M. Hercília Agarez
1. O HOMEM
É uma das revelações/surpresas da actual literatura portuguesa. Parece ter sido fadado para a escrita, imposição íntima que o fez abandonar a Escola Naval, a profissão de farmacêutico, o sonho da medicina, a vida rotineira e aburguesada do ordenado fixo. Do mar do Funchal, das flores cosmopolitas da ilha, veio, ainda não pelo seu pé, para a dureza do mar de pedra, para a simplicidade da esteva, do rosmaninho, da urze. E dessa interioridade partiu por exigências académicas, não sem antes ter deitado à terra transmontana raízes difíceis de arrancar. Costuma dizer-se que se pode tirar um transmontano a Trás-os-Montes, mas não Trás-os-Montes a um transmontano.
É o próprio que o confirma em entrevista à revista Ler de Junho de 2012, a propósito do seu romance de estreia, prémio revelação Agustina Bessa-Luís: “Tudo começou em Trás-os-Montes, o lugar onde reside a matriz da minha infância e a memória primeira que permanecerá até ao fim.”
Tiago é um andarilho e, como tal, um curioso ávido de aumentar saberes e de acumular experiências. Frequentou cursos para jovens criadores. Em Praga, entre as árvores do Outono eslavo e as neves das margens do Danúbio, nasceram Cartas de Praga e Checoslováquia, uma obra dramática apresentada no Teatro Nacional de D. Maria II. No verão de 2007, na Tunísia, preparou o Livro das Aves.
Em Lisboa, a quinze de Novembro de 2009, “um dos filhos imaginários torna-se real às cinco da tarde” e fá-lo sentir-se “um homem novo” saudado pelas outonais folhas ocre das Avenidas Novas. Em Lisboa, a escrita, “uma actividade perigosa” a requerer evasões. E, também, uma residência artística na Cadeia do Linhó, a orientação de um curso de poesia no Hospital Psiquiátrico do Telhal, a colaborações com companhias do teatro: saberes repartidos em espírito solidário. Presumimos que, para além da expressão escrita, também é exímio na gaita-de-foles com a qual surge, com cabelos compridos de homem-menino, numa página do JL de Maio passado.
2. A TERRA
Ao proferir, em 1941, nas Pedras Salgadas, no decurso do Segundo Congresso Transmontano, a conferência “UM REINO MARAVILHOSO” (Trás-os-Montes), Miguel Torga caracterizou, com o seu proverbial telurismo, uma região ainda hoje conotada com atraso civilizacional. A este documento ímpar, acrescente-se uma comunicação talvez menos conhecida que completa e enriquece a anterior: trata-se de “Trás-os-Montes no Brasil”, apresentada em 1954 no Rio de Janeiro e em S. Paulo. Dois documentos histórico-literários escritos de forma magistral e onde, se algum pormenor físico ou humano lhe escapou, foi a referência à riqueza intelectual albergada em terras inóspitas e desprotegidas de bênçãos governamentais. Aí pode ler-se:
“O destino quis que houvesse no topo da pequena leira lusíada uma costeira onde tudo tivesse carácter e dignidade. Que a vista disfrutasse dali perspectivas originais, que a enxada patenteasse na dureza dos torrões a dureza do aço, que o fole do peito se enchesse por inteiro a cada respiração, e que todos os seres nados e criados num tal ambiente estivessem à altura destas premissas. E Portugal encontrou em Trás-os-Montes o seu telhado, a lousa que lhe resguarda as virtudes, a saúde física e moral, a tenacidade mourejadora, a pureza dos costumes e a expressão mais nobre e acabada das feições interiores. […]
Percorra-se o planeta. Onde estiver um transmontano está qualquer coisa de específico, de irredutível. E porquê? Porque mesmo transplantado, ele ressuma a seiva de onde brotou. Corre-lhe nas veias a força que recebeu dos penhascos, hemoglobina que nunca se descora.”
Trás-os-Montes não é uma região desconhecida, é, sim, uma região mal conhecida. Apesar dos progressos viários e da rapidez da comunicação, não falta quem veja este território apenas como uma série de sedes gastronómicas: Mirandela, para a alheira, Chaves, para o folar, Lamego, para o presunto, Miranda para a posta, Vinhais, Montalegre e Boticas para o fumeiro, Vila Real para as tripas aos molhos ou para as cristas de galo. É redutor, convenhamos!
Aliás, esse sobranceiro olhar de esguelha para os que por cá nada mandam, contrariamente ao que apregoa o provérbio, encontra-se, já, no Amor de Perdição onde um Camilo ressabiado e com as costas ainda a gemer das bordoadas que por cá mereceu, pôs na boca de D. Rita, em 1784, ao chegar a Vila Real, esta pergunta: “Em que século estamos nós nesta montanha? (…) Cuidei que o tempo parara aqui no século doze…” E ainda disse, saudosa da corte, que “os fidalgos de Vila Real eram muito menos limpos que os carvoeiros de Lisboa.
Não há muito tempo, acompanhando, via televisão, uma entrevista com um realizador de cinema português, explicou o dito que uma das personagens femininas e jovens do seu filme em rodagem tinha partido para Trás-os-Montes onde passaria o tempo necessário para engordar e adquirir um ar saloio. Espera-se que a menina, feita cachopa, tenha ido sebada a contento…
Em contrapartida, e indo ao encontro de um escritor que, segundo o nosso autor, foi uma das suas matrizes de escrita – Vergílio Ferreira- permitam-me a leitura de excerto de uma entrada de um dos volumes do seu Diário, Conta-Corrente:
“E a certa altura da conversa no jantar, voltei à minha teoria da distribuição geográfica dos nossos génios literários. E observei uma vez mais que eles se concentram no norte do país, sobretudo em Trás-os-Montes. Assim: Camilo (nascido em Lisboa mas contagiado no norte), Guerra Junqueiro, (…) Pascoaes, Raul Brandão, para não falar dos ainda vivos. (…) Tenho uma teoria para explicar isto. Não tenho pachorra para a expor”.
Não vamos enumerar os escritores da região transmontano-duriense, do passado e do presente, mas temos gosto em reconhecer, entre os vivos, autores com obra consistente, qualitativa e quantitativamente, a viver, teimosamente, nas berças ou delas falando nas suas obras. Correndo o risco de falhar algum que mereça referência especial, avançamos os nomes de A.M. Pires Cabral, António Modesto Navarro, Bento da Cruz, Rentes de Carvalho, Luísa Dacosta. E se Tiago Patrício, tendo em Carviçais vivido até aos 19 anos, mantiver vivas as ligações à terra, aumentará, com todo o mérito, o rol. Tal como os apontados, não será um escritor regionalista, rótulo que alguns se apressam a colar levianamente em escritores cuja obra demonstra que, usando palavras de Torga, “O universal é o local sem paredes”.
2. A OBRA
O título de uma obra literária obedece, por vezes, a uma estratégia de marketing. Tem de ser apelativo, de preferência conciso (concisão não do agrado de Lobo Antunes, por exemplo), expressivo. Há nomes, e capas, e títulos, e críticas que vendem livros, mas para um escritor, mais importante que a magra percentagem que lhe cabe, conta a certeza de ser lido. Eu, confesso, fui logo atraída pelo nome do romance. Seguiram-se as críticas e a encomenda, na Livraria Branco, com quem já celebrei as bodas de ouro…
Tiago Patrício afirma que, embora a acção se passe entre duas aldeias do concelho de Torre de Moncorvo, locais onde andarilhou a infância e a adolescência, ela poderia ter outros cenários, inclusivamente o nordeste brasileiro. Em entrevista, esclarece ter-se o livro chamado O Cair da Noite, nome escolhido, e bem, no meu entender, pelo fascínio que exerce na pequenada esse momento de semi-obscuridade criador de clima de mistério. Uma semelhança quase total com outro título publicado em Portugal inviabiliza a opção e empurra-o (ou empurram-no) para Trás-os-Montes: “resisti até ao fim porque não queria denunciar o sítio.” A verdade é que são constantes as marcas de ruralidade, e escassas as de transmontaneidade.
Seja como for, aquelas gentes miúdas e graúdas movem-se bem naquele espaço de interioridade agreste, naquela região mítica onde o autor cresceu e se fez homem. Ao perpetuar as suas reminiscências da vida rural transmontana hoje semi-urbanizada e a perder, de dia para dia, os seus traços identitários, Tiago acaba por homenagear, assim o entendo, esse naco de Portugal onde nasceram gentes “que desde sempre andaram pelos caminhos do mundo sem quebrar a ligação à terra de origem” no dizer de Adriano Moreira.
Mas vamos ao livro. Além da sinopse, que me atraiu pela identificação da temática abordada, agradou-me o estilo logo na primeira página. (leitura). E fiquei rendida. E aqui estou, numa dupla função em que o autor quis investir-me: como representante da direcção da Academia de Letras de Trás-os-Montes (para o que me bastaria uma passividade de palavras parcas) e como apresentadora (obrigada, Tiago, pelo desafio). E, nesta qualidade, cumpre-me transmitir as minhas considerações sobre o livro, correndo o risco de não corresponder às expectativas. A tarefa não é tão fácil como pode parecer. Retirando as páginas de rosto e as extra textuais, o romance tem apenas 137 páginas, contra 400 do original. (“escrever é cortar palavras”). Só que a densidade da narrativa obriga a uma leitura atenta e reflexiva, não permitindo “saltos” de capítulos porque todos encerram elementos fundamentais para a compreensão do comportamento das personagens, sobretudo das infantis, verdadeiras protagonistas, investidas na função de surpreender e de desconcertar o leitor.
A infância e a adolescência continuam a fascinar os escritores. Em alguns dos últimos livros que li, encontrei crianças e jovens cativantes e bem delineados. Por exemplo: o narrador de Somos todos um bocado Ciganos, de Manuel Jorge Marmelo, um menino de circo pobre, sonhava ter uma mota e fazer gemer as mulheres; Duarte, de O Teu Rosto Será o Último de João Ricardo Pedro, era um exímio beethoviano, mas sonhava com a vitória do Sporting na taça dos Campeões Europeus; Sabalu de Teoria Geral do Esquecimento de José Eduardo Agualusa, um órfão de 7 anos a viver na rua e que salvou uma idosa abandonada a si própria diz: “Como posso ser criança longe da mão de minha mãe?” Em Retorno, Dulce Maria Cardoso cria põe a narração na boca de um Rui frases tão saborosas como esta: “Os familiares da metrópole eram-nos ensinados pela mãe como matéria da escola ou da catequese”. E, recuando no tempo, por associação de ideias, fui ao reencontro de Gaitinhas, Maquineta, Sagui, Malesso e Gineto, pequenos operários sem escola nem infância, “vagabundos nas horas vagas”,criados por Soeiro Pereira Gomes em Esteiros, essa obra de referência do neo-realismo português. E, como que por magia, fui encontrar em Agostinho da Silva esta quadra:
Mais que tudo quero ter
Pé bem firme em leve dança
Com todo o saber de adulto
Todo o brincar de criança.
Tratando-se, embora, de uma obra de ficção romanesca, a sua estrutura afasta-se do tradicional, ou seja, em vez de uma intriga principal a que se agregam intrigas secundárias com ela relacionadas, evoluindo, uma e outras, para um desenlace mais ou menos esperado, de acordo com as peripécias, aqui vamos encontrar uma série de episódios em sequências narrativas protagonizadas cada uma, por uma das crianças, acolitada pelas restantes e partilhada, sempre que oportuno, por adultos familiares. Os quatro miúdos a rondar os dez anos de idade funcionam, mais para o mal do que para o bem, como um todo coeso, como uma equipa, partilhando as suas “riquezas” (a bicicleta nova do mais rico, a lanterna do avô do mais pobre, a espingarda de pressão do avô do remediado), a sua imaginação, os seus atributos físicos, a sua capacidade de “desenrascanço”, a sua curiosidade pelo funcionamento do mundo dos adultos que pretendem imitar. O suspense, neste romance, consiste em criar um clima de expectativa que consiste em saber quais os limites daquelas crianças, até onde pode levá-las a ânsia das descobertas, o espírito de destruição, a criatividade, a necessidade de realizarem experiências novas, a obsessão de se autoconhecerem, de dimensionarem a morte.
Tudo isto, e mais ainda, transforma a ficção num manual de aprendizagens, num compêndio de psicologia infantil. Com efeito, estes ganapos são imprevisíveis, sobretudo quando põem à prova instintos perversos, mas próprios da idade, como a perseguição e a morte de animais, o engenho de chantagem, o espírito de vingança. Atingem as suas acções, por vezes, uma crueldade desarmante a obrigar o narrador, numa atitude morigeradora, a encontrar para cada criança um desenlace com sabor a castigo.
Mais do que o espaço e o tempo contam, nesta original narrativa, as personagens, pela sua faixa etária, pela sua mundividência, pela poesia que delas se desprende, aqui e acolá, pela sua ingenuidade reguila, pela ternura que nos despertam e até pelo desafio que lançam à nossa capacidade de tolerância. Se bem que o autor da obra lhes tenha destinado um espaço de interioridade rural e lhes tenha atribuído ligeiras diferenças sociais, estas crianças são intemporais e universais. A fantasia e o sonho comandam as suas vidas. O tempo livre, para além da escola, e a pacatez do quotidiano aldeão, dão-lhes asas para grandes voos, para aventuras sem limites para o risco, para conluios cúmplices.
Sem querer desvendar o destino de cada um, passo as adiantar alguns dos seus traços característicos.
Teodoro é o filósofo do grupo. O melhor aluno da escola, um teórico que “via tudo pelos olhos dos outros”, incapaz de organizar ideias novas. “Era um actor que decorava bem o papel, mas não sabia o que estava a dizer.” Vive obcecado com a sua identidade. Receia um dia cruzar-se com outros Teodoros e, se tal acontecer, não saber ao certo quem é. O mais humilde de todos, vive numa casa pobre, em pedra escurecida pelo fumo e de telha vã. Nunca viu o mar. Tem propensão reflexiva e gosta de saborear as palavras: “Entretanto Teodoro lembrou-se dos pais, que nem todos os anos vinham a casa passar o mês de Agosto, especialmente do pai, de quem se lembrava cada vez menos. Ficaram-lhe apenas algumas palavras que ele usava muito, ‘categoria’, ‘inclusivamente’ ou ‘retaguarda’ e que Teodoro manteve apenas como sons, sem lhes associar um significado.” Gostava de acompanhar os mais velhos e de lhes agradar. Perseguia o sentido da vida. Era o bonzinho que chamava si as culpas das tropelias dos colegas. Teve o seu momento de glória ao resolver, numa classe mais adiantada, um problema, a pedido do Director. É comovedora a sua ingenuidade: “Admirava tudo em Oscar […] até por ter nascido de cesariana.”
Desde que a mãe fugiu com outro homem e levou o filho mais novo, Edgar vive com o pai que tem uma mercearia: “Edgar nunca contava, mas Oscar e Teodoro sabiam que ele levava tanta porrada do pai, que chegava a ficar de cama.” Sabe guiar desde os nove anos. Juntamente com os dois rapazes consegue pôr a trabalhar a velha carrinha do avô. Sabe fazer cigarros com pontas de arbustos usados para vassouras. Põe a sua destreza manual e a sua criatividade ao serviço das picardias do grupo. É, sexualmente, o mais precoce: “Edgar mantinha-se excitado mais tempo e costumava dizer que ia conhecer muitas raparigas e explicava o que gostaria de lhes fazer.” Tal como Teodoro, o seu comportamento pode ser justificado com as carências afectivas advindas da ausência da mãe.
Raquel e Oscar são irmãos, filhos de uma inspectora escolar cuja autoridade lhes serve de guarda-costas. A exemplo de Teodoro, falta-lhes a presença tutelar do pai. Oscar é violento, não assume responsabilidades, tem espírito de comerciante e complexos de superioridade: “Mas Oscar achava aqueles cigarros pouco competentes e disse que não metia a boca em paus de vassoura das mulheres do forno”. “Oscar tinha necessidade de fazer pequenas maldades para testar a própria sorte. Precisava de saber se estava fadado para um grande futuro ou se ficaria enredado desde cedo nessas picardias que lhe indicariam um destino vulgar”. “Oscar era das poucas pessoas no Largo com telefone em casa. […] Quando a mãe não estava em casa Oscar costumava ir para o quarto dela, onde havia um telefone azul, para escutar as conversas e usar certas informações para espalhar intrigas.”
Raquel tem um estatuto próprio e é poupada, por ser menina, a algumas aventuras de que é mera espectadora. Surge com uma grande dose de feminilidade e, apesar da idade, revela-se conhecedora da técnica de sedução. Sabe quem a corteja, despreza Teodoro, um idealista teórico, e corresponde ao cerco de Edgar, um materialista criativo, mas de maus instintos. E sonha: “Edgar sabia guiar desde os nove anos e era com ele que ela seguiria sob aquele crepúsculo, até encontrarem um sítio para passarem a noite. Ele estacionaria o carro e iria abrir-lhe a porta para ela sair. Raquel gostava da forma como Edgar a tratava, mesmo que ficasse diminuído à frente dos outros rapazes, porque naquela altura os rapazes só tinham amizades masculinas, carregadas de uma certa dureza e ímpeto destruidor.” É, também, ingénua (“pensava que aquele cão iria para o céu quando morresse”), generosa, amiga dos animais, curiosa: “Ficava a olhar para os animais e queria adivinhar o que eles pensavam e depois dizia alto: ‘O que estás a pensar, galinha ou rola? E o gato? Como é que posso aprender a descobrir o que eles pensam?” Pensava no futuro: “Sabia que nunca seria médica ou juíza […] Talvez administrativa de um consultório sem conseguir ler a letra dos médicos ou auxiliar de educação numa escola secundária.”
Relativamente ao espaço e ao tempo saliente-se que as acções decorrem numa aldeia do interior norte, maioritariamente ao ar livre, no Largo ou nas suas imediações. E também na igreja, em casa, e mesmo num dos cemitérios. Por isso, encontramos inúmeras marcas de uma ruralidade de há décadas. De quando as ruas ainda estavam atapetadas de bosta, ainda se ia buscar água às fontes, a electricidade tinha sido instalada havia pouco, se malhava o trigo na eira comunitária, se lavava a roupa nos tanques, as parelhas de burros lavravam a terra, as crianças andavam descalças e sem roupa, no verão, atiravam aos pássaros com fisgas, guardavam formigas aladas em caixas de sapatos para servirem de iscos. De quando o comboio era a vapor. De quando as mulheres urinavam em pé, afastando a roupa. E em que cozinhavam em potes de ferro, sobre as brasas. E em que o leite, resultado de ordenha manual, transitava das tetas das vacas para cântaros encardidos.
Gostaria de chamar a atenção para outros aspectos do romance, surgidos marginalmente, mas revestidos de interesse documental. Aos atrás referidos, acrescento a emigração com as suas consequências enunciadas, noutro contexto, por Camões pela boca do velho do Restelo e por Gil Vicente em Auto da India. Damos o exemplo de Teodoro. Separado dos pais, pouco afecto lhes dedica e, no fim, o castigo que lhe está reservado, é deixar a aldeia e ir com eles para longe. O avô de cima contava-lhe histórias do seu tempo: “numa noite caíram dois atrás de mim. Ainda se ouviram umas vozes ao fundo da ladeira a tentar dizer uns nomes de mulheres. Era impossível voltar atrás e descer até às silvas. Continuámos, com a mão no ombro do da frente. Em certas noites usávamos um lenço branco no braço para nos vermos melhor no escuro. Agora toda a gente tem passaportes e já não há passadores.” E o narrador regista uma realidade comportamental: “Quando voltavam, vinham mudadas, os homens traziam relógios dourados e as mulheres sapatos de salto alto, que enfiavam nos buracos do Largo da Lameira, ainda por calcetar. Vinham no Verão, para as festas dos emigrantes, bebiam muito durante as noites do arraial e pagavam muitas rodadas a quem se chegava à mesa deles.”
No aspecto religioso, registe-se a distribuição dos fiéis na missa, segundo a sua importância sócio-económica, a atitude da igreja relativamente aos funerais dos que determinam a própria morte: “O caixão seguiria directamente para o cemitério sem passar pela igreja e o padre escolheu o cemitério velho. Havia muitos anos que o portão não era aberto, mas ninguém permitia que se sepultasse um suicida junto aos jazigos dos familiares e no cemitério velho os mortos eram já demasiado antigos para haver quem se queixasse por eles.” E também o ritual da missa encarado como uma obrigação, como uma espécie de espectáculo em que os “actores” serviam aos miúdos de matéria de falatório maldoso: “Até o próprio coro lhe fazia impressão, era demasiado ligeiro e quase alegre, com aquelas raparigas mais velhas, no grupo à direita de Cristo, empertigadas durante os cânticos e depois com os cestos do ofertório a percorrer a igreja com roupas de cabaré, até os encherem de moedas de vinte e de cinquenta. Depois regressavam aos seus lugares junto ao altar, ao lado do corpo de Cristo sem roupa e em perigo eminente de cair da cruz.” E as tradições católicas das confissões em massa quatro vezes por anos com o confessionário austero reservado a pecados adultos, uma vez que a miudagem “inventariava “as suas faltas ao lado do padre, na sacristia.
Termino esta apresentação com algumas notações de ordem estética. Como o autor refere, a primeira versão do romance parecia um guião dos “Morangos com Açúcar transmontano”, o que significa aparecer o produto final depurado na sequência de cortes sucessivos e tidas como excrescências susceptíveis de desviar o interesse dos leitores para o acidental com prejuízo do essencial – os episódios protagonizados pelas criança, a sua mundividência num agora que poderia ter sido um tempo outro, num espaço que, como ficou dito, é, por acaso, uma aldeia transmontana. A contenção da narrativa é assegurada com o uso predominante do substantivo e do verbo e com uma economia do adjectivo e do advérbio de modo. Assim, com o mínimo de recurso ao enunciado descritivo, a acção avança rapidamente. Não se atrasa esta com a caracterização física e psicológica das personagens. O primeiro aspecto é secundário e o segundo fica entregue ao leitor a quem cabe, perante comportamentos e atitudes, traçar o perfil de cada uma.
A escrita é cativante e a sua riqueza está na simplicidade vocabular, na depuração, na economia de palavras, no tom enternecedor com lugar para a ironia e para a poesia e, tudo isto, em adequação inteligente ao teor geral do romance. Os ganapos quase não dialogam, mas o narrador dá-nos a sugestão das suas falas. A linguagem é corrente mas expressiva. Parece-nos, pois, que Tiago Patrício segue um dos princípios da Retórica de Aristóteles, segundo o qual “a primeira qualidade do estilo é a clareza”.
Termino com a leitura de excerto de um dos capítulos que mais me apaixonou:
“No dia em que o Alferes morreu, fizeram-lhe uma sepultura funda e no fim colocaram várias pedras em círculo e espetaram uma cruz por cima. Raquel quis que dessem as mãos e Edgar ficou agradado, mas Oscar não quis participar; no fundo achava aquele cão pouco activo, demasiado dependente das mulheres e afeiçoado às crianças mais pequenas e desastradas. Tinha mais simpatia pelo Forrete, com quem costumava ir atrás dos gatos e dos patos à volta do pequeno lago de cimento.
Então Raquel começou a dizer que desejava que o Alferes fosse para um lugar bom e olhou para Teodoro e pediu-lhe uma palavra de despedida. Ele lembrou-se de algumas orações possíveis para aquela hora, mas disse apenas, ‘que Deus guarde a sua alma para sempre!’”
4 de Agosto de 2012
1 comentário:
Por que não incluir,também,na relação de autores referidos,os nomes de João de Araújo Correia e Francisco José Viegas?
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