembranças ou saudades.”
   A encerrar o poema que se segue (p. 20), um conjunto de três versos funciona como chave de ouro a abrir um conselho ditado pela experiência e pelo bom senso:

                        Se o vento te empurrar para o beco
                        Da velhice, não tenhas medo:
                        Basta que te respeites até ao fim.

    Na impossibilidade de referir todos os poemas (alguns com características de prosa poética pelo seu pendor narrativo), começarei por enunciar as principais recorrências temáticas de que me apercebi (para além das atrás referidas – morte-velhice - e que integram o autor no rol dos escritores transmontanos ciosos preservadores da sua transmontaneidade. Pelo seu telurismo, pela forte ligação que mantém com as raízes rurais, pelo fascínio que nele exercem as paisagens física e humana da sua região natal, donde ressalta o belo planalto mirandês. Dividido, por razões profissionais, entre as berças e a capital, é notória a sua necessidade de regressar à simplicidade da “pax ruris”. Ao chegar à aldeia encontra ruas desertas, casas abandonadas – “as casas encostam-se de arrimo entre si” -, de janelas fechadas e com teias de aranha, seco o olmo do quintal, “campos sem cultivo”, ausência de cotovias. Ausência de vida, de movimento, de trabalho. Presença inalterada, nítida, de marcas da infância: “é aqui o sítio da memória, a que também chamamos casa […]/ é a memória essa casa a que sempre voltamos”; “o que sou hoje é como o sol a romper pela sombra/ do casebre”.
    Além da dicotomia cidade-campo, encontra-se, também, a de passado- presente a acarretar consigo, inevitavelmente, a saudade de uma infância, por mais dura que tenha sido. Francisco é, ele o diz algures, um homem que não chegou a ser menino, remetendo-nos, assim, para os garotos dos telhais, protagonistas de Esteiros de Soeiro Pereira Gomes.
    Apesar disso, é com ternura poética que evoca tempos longínquos. É a idade mágica de todas as descobertas, de todos os sonhos:

                        quando eu era criança ficava horas a ver as andorinhas
                        a trazer barro para fazer o ninho e a moldá-lo com o
                        peito;
                        depois os filhotes de boca aberta à espera de
                        comida,
                        e elas num voo sem destino a alongar a tarde. […]

    O regresso à infância surge mais adiante numa belíssima desmontagem do poema “Aniversário” de Álvaro de Campos. Confessando que, para compreender este heterónimo de Fernando Pessoa, tem de o ler ao contrário, o poeta apresenta-nos o resultado de um desses exercícios que consiste em negativar a positividade, donde resultam antíteses como alegria/ tristeza, riqueza/ pobreza, vivos/ mortos, luxo/ simplicidade, conforto/ desconforto. Vejamos:

    Álvaro de Campos:

                        No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
                        Eu era feliz e ninguém estava morto.
                        Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
                        E a alegria de todos, e a minha, estava certa como uma religião
                        Qualquer. […]

Francisco Niebro

                        No tempo em que ninguém festejava o dia
                        dos meus anos,
                        Eu não sabia o que era ser feliz, nem se alguém
                        estava morto.
                        Na velha e pobre casinha, ninguém se lembrava
                        de fazer anos,
                        E andavam tristes, às voltas com uma vida de infinita
                        dureza.[…]
                       

     Seguindo a ordem dos textos, passarei a comentar alguns dos que me mereceram maior atenção nomeadamente pelas intertextualidades que sugerem. A página 34 leva-nos em viagem à capital onde o nosso poeta veste a pele do Cesário Verde de “O Sentimento dum Ocidental” de quem Alberto Caeiro tem pena por achar que “ele era um camponês/ Que andava preso em liberdade pela cidade”. Torga, fora de S. Martinho, sentia-se “uma montanha comprimida”.
    Escreve Francisco Niebro:

                        […] do outro lado, numa vitrina,
                        uma televisão fala de impostos
                        e de crise: dá-me esta Lisboa
                        um absurdo desejo de sofrer:[…]

    Dois poemas, apenas, constituem A MORTE DA HORTA. De novo o homem do campo, familiarizado com os respectivos trabalhos feitos ao sabor das estações nem sempre cumpridoras dos seus horários. Sementeiras, enxertias, plantação de árvores. Em tudo o camponês põe a sua sabedoria ancestral, o seu rigor e, até, o seu carinho:

                        [...] o coto do sacho a abrir
                        A cabeça dos torrões,
                        A alisar a terra como quem faz um ninho […]

    A comparação do último verso conduz-nos, por analogia semântica, a “Bucólica” de Torga: Meu pai a erguer uma videira/ como uma mãe que faz a trança à filha.

    Estamos perante a Terra Mater em cujo ventre crescem as sementes. O lavrador que a fecundou aguarda uma primavera que há-de parir “como quem espera a donzela / após o dia da descoberta da paixão. Terra Mãe, mas também Terra Filha: “talvez só tu no mundo / transportes a horta ao colo”.
    Campo. Trabalho. Terra. Horta. Searas. Ninhos. Poço. Roupa de burel. Carros de lenha. Alfaias agrícolas. Castanhas. Bestiário: cigarras e formigas, melro, cotovias, gafanhotos, andorinhas, cavalos, coruja, mosquitos.

    Uma realidade social está, embora veladamente, associada a esta: aldeias quase desertas, velhos teimosos medindo forças com a terra e com os anos, abandono, solidão. Partiram os novos. Voltarão eles?

                        […]
                        - pode ser que os filhos ainda venham pelas batatas
                        tu acreditas, ó mulher?

                        -vamos mas é andando para casa,
                        enquanto a velhice não desperta
                        e as pernas não vacilam.

    Em DOIS GRITOS COM ECOS DE TEMPO deparamos com o transmontano cioso da sua identidade e revoltado, à moda de Torga e de Garrett, contra o abandono a que estão votados monumentos arquitectónicos. Primeiro temos, “na sua altivez de pedra”, o castelo de Outeiro de que restam “picos de penhascos que o tempo afiou”, a seguir o castelo de Algoso que “ao longe parece uma chaminé / por onde fumega a lareira do tempo”. “Do alto e de dentro avista-se / um ermo mundo, calado, só, abandonado / ao matagal.”
    E voltamos ao campo dos enxertos e das plantações com PEQUENO TRATADO DA ARTE DA ENXERTIA. Sete poemas desafiam-me a escolher um deles. Elejo o terceiro. Pela concisão, pela sobriedade, por poder ele ilustrar um outro de LÍNGUA.

                        hei-de plantar uma oliveira no quintal
                        pedir ao mundo que não lhe faça mal:
                        mil anos depois, talvez mais,
                        ainda os meus olhos se debruçarão à janela das suas
                        rugas
                        e em cada outono hão-de passar por negras azeitonas;

                                   com as oliveiras aprendo a zombar do tempo,
                                   mas a lição é muito difícil de aprender.

    Se repararmos, o poema vive sobretudo do nome (substantivo) e do verbo porque Niebro desdenha dos qualificativos, como declara, com um sentido de humor que também cabe nos seus versos, no seguinte texto que vai ser lido pela Paula Fortuna. (p.148)

                        é difícil resistir à tirania erótica dos adjectivos,
                        arrepio de prazer quando rebentam em som,
                        orgasmos sem conta pela garganta acima:

                        - certos adjectivos só deveriam ser usados com
                        preservativo,
                        e depois de longos preliminares;

                        - há adjectivos em que o uso é uma declaração
                        de guerra,
                        material de terrorista:
                        aí, a paz tem o nome de silêncio;

                        são piores que a grama,
                        é quase impossível acabar com eles,
                        pois é mais difícil resistir-lhe
                        que às mais fortes flechas de Cupido.

    Não querendo alongar-me, cabe-me referir a parte final do livro composta por haicais, espécie de teste (nada fácil) à competência poética do autor. Porque, aparentemente simples, esta forma de poesia, de remota origem japonesa e vulgarizada entre nós na transição do século dezanove para o seguinte por Venceslau de Morais e por Camilo Pessanha, constituída por um total de 17 sílabas (5­ nos 1º e 3º versos, 7 no terceiro) exige uma capacidade de condensar em tão pouco espaço a expressão de percepções sensoriais de temática em geral ligada à natureza. É a poesia mais depurada que existe. Cultivá-la é fazer como diz Carlos Drummond de Andrade: “Escrever é cortar palavras”. Apreciadora de Bashô Matsuo, poeta japonês do século XVII, talvez o mais conhecido cultor deste tipo de poesia, Isabel Alves vai-nos ler algumas destas desconcertantes simplicidades a que Niebro chama “pedrinhas”.
……………………………………………………………………………………………………
    Caracterizar esteticamente a poesia de Francisco Niebro é começar por pôr em destaque a sua originalidade, a especificidade dos seus poemas. Neles sentimos o extravasar sem peias de emoções, sentimentos, reflexões, frustrações, sonhos, constatações. O pensamento flui como rio sem diques, espraia-se ao correr das teclas do computador, indiferente a ditames estéticos. Se saem versos, sai poesia, se sai prosa, também. Muitos dos textos têm um carácter narrativo e fazem com que o leitor se sinta, antes, ouvinte. Outros tem implícito um destinatário, um tu que pode assumir diferentes identidades. Outros, ainda, são centrados no próprio eu, reflexivos e introspectivos, reveladores de uma mundividência rica e plural.

    António Fortuna vai ler um soneto vestido à moderna, de ressonâncias regianas (p. 110)


                        para que havia de querer um mapa?
                        sei bem de onde venho, onde estou,
                        que quero sei, mas não por onde vou,
                        calmo no que faço; destino? Foje-

                        -me; ao fim do dia nunca presto atenção
                        aos ardores que me sobraram de um sonho
                        que tive noutro tempo, era ainda moço,
                        agora queimado, seco, quem diria

                        se era tudo tão solto como um voo,
                        pesado como haver vontade de pão,
                        Ícaro erguido em força, como um deus;

                        pousei em jeito de abutre e, prisioneiro,
                        só, comigo sonhos vêem, sonhos vão,
                        enquanto calor procuro dentro dos frios.


    Caro Amadeu. Tempo de Fogo rendeu-me à sua prosa. Este livro rende-me à sua poesia porque não é mais um qualquer, é um diferente, inovador, nascido do talento e não de um tratado de versificação. Como escreveu Eça de Queiroz em Prosas Bárbaras, os poetas “podem contemplar as estrelas, enquanto os bichos sociais se devoram na sombra.”

                                   Maria Hercília Agarez, Vila Real, 10 de Novembro de 2012

Nota: este texto não obedece ao novo acordo ortográfico.

16 outubro 2012

III Fórum João de Araújo Correia



 





III Fórum João de Araújo Correia
20 de Outubro, Museu do Douro – Régua


Tema – João de Araújo Correia – Um homem do seu tempo?

10:00h – Receção aos participantes. Sessão de Abertura

10:30h –  1º painel

Moderador –  Helena Gil
António José Queiroz - O tempo (político) de João de Araújo Correia
    
José Braga Amaral - João de Araújo Correia - Um raríssimo homem em cada tempo do seu tempo

Ana Maria Ribeiro - Para além dos clássicos: os escritores contemporâneos de João de Araújo Correia na biblioteca do autor

12:30h - Debate                                   


Almoço



14:30h – Visita à sala/museu do escritor no Museu do Douro
                Exposição Biobibliográfica de João de Araújo Correia (gentileza da DRCN)
                Leitura dramatizada de textos do escritor

15:00h – 2º Painel

Moderador  -  Damas da Silva

Hercília Agarez - Como ele os estimava! Personalidades dos campos intelectual e afetivo de João de Araújo Correia.

Manuel Martins de Freitas - O convívio de João de Araújo Correia com outros notáveis conterrâneos



 (No final será servido um vinho fino de honra)








 










 












08 outubro 2012

O Jornalista Republicano Alves Correia


Grémio Literário Vila-Realense


MC900360696[1]


Notícias das Letras

O JORNALISTA REPUBLICANO ALVES CORREIA - ANTOLOGIA

António Narciso Rebelo Alves Correia, nascido em Vila Real em 25 de Maio de 1861, foi um dos maiores jornalistas portugueses dos tempos pré-republicanos, a par de João Chagas e Brito Camacho. Grande propagandista do ideal republicano, escreveu textos de grande contundência (e grande actualidade, acrescentaríamos nós) nos jornais Folha do PovoO SéculoOs Debates, A Vanguarda e O País.
Atento o seu papel em prol da República (que não chegou a ver, pois morreu em 1900), o Grémio Literário Vila-Realense decidiu publicar uma antologia de textos jornalísticos de sua autoria, tendo confiado a selecção, contextualização e estudo introdutório ao Prof. Doutor Ernesto Rodrigues, docente da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, e também ensaísta, poeta e romancista, natural de Torre de Dona Chama, Mirandela.
A publicação, que constitui o nº 25 da Colecção Tellus, foi apresentada ao público em 13 de Setembro último pelo Prof. Ernesto Rodrigues, presidente da ALTM.

05 setembro 2012

Relações Luso-Húngaras. Exposição

17 agosto 2012

APRESENTAÇÃO de TRÁS-OS-MONTES de TIAGO PATRÍCIO

M. Hercília Agarez

1.       O HOMEM
    É uma das revelações/surpresas da actual literatura portuguesa. Parece ter sido fadado para a escrita, imposição íntima que o fez abandonar a Escola Naval, a profissão de farmacêutico, o sonho da medicina, a vida rotineira e aburguesada do ordenado fixo. Do mar do Funchal, das flores cosmopolitas da ilha, veio, ainda não pelo seu pé, para a dureza do mar de pedra, para a simplicidade da esteva, do rosmaninho, da urze. E dessa interioridade partiu por exigências académicas, não sem antes ter deitado à terra transmontana raízes difíceis de arrancar. Costuma dizer-se que se pode tirar um transmontano a Trás-os-Montes, mas não Trás-os-Montes a um transmontano.
   É o próprio que o confirma em entrevista à revista Ler de Junho de 2012, a propósito do seu romance de estreia, prémio revelação Agustina Bessa-Luís: “Tudo começou em Trás-os-Montes, o lugar onde reside a matriz da minha infância e a memória primeira que permanecerá até ao fim.”
    Tiago é um andarilho e, como tal, um curioso ávido de aumentar saberes e de acumular experiências. Frequentou cursos para jovens criadores. Em Praga, entre as árvores do Outono eslavo e as neves das margens do Danúbio, nasceram Cartas de Praga e Checoslováquia, uma obra dramática apresentada no Teatro Nacional de D. Maria II. No verão de 2007, na Tunísia, preparou o Livro das Aves.
    Em Lisboa, a quinze de Novembro de 2009, “um dos filhos imaginários torna-se real às cinco da tarde” e fá-lo sentir-se “um homem novo” saudado pelas outonais folhas ocre das Avenidas Novas. Em Lisboa, a escrita, “uma actividade perigosa” a requerer evasões. E, também, uma residência artística na Cadeia do Linhó, a orientação de um curso de poesia no Hospital Psiquiátrico do Telhal, a colaborações com companhias do teatro: saberes repartidos em espírito solidário. Presumimos que, para além da expressão escrita, também é exímio na gaita-de-foles com a qual surge, com cabelos compridos de homem-menino, numa página do JL de Maio passado.
   

   
 2. A TERRA
    Ao proferir, em 1941, nas Pedras Salgadas, no decurso do Segundo Congresso Transmontano, a conferência “UM REINO MARAVILHOSO” (Trás-os-Montes), Miguel Torga caracterizou, com o seu proverbial telurismo, uma região ainda hoje conotada com atraso civilizacional. A este documento ímpar, acrescente-se uma comunicação talvez menos conhecida que completa e enriquece a anterior: trata-se de “Trás-os-Montes no Brasil”, apresentada em 1954 no Rio de Janeiro e em S. Paulo. Dois documentos histórico-literários escritos de forma magistral e onde, se algum pormenor físico ou humano lhe escapou, foi a referência à riqueza intelectual albergada em terras inóspitas e desprotegidas de bênçãos governamentais. Aí pode ler-se:
“O destino quis que houvesse no topo da pequena leira lusíada uma costeira onde tudo tivesse carácter e dignidade. Que a vista disfrutasse dali perspectivas originais, que a enxada patenteasse na dureza dos torrões a dureza do aço, que o fole do peito se enchesse por inteiro a cada respiração, e que todos os seres nados e criados num tal ambiente estivessem à altura destas premissas. E Portugal encontrou em Trás-os-Montes o seu telhado, a lousa que lhe resguarda as virtudes, a saúde física e moral, a tenacidade mourejadora, a pureza dos costumes e a expressão mais nobre e acabada das feições interiores. […]
                Percorra-se o planeta. Onde estiver um transmontano está qualquer coisa de específico, de irredutível. E porquê? Porque mesmo transplantado, ele ressuma a seiva de onde brotou. Corre-lhe nas veias a força que recebeu dos penhascos, hemoglobina que nunca se descora.”

    Trás-os-Montes não é uma região desconhecida, é, sim, uma região mal conhecida. Apesar dos progressos viários e da rapidez da comunicação, não falta quem veja este território apenas como uma série de sedes gastronómicas: Mirandela, para a alheira, Chaves, para o folar, Lamego, para o presunto, Miranda para a posta, Vinhais, Montalegre e Boticas para o fumeiro, Vila Real para as tripas aos molhos ou para as cristas de galo. É redutor, convenhamos!
    Aliás, esse sobranceiro olhar de esguelha para os que por cá nada mandam, contrariamente ao que apregoa o provérbio, encontra-se, já, no Amor de Perdição onde um Camilo ressabiado e com as costas ainda a gemer das bordoadas que por cá mereceu, pôs na boca de D. Rita, em 1784, ao chegar a Vila Real, esta pergunta: “Em que século estamos nós nesta montanha? (…) Cuidei que o tempo parara aqui no século doze…” E ainda disse, saudosa da corte, que “os fidalgos de Vila Real eram muito menos limpos que os carvoeiros de Lisboa.
    Não há muito tempo, acompanhando, via televisão, uma entrevista com um realizador de cinema português, explicou o dito que uma das personagens femininas e jovens do seu filme em rodagem tinha partido para Trás-os-Montes onde passaria o tempo necessário para engordar e adquirir um ar saloio. Espera-se que a menina, feita cachopa, tenha ido sebada a contento…
    Em contrapartida, e indo ao encontro de um escritor que, segundo o nosso autor, foi uma das suas matrizes de escrita – Vergílio Ferreira- permitam-me a leitura de excerto de uma entrada de um dos volumes do seu Diário, Conta-Corrente:

    “E a certa altura da conversa no jantar, voltei à minha teoria da distribuição geográfica dos nossos génios literários. E observei uma vez mais que eles se concentram no norte do país, sobretudo em Trás-os-Montes. Assim: Camilo (nascido em Lisboa mas contagiado no norte), Guerra Junqueiro, (…) Pascoaes, Raul Brandão, para não falar dos ainda vivos. (…) Tenho uma teoria para explicar isto. Não tenho pachorra para a expor”.
    Não vamos enumerar os escritores da região transmontano-duriense, do passado e do presente, mas temos gosto em reconhecer, entre os vivos, autores com obra consistente, qualitativa e quantitativamente, a viver, teimosamente, nas berças ou delas falando nas suas obras. Correndo o risco de falhar algum que mereça referência especial, avançamos os nomes de A.M. Pires Cabral, António Modesto Navarro, Bento da Cruz, Rentes de Carvalho, Luísa Dacosta. E se Tiago Patrício, tendo em Carviçais vivido até aos 19 anos, mantiver vivas as ligações à terra, aumentará, com todo o mérito, o rol. Tal como os apontados, não será um escritor regionalista, rótulo que alguns se apressam a colar levianamente em escritores cuja obra demonstra que, usando palavras de Torga, “O universal é o local sem paredes”.
2.       A OBRA
    O título de uma obra literária obedece, por vezes, a uma estratégia de marketing. Tem de ser apelativo, de preferência conciso (concisão não do agrado de Lobo Antunes, por exemplo), expressivo. Há nomes, e capas, e títulos, e críticas que vendem livros, mas para um escritor, mais importante que a magra percentagem que lhe cabe, conta a certeza de ser lido. Eu, confesso, fui logo atraída pelo nome do romance. Seguiram-se as críticas e a encomenda, na Livraria Branco, com quem já celebrei as bodas de ouro…
    Tiago Patrício afirma que, embora a acção se passe entre duas aldeias do concelho de Torre de Moncorvo, locais onde andarilhou a infância e a adolescência, ela poderia ter outros cenários, inclusivamente o nordeste brasileiro. Em entrevista, esclarece ter-se o livro chamado O Cair da Noite, nome escolhido, e bem, no meu entender, pelo fascínio que exerce na pequenada esse momento de semi-obscuridade criador de clima de mistério. Uma semelhança quase total com outro título publicado em Portugal inviabiliza a opção e empurra-o (ou empurram-no) para Trás-os-Montes: “resisti até ao fim porque não queria denunciar o sítio.” A verdade é que são constantes as marcas de ruralidade, e escassas as de transmontaneidade.
    Seja como for, aquelas gentes miúdas e graúdas movem-se bem naquele espaço de interioridade agreste, naquela região mítica onde o autor cresceu e se fez homem. Ao perpetuar as suas reminiscências da vida rural transmontana hoje semi-urbanizada e a perder, de dia para dia, os seus traços identitários, Tiago acaba por homenagear, assim o entendo, esse naco de Portugal onde nasceram gentes “que desde sempre andaram pelos caminhos do mundo sem quebrar a ligação à terra de origem” no dizer de Adriano Moreira.
   Mas vamos ao livro. Além da sinopse, que me atraiu pela identificação da temática abordada, agradou-me o estilo logo na primeira página. (leitura). E fiquei rendida. E aqui estou, numa dupla função em que o autor quis investir-me: como representante da direcção da Academia de Letras de Trás-os-Montes (para o que me bastaria uma passividade de palavras parcas) e como apresentadora (obrigada, Tiago, pelo desafio). E, nesta qualidade, cumpre-me transmitir as minhas considerações sobre o livro, correndo o risco de não corresponder às expectativas. A tarefa não é tão fácil como pode parecer. Retirando as páginas de rosto e as extra textuais, o romance tem apenas 137 páginas, contra 400 do original. (“escrever é cortar palavras”). Só que a densidade da narrativa obriga a uma leitura atenta e reflexiva, não permitindo “saltos” de capítulos porque todos encerram elementos fundamentais para a compreensão do comportamento das personagens, sobretudo das infantis, verdadeiras protagonistas, investidas na função de surpreender e de desconcertar o leitor.
     A infância e a adolescência continuam a fascinar os escritores. Em alguns dos últimos livros que li, encontrei crianças e jovens cativantes e bem delineados. Por exemplo: o narrador de Somos todos um bocado Ciganos, de Manuel Jorge Marmelo, um menino de circo pobre, sonhava ter uma mota e fazer gemer as mulheres; Duarte, de O Teu Rosto Será o Último de João Ricardo Pedro, era um exímio beethoviano, mas sonhava com a vitória do Sporting na taça dos Campeões Europeus; Sabalu de Teoria Geral do Esquecimento de José Eduardo Agualusa, um órfão de 7 anos a viver na rua e que salvou uma idosa abandonada a si própria diz: “Como posso ser criança longe da mão de minha mãe?” Em Retorno, Dulce Maria Cardoso cria põe a narração na boca de um Rui frases tão saborosas como esta: “Os familiares da metrópole eram-nos ensinados pela mãe como matéria da escola ou da catequese”. E, recuando no tempo, por associação de ideias, fui ao reencontro de Gaitinhas, Maquineta, Sagui, Malesso e Gineto, pequenos operários sem escola nem infância, “vagabundos nas horas vagas”,criados por Soeiro Pereira Gomes em Esteiros, essa obra de referência do neo-realismo português. E, como que por magia, fui encontrar em Agostinho da Silva esta quadra:

Mais que tudo quero ter
Pé bem firme em leve dança
Com todo o saber de adulto
Todo o brincar de criança.

    Tratando-se, embora, de uma obra de ficção romanesca, a sua estrutura afasta-se do tradicional, ou seja, em vez de uma intriga principal a que se agregam intrigas secundárias com ela relacionadas, evoluindo, uma e outras, para um desenlace mais ou menos esperado, de acordo com as peripécias, aqui vamos encontrar uma série de episódios em sequências narrativas protagonizadas cada uma, por uma das crianças, acolitada pelas restantes e partilhada, sempre que oportuno, por adultos familiares. Os quatro miúdos a rondar os dez anos de idade funcionam, mais para o mal do que  para o bem, como um todo coeso, como uma equipa, partilhando as suas “riquezas” (a bicicleta nova do mais rico, a lanterna do avô do mais pobre, a espingarda de pressão do avô do remediado), a sua imaginação, os seus atributos físicos, a sua capacidade de “desenrascanço”, a sua curiosidade pelo funcionamento do mundo dos adultos que pretendem imitar. O suspense, neste romance, consiste em criar um clima de expectativa que consiste em saber quais os limites daquelas crianças, até onde pode levá-las a ânsia das descobertas, o espírito de destruição, a criatividade, a necessidade de realizarem experiências novas, a obsessão de se autoconhecerem, de dimensionarem a morte.
    Tudo isto, e mais ainda, transforma a ficção num manual de aprendizagens, num compêndio de psicologia infantil. Com efeito, estes ganapos são imprevisíveis, sobretudo quando põem à prova instintos perversos, mas próprios da idade, como a perseguição e a morte de animais, o engenho de chantagem, o espírito de vingança. Atingem as suas acções, por vezes, uma crueldade desarmante a obrigar o narrador, numa atitude morigeradora, a encontrar para cada criança um desenlace com sabor a castigo.
    Mais do que o espaço e o tempo contam, nesta original narrativa, as personagens, pela sua faixa etária, pela sua mundividência, pela poesia que delas se desprende, aqui e acolá, pela sua ingenuidade reguila, pela ternura que nos despertam e até pelo desafio que lançam à nossa capacidade de tolerância. Se bem que o autor da obra lhes tenha destinado um espaço de interioridade rural e lhes tenha atribuído ligeiras diferenças sociais, estas crianças são intemporais e universais. A fantasia e o sonho comandam as suas vidas. O tempo livre, para além da escola, e a pacatez do quotidiano aldeão, dão-lhes asas para grandes voos, para aventuras sem limites para o risco, para conluios cúmplices.
    Sem querer desvendar o destino de cada um, passo as adiantar alguns dos seus traços característicos.
    Teodoro é o filósofo do grupo. O melhor aluno da escola, um teórico que “via tudo pelos olhos dos outros”, incapaz de organizar ideias novas. “Era um actor que decorava bem o papel, mas não sabia o que estava a dizer.” Vive obcecado com a sua identidade. Receia um dia cruzar-se com outros Teodoros e, se tal acontecer, não saber ao certo quem é. O mais humilde de todos, vive numa casa pobre, em pedra escurecida pelo fumo e de telha vã. Nunca viu o mar. Tem propensão reflexiva e gosta de saborear as palavras: “Entretanto Teodoro lembrou-se dos pais, que nem todos os anos vinham a casa passar o mês de Agosto, especialmente do pai, de quem se lembrava cada vez menos. Ficaram-lhe apenas algumas palavras que ele usava muito, ‘categoria’, ‘inclusivamente’ ou ‘retaguarda’ e que Teodoro manteve apenas como sons, sem lhes associar um significado.” Gostava de acompanhar os mais velhos e de lhes agradar. Perseguia o sentido da vida. Era o bonzinho que chamava si as culpas das tropelias dos colegas. Teve o seu momento de glória ao resolver, numa classe mais adiantada, um problema, a pedido do Director. É comovedora a sua ingenuidade: “Admirava tudo em Oscar […] até por ter nascido de cesariana.”

    Desde que a mãe fugiu com outro homem e levou o filho mais novo, Edgar vive com o pai que tem uma mercearia: “Edgar nunca contava, mas Oscar e Teodoro sabiam que ele levava tanta porrada do pai, que chegava a ficar de cama.” Sabe guiar desde os nove anos. Juntamente com os dois rapazes consegue pôr a trabalhar a velha carrinha do avô. Sabe fazer cigarros com pontas de arbustos usados para vassouras. Põe a sua destreza manual e a sua criatividade ao serviço das picardias do grupo. É, sexualmente, o mais precoce: “Edgar mantinha-se excitado mais tempo e costumava dizer que ia conhecer muitas raparigas e explicava o que gostaria de lhes fazer.” Tal como Teodoro, o seu comportamento pode ser justificado com as carências afectivas advindas da ausência da mãe.

    Raquel e Oscar são irmãos, filhos de uma inspectora escolar cuja autoridade lhes serve de guarda-costas. A exemplo de Teodoro, falta-lhes a presença tutelar do pai. Oscar é violento, não assume responsabilidades, tem espírito de comerciante e complexos de superioridade: “Mas Oscar achava aqueles cigarros pouco competentes e disse que não metia a boca em paus de vassoura das mulheres do forno”. “Oscar tinha necessidade de fazer pequenas maldades para testar a própria sorte. Precisava de saber se estava fadado para um grande futuro ou se ficaria enredado desde cedo nessas picardias que lhe indicariam um destino vulgar”. “Oscar era das poucas pessoas no Largo com telefone em casa. […] Quando a mãe não estava em casa Oscar costumava ir para o quarto dela, onde havia um telefone azul, para escutar as conversas e usar certas informações para espalhar intrigas.”

    Raquel tem um estatuto próprio e é poupada, por ser menina, a algumas aventuras de que é mera espectadora. Surge com uma grande dose de feminilidade e, apesar da idade, revela-se conhecedora da técnica de sedução. Sabe quem a corteja, despreza Teodoro, um idealista teórico, e corresponde ao cerco de Edgar, um materialista criativo, mas de maus instintos. E sonha: “Edgar sabia guiar desde os nove anos e era com ele que ela seguiria sob aquele crepúsculo, até encontrarem um sítio para passarem a noite. Ele estacionaria o carro e iria abrir-lhe a porta para ela sair. Raquel gostava da forma como Edgar a tratava, mesmo que ficasse diminuído à frente dos outros rapazes, porque naquela altura os rapazes só tinham amizades masculinas, carregadas de uma certa dureza e ímpeto destruidor.” É, também, ingénua (“pensava que aquele cão iria para o céu quando morresse”), generosa, amiga dos animais, curiosa: “Ficava a olhar para os animais e queria adivinhar o que eles pensavam e depois dizia alto: ‘O que estás a pensar, galinha ou rola? E o gato? Como é que posso aprender a descobrir o que eles pensam?” Pensava no futuro: “Sabia que nunca seria médica ou juíza […] Talvez administrativa de um consultório sem conseguir ler a letra dos médicos ou auxiliar de educação numa escola secundária.”

    Relativamente ao espaço e ao tempo saliente-se que as acções decorrem numa aldeia do interior norte, maioritariamente ao ar livre, no Largo ou nas suas imediações. E também na igreja, em casa, e mesmo num dos cemitérios. Por isso, encontramos inúmeras marcas de uma ruralidade de há décadas. De quando as ruas ainda estavam atapetadas de bosta, ainda se ia buscar água às fontes, a electricidade tinha sido instalada havia pouco, se malhava o trigo na eira comunitária, se lavava a roupa nos tanques, as parelhas de burros lavravam a terra, as crianças andavam descalças e sem roupa, no verão, atiravam aos pássaros com fisgas, guardavam formigas aladas em caixas de sapatos para servirem de iscos. De quando o comboio era a vapor. De quando as mulheres urinavam em pé, afastando a roupa. E em que cozinhavam em potes de ferro, sobre as brasas. E em que o leite, resultado de ordenha manual, transitava das tetas das vacas para cântaros encardidos.

    Gostaria de chamar a atenção para outros aspectos do romance, surgidos marginalmente, mas revestidos de interesse documental. Aos atrás referidos, acrescento a emigração com as suas consequências enunciadas, noutro contexto, por Camões pela boca do velho do Restelo e por Gil Vicente em Auto da India. Damos o exemplo de Teodoro. Separado dos pais, pouco afecto lhes dedica e, no fim, o castigo que lhe está reservado, é deixar a aldeia e ir com eles para longe. O avô de cima contava-lhe histórias do seu tempo: “numa noite caíram dois atrás de mim. Ainda se ouviram umas vozes ao fundo da ladeira a tentar dizer uns nomes de mulheres. Era impossível voltar atrás e descer até às silvas. Continuámos, com a mão no ombro do da frente. Em certas noites usávamos um lenço branco no braço para nos vermos melhor no escuro. Agora toda a gente tem passaportes e já não há passadores.” E o narrador regista uma realidade comportamental: “Quando voltavam, vinham mudadas, os homens traziam relógios dourados e as mulheres sapatos de salto alto, que enfiavam nos buracos do Largo da Lameira, ainda por calcetar. Vinham no Verão, para as festas dos emigrantes, bebiam muito durante as noites do arraial e pagavam muitas rodadas a quem se chegava à mesa deles.”
    No aspecto religioso, registe-se a distribuição dos fiéis na missa, segundo a sua importância sócio-económica, a atitude da igreja relativamente aos funerais dos que determinam a própria morte: “O caixão seguiria directamente para o cemitério sem passar pela igreja e o padre escolheu o cemitério velho. Havia muitos anos que o portão não era aberto, mas ninguém permitia que se sepultasse um suicida junto aos jazigos dos familiares e no cemitério velho os mortos eram já demasiado antigos para haver quem se queixasse por eles.” E também o ritual da missa encarado como uma obrigação, como uma espécie de espectáculo em que os “actores” serviam aos miúdos de matéria de falatório maldoso: “Até o próprio coro lhe fazia impressão, era demasiado ligeiro e quase alegre, com aquelas raparigas mais velhas, no grupo à direita de Cristo, empertigadas durante os cânticos e depois com os cestos do ofertório a percorrer a igreja com roupas de cabaré, até os encherem de moedas de vinte e de cinquenta. Depois regressavam aos seus lugares junto ao altar, ao lado do corpo de Cristo sem roupa e em perigo eminente de cair da cruz.” E as tradições católicas das confissões em massa quatro vezes por anos com o confessionário austero reservado a pecados adultos, uma vez que a miudagem “inventariava “as suas faltas ao lado do padre, na sacristia.
   
    Termino esta apresentação com algumas notações de ordem estética. Como o autor refere, a primeira versão do romance parecia um guião dos “Morangos com Açúcar transmontano”, o que significa aparecer o produto final depurado na sequência de cortes sucessivos e tidas como excrescências susceptíveis de desviar o interesse dos leitores para o acidental com prejuízo do essencial – os episódios protagonizados pelas criança, a sua mundividência num agora que poderia ter sido um tempo outro, num espaço que, como ficou dito, é, por acaso, uma aldeia transmontana. A contenção da narrativa é assegurada com o uso predominante do substantivo e do verbo e com uma economia do adjectivo e do advérbio de modo. Assim, com o mínimo de recurso ao enunciado descritivo, a acção avança rapidamente. Não se atrasa esta com a caracterização física e psicológica das personagens. O primeiro aspecto é secundário e o segundo fica entregue ao leitor a quem cabe, perante comportamentos e atitudes, traçar o perfil de cada uma.
    A escrita é cativante e a sua riqueza está na simplicidade vocabular, na depuração, na economia de palavras, no tom enternecedor com lugar para a ironia e para a poesia e, tudo  isto, em adequação inteligente ao teor geral do romance. Os ganapos quase não dialogam, mas o narrador dá-nos a sugestão das suas falas. A linguagem é corrente mas expressiva. Parece-nos, pois, que Tiago Patrício segue um dos princípios da Retórica de Aristóteles, segundo o qual “a primeira qualidade do estilo é a clareza”.
    Termino com a leitura de excerto de um dos capítulos que mais me apaixonou:

    “No dia em que o Alferes morreu, fizeram-lhe uma sepultura funda e no fim colocaram várias pedras em círculo e espetaram uma cruz por cima. Raquel quis que dessem as mãos e Edgar ficou agradado, mas Oscar não quis participar; no fundo achava aquele cão pouco activo, demasiado dependente das mulheres e afeiçoado às crianças mais pequenas e desastradas. Tinha mais simpatia pelo Forrete, com quem costumava ir atrás dos gatos e dos patos à volta do pequeno lago de cimento.
    Então Raquel começou a dizer que desejava que o Alferes fosse para um lugar bom e olhou para Teodoro e pediu-lhe uma palavra de despedida. Ele lembrou-se de algumas orações possíveis para aquela hora, mas disse apenas, ‘que Deus guarde a sua alma para sempre!’”


4 de Agosto de 2012

16 agosto 2012

Uma Academia de Duas Línguas

Ernesto Rodrigues


Comunicação apresentada na Academia Paraense de Letras, em Belém do Pará, Brasil, no dia 2 de Abril de 2012. 



Quero apresentar uma academia de duas línguas na terra mais montanhosa de Portugal, Trás-os-Montes, que, todavia, é uma região – e assim os seus autores, a sua literatura − sem paredes.
Três condições se requerem na definição de cultura, segundo T. S. Eliot: uma «estrutura orgânica» assente em classes sociais e transmissão hereditária; a especificidade geográfica, ou «regionalismo», desembocando em «culturais locais»[1]; a religião, com seus cultos e devoções.
Olhando ao chão transmontano, seria ocioso confrontar classe e elite, quando os grupos sociais mal se destacam e os antropólogos ainda se deliciam com manchas de comunitarismo agro-pastoril. Considerada a prioridade e riqueza deste, sucede «O principal canal de transmissão de cultura» (p. 43), a família, conceito que salta facilmente as paredes de um lar para formas colectivas. Assim se explicam estudos continuados sobre o nosso romanceiro, ímpar no contexto nacional; sobre a oratura em prosa, retrabalhada por vários ficcionistas; sem esquecer o disperso cancioneiro em quadras de redondilha maior, exemplarmente recolhido em quinhentas densas páginas do Cancioneiro Popular Transmontano e Alto-Duriense, de Guilherme Felgueiras[2].
Sirva-nos o índice geral deste para entendermos, numa Europa que se pretende de regiões, a pequena parcela transmontana. O seu quotidiano é de relação: com a natureza, os mundos animal e vegetal, entre galanteios e requebros, arrufos, chacota, «penas de amor», relação que fundamos em três núcleos essenciais: vida social e moral, incluindo-se, aqui, os costumes; vida material; linguagem.
Na vida social e moral, convergem bodas, baptizados, ritos fúnebres, demandas, outros eventos; com datas fixas, há cerimónias religiosas, festas, Entrudo; constantes são a má-língua e as noites ao calor da lareira. Serão, família, região − eis uma tríade feliz, base da cultura intersubjectiva e social.
Mas a cultura reforça-se com uma componente instrumental, um saber-fazer, na passagem à vida material: além da cultura da terra (na origem do sentido literal de cultura), de técnicas ancestrais ainda em uso, de ofícios, indústrias caseiras, somem-se adornos e trajes, alimentação, iluminação, etc. De tudo isto dá conta, miudamente, a leva de etnólogos, antropólogos, sociólogos, historiadores (sobretudo, historiadores das mentalidades). O estado de conservação de Trás-os-Montes seduz, para lá de paredes que recebem sempre bem. Não menos atenta a esse chão, e generosa, se mostra a literatura, alargando as potencialidades no campo da linguagem.
O que, no tocante às línguas, como se verá, tem a região de diversidade, tem de unidade em matéria de religião. Responde a contento ao voto final de Eliot, pois, «sem uma fé comum, todos os esforços para unir mais as nações, em cultura, não poderão produzir mais do que uma ilusão de unidade» (p. 82). Esta visão medieval é, ainda, a do tempo em que a Igreja cimentava a Europa política. Bem ou mal, a religião é força incontroversa, vazada em catolicismo apostólico romano, jamais imune ao paganismo de rituais festejados até pelos mais crentes, a par de crendices e bruxedos, de medicina popular, de pactos com o Diabo e tentações da carne que arrepiam serafins. Veja-se como o cónego Ochoa, que dá título ao romance O Cónego (2007) de Pires Cabral, desonra Gervásia, a filha do feitor Querubim. Já Herculano, o jacobino do lugar, reforça a palavra da rua, a atmosfera de merenda à lareira, concorrendo para um quadro aldeão disputado entre igreja e taberna. Citei quatro lugares de eleição, ou cenários – rua, lareira, taberna, igreja −, em que a força desta sai relativizada.
É extraordinário, porém, ver reunidas família, região e religião na mais comum figura do padre-escritor, cujo paradigma é Francisco Manuel Alves (1865-1947), Abade de Baçal, localidade próxima de Bragança. Muito do que sabemos de nós mesmos lhes é devido, misto de arqueólogos e cientistas sociais.
Deles deriva uma especialidade transmontana: em finais do século XV, com os Descobrimentos, nascem os nossos primeiros missionários, e, desde o século XVIII, não há vila que dispute o lugar a Freixo de Espada à Cinta, em braços, almas e orientes. O maior e mais quantioso do século XX, o padre Manuel Teixeira (1912-2003) –viveu 76 anos no Oriente, publicou 123 livros −, bibliografou 41 conterrâneos de cruz e batina, dando, em apêndice a Missionários de Freixo de Espada à Cinta (1993), lista de outros 54, quase todos com obra literária teológica e historiográfica, mesmo ficcional e lírica, e, não raro, bilingue, em português-mandarim. Alguns voaram até esferas que causam espanto, nesta inesperada conclusão: a sinologia tem dedos e glote transmontanos. Mas também o Japão tem os seus expoentes, caso do padre Jaime Coelho, autor do Dicionário Japonês-Português (1998). Entre os 3 500 volumes por ele oferecidos à Biblioteca Municipal de Bragança, muitos são em japonês.
O reverso desta história de religião é a guerra de religiões, que trouxe a Inquisição: agora, o intelectual expatria-se à força e opta pela Europa. No século XX, à perseguição política, junta-se o Brasil como terra de exílio.
Os núcleos judaizantes do Nordeste português sofrem razia. Entre as dezenas de ilustres que fogem, Isaac Oróbio de Castro (c. 1620-1687) filosofa, em Amsterdão, contra Spinoza; a partir de Londres, o médico Jacob de Castro Sarmento (1691-1762) divulga, em Portugal, Newton e a ciência do tempo.
Não párocos de aldeia, nem missionários, nem judeus, outros saíram, equivalentes, no pensamento, aos grandes marinheiros transmontanos Diogo Cão, Fernão de Magalhães, João Rodrigues Cabrilho: refiro-me aos humanistas de Quinhentos, e a quantos se dirigiram às universidades europeias, sobretudo, à da vizinha Salamanca. Relevo, aqui, o professor e poeta neolatino Inácio de Morais (1507?-1580).
Já peregrino de Europas e de cortes, temos Francisco de Morais, que no apelido transporta humilde terra do distrito bragançano. O seu Palmeirim de Inglaterra (c. 1544) funda parte da literatura universal: «Quién más discreto que Palmerín de Inglaterra?», lê-se no Don Quijote de la Mancha (1615, cap. I), que tanto o celebra na primeira parte (1605). Justo, equânime, esse herói bebeu num húmus de coisas fantásticas, mouraria, sensualidade e apelo constante à deslocação geográfica, que nos caracteriza. Conta Francisco de Morais que, na sexta-feira de Endoenças de 1521, um ferreiro de Bragança leu, numa igreja, A Celestina[3] Terras insólitas: se a Igreja condenava livros de cavalarias, mais condenava o realismo de Fernando de Rojas.
Onde buscar, entretanto, o peso ou sentido de região à luz do estrato cultural que é a literatura, cujo universo referencial fugidiamente descrevi? Na linguagem. Ao contrário do resto nacional, temos duas línguas oficiais, português e mirandês, e, registados, quando não pronunciados, os subfalares barrosão, sendinês, guadramilês e rionorês.
O rionorês ou riodonorense é o mais estudado, dadas as formas de comunitarismo que atraiu antropólogos no séc. XX. Em 1909, Daniel José Rodrigues reuniu, na revista coimbrã O Instituto, breves contos exemplares acompanhados de versão em português. Dou um exemplo:

Un dia un arrieiro cuntou q’habia curriu as cinco partes d’al mundo, e que entre outras cousas, habia bisto una en que ningun habia falado.
Iera un pie de berzas tan alto que cincoenta cavalheiros puestos a dreito uns dos outros pudiam andar da cabalo debaixo d’ua d’estas fôias. Un dos que uíran, num s’acordando d’ua d’estas cousas, dixo cun o maior descanso: q’el tamien habia viaxau, e que chegando al Xapon, habia bisto cun grande admiracion mas de três cientos de caldeireiros a trabaiar n’um grande caldeiron, drento d’al qual staban mas de cien persós a limpal’o. Mas que querien ellos fazer cun aquelle grande caldeiron?, precurou al principio. Era para cozer al ton pie de berza.

Versão

Um dia um arrieiro contou que tinha corrido as cinco partes do mundo e que, entre outras coisas, tinha visto uma na qual ninguém tinha falado.
Era um pé de couve tão alto que cinquenta cavaleiros formados podiam cavalgar debaixo duma das folhas.
Um dos ouvintes, não se lembrando de tal coisa, disse com a maior placidez que também tinha viajado e que, chegando ao Japão, tinha visto, com grande admiração, mais de trezentos caldeireiros, a trabalhar num grande caldeirão, dentro do qual estavam mais de cem pessoas a limpá-lo. Mas que queriam eles fazer com aquele grande caldeirão?, perguntou o primeiro. Era para cozer a tua couve[4].

Da gramática ao consultório linguístico na Imprensa escrita, na rádio e na televisão, foi gente nossa a pautar a língua nacional: nos séculos XVII e XVIII, Amaro de Reboredo e Madureira Feijó; no séc. XX, Augusto Moreno, Raul Machado, Edite Estrela.
Ora, é face à regra e sua reversão, à pronúncia oblíqua e seu registo, ao novidoso vocábulo, que esteticamente se perfila e transmite um conjunto particular de imagens em que nos solidarizamos, seja nesse chão ou nas comunidades por esse mundo de Cristo. O nosso mundo é «em qualquer Brasil», disse Miguel Torga, em conferência de 1948:

Nascemos aqui, mas nascemos desterrados, reais ou potenciais, e sempre com parte do sangue no exílio. Todos temos um irmão, um filho, um primo ou a família inteira em qualquer Brasil[5].

Na conferência “Trás-os-Montes no Brasil”, lida no Centro Transmontano de São Paulo e no do Rio de Janeiro, em 14 e 16-VIII-1954 – onde surge a célebre máxima «O universal é o local sem paredes» –, tem um paradoxo notável, ao afirmar que «realidade sem muros»[6], realidade paralela a «qualquer Brasil», era a região com mais muros e muretes: Trás-os-Montes, naturalmente... Este minifúndio da sobrevivência leva-me a pensar que a espécie mais adequável ao génio local é o conto. Exceptuando Eça de Queirós, o cânone do conto tira-se de Trindade Coelho, Domingos Monteiro, Torga, João de Araújo Correia, a par dos ainda vivos Bento da Cruz e Pires Cabral, entre tantos…
Ora, sobre esta região aberta ao mundo, cumpre citar os não-naturais, os que, de passagem, a enaltecem, ou nela firmam obra. Vamos, assim, do quatrocentista Fernão Lopes a Agustina Bessa-Luís, de Abel Botelho ao Ferreira de Castro que respirou Belém de Pará quando jovem, de António Nobre a Jorge de Sena...[7]  Outros são adoptados, como José Rentes de Carvalho e Herculano Pombo, cujo mal conhecido título Crescem Pães Pelos Outeiros (1994) releva de um ciceroneio aldeão entre pórtico de igreja e solar, nos mostra junta de bois puxando arado, estrume à espera de ganchas, sementeira, geadas, adubos, ferranha para as crias, segada, malhada, acarreja difícil por causa do restolho em pé leve, eiras, medas e palheiros, saco de grão, moinho, forno, cantigas e dizeres, malandrices, pitas, recos… Alguns destes termos nem um falante culto os entende.
Na primeira fila dos naturais que partiram, mas não cortaram liames, está um estranho Álvaro do Carvalhal (1844-1868) fazendo correr sangue e melodrama em seis contos; Guerra Junqueiro; Trindade Coelho; entre os vivos mais velhos, Luísa Dacosta, estreando-se com as «almas mortas» transmontanas de Província (1955), Diz ela, representando-nos a todos:

Tive uma infância feliz, não rica, mas feliz, sem infantário. Andei de burro, apanhei rãs nos rios, subi descalça às árvores, fiz magustos, fiz roupinhas e cozinhei para as bonecas em fogões pequeninos, mas autênticos, fiz enterros de passarinhos, todas essas coisas e que eu acho que são importantes para crescer[8].

A ausência da ‘pequena pátria’ pode te razões diplomáticas (Monsenhor José de Castro, Armando Martins Janeira); excepcionalmente, ideológicas (João Sarmento Pimentel, que morreu em São Paulo); económicas, laborais, educativas. O jornalismo obrigou à saída de inúmeros (Norberto Lopes e Raul Rêgo estão entre os maiores na história da Imprensa portuguesa), com mão na crónica, em alguma ficção e mesmo no verso. Eduardo Guerra Carneiro e Francisco José Viegas, actual secretário de Estado da Cultura, respondem por todos. Professores e ensaístas, em remissões constantes da terra-mãe na obra e na actividade pública, foram Emídio Garcia, Ferreira Deusdado, Maximino Correia, Santa Rita Xisto (primo de Camilo Pessanha, cuja família era de Mirandela), o simultaneamente encenador e tradutor do alemão Paulo Quintela[9], A. A. Gonçalves Rodrigues (fundador do ISLA, cujos 5 volumes de A Tradução em Portugal, desde 1495, são um marco), Adriano Moreira, presidente da Academia das Ciências e presidente honorário da Academia de Letras de Trás-os-Montes…
Na ordem de tarefas ciclópicas, releve-se Hirondino da Paixão Fernandes, cuja Bibliografia do Distrito de Bragança ultrapassa oito mil páginas. Acaba de sair o primeiro de dez volumes. Transcende as 800 páginas do vol. VII, dedicado aos “Notáveis”, das Memórias Arqueológico-Históricas do Distrito de Bragança, do Abade de Baçal. Quer aqueles dez volumes, quer os 12 volumes da nova edição destas Memórias… são devidos ao município de Bragança, presidido pelo Eng. António Jorge Nunes, com a dra. Fátima Fernandes na vereação na Cultura.  
Como poderia eu, em fala breve, citar milhares de nomes que honram o quinto maior distrito de Portugal, com 6 608 quilómetros quadrados e uma população de tão-só 140 mil habitantes, ou seja, a décima parte de Belém do Pará? Não esquecerei o mais transmontano de todos[10], por aí se ter feito homem junto da e contra a família, e construído autor, entre os dez e os 22 anos, impondo-se novelista de atmosfera local logo na estreia (1851): Camilo Castelo Branco. No seu agitar da língua clássica, há larga composição do idiolecto provincial.
A atenção crescente ao local, às suas belezas naturais e potencialidades, estendeu-se ao Ultramar português, via Sociedade de Geografia de Lisboa, fundada pelo nosso Luciano Cordeiro.
Em artes afins às das letras, devêramos citar o anónimo flaviense de 1489, primeiro impressor em língua portuguesa[11]; na teorização estética de Seiscentos, Filipe Nunes; em Setecentos, o editor Francisco Luiz Ameno; um gesto aristocrático do Morgado de Mateus, ao entregar a Didot (Paris, 1827) a luxuosa impressão d’Os Lusíadas; a alma atlântica de Álvaro Pinto (1889-1957), que estudou em Bragança, fundou as nossas mais importantes revistas, divulgou autores brasileiros. Políticos e ministros não foram poucos, entre eles, Teixeira de Sousa, último primeiro-ministro da Monarquia.
Procurei associar a mundividência social à região e à religião. Decorreram daqui: expatriamento, no apelo da fé missionária, no fanatismo inquisitorial, bem como emigração dentro e fora, maioritariamente jornalística e universitária, mas indo até às partes ultramarinas e ao Brasil. O Nordeste português conserva-se locus sedutor para escritores e estudiosos, de passagem ou adoptados. Continua-se a cavar, por nacionais e estrangeiros, um chão cada vez mais seco e vazio de gente. Urge combater estas causas, em que a acção de uma academia pode ser útil.
Assim, num propósito de inclusão da segunda língua oficial de Portugal, o mirandês, criámos a Academia de Letras de Trás-os-Montes; desde os órgãos sociais à primeira antologia que organizámos, eu e Amadeu Ferreira proclamámos, logo no título, A Terra de Duas Línguas. A história do Mirandês – radicado no astur-leonês medieval, falado no concelho de Miranda do Douro por cerca de seis mil habitantes, cursado nas escolas locais e nas grandes cidades, já com entradas no ensino superior – resolve-se em pequenos passos, desde os estudos de José Leite de Vasconcelos, a partir de 1882, à recente tradução d’Os Lusíadas (2010).
Irmanados o riodonorense, o mirandês e o português, quer-se região mais diversificada linguisticamente?
Face a estas línguas, em renovadas linguagens do húmus popular entrando na criação individual, percebe-se como a literatura transmontana é um céu vastíssimo, que nenhum muro ou montanha divide. Os seus cultores vivem nas cinco partes do mundo, e assim os 80 membros da nossa Academia – não nos impusemos 40… −, a mais jovem (desde Junho de 2010) das onze academias portuguesas.
Deixo retrato da ‘pátria breve’ que, em mirandês e português, preocupa os nossos autores: «Solo difícil, condições económicas e socioculturais adversas, batalha esgotante pela sobrevivência, abandono e desertificação: […]. Mas, onde quer que estejamos, trazemos connosco as raízes. Faz-se cada um embaixador do reino[12]
Eu, pobre enviado, apresentei credenciais de um Nordeste português que urge visitar. A literatura é o melhor guia.
Agradeço a atenção.     


[1] T. S. [Thomas Stearns] Eliot, Notas para a Definição e Cultura [T. S. Eliot, Notes Towards the Definition of Culture, 1948], Rio de Janeiro, Zahar Editôres, 1965, p. 16.
[2] Lisboa, Edição da Revista Ocidente, 1966.
[3] Cf. Ricardo Jorge, A Intercultura de Portugal e Espanha no Passado e no Futuro, Porto, 1921, p. 14.
[4] Daniel José Rodrigues, O Riodonorense: Lendas. Folclore, Bragança, Edição da Junta Distrita, 1973, p. 16-17.
[5] “Teixeira de Pascoaes”, Fogo Preso, 1976; em Ensaios e Discursos, p. 203.
[6] Ensaios e Discursos, Lisboa, Círculo de Leitores, 2002, p. 126.
[7] Ver Passeio de Trás-os-Montes. Antologia, org. de Elísio Amaral Neves, Grémio Literário Vila-Realense / C. M. de Vila Real, 2007.
[8] “Luísa Dacosta depõe [...]”, Jornal de Notícias (Porto), 24-II-1981.
[9] Homenagem e bibliografia em Biblos, LI, Coimbra, 1975.
[10] Como declaram Manuel de Laranjeira e Pascoaes. Cf. A. M. Pires Cabral, Albano Costa Lobo, Vila Real. Um Olhar Muito de Dentro, C. M. de Vila Real, 2001, p. 31.
[11] Sobre esse Tratado de Confissom, ver José V. de Pina Martins, “O primeiro livro impresso em língua portuguesa (Chaves, 8 de Agosto de 1489)”, Cultura Portuguesa, Lisboa, Editorial Verbo, 1974, p. 43-63.
[12] A Terra de Duas Línguas. Antologia de Autores Transmontanos. Coord. de Ernesto Rodrigues e Amadeu Ferreira. Bragança, Instituto Politécnico de Bragança / Associação das Universidade de Língua Portuguesa / Academia de Letras de Trás-os-Montes, 2011, p. 19.