02 janeiro 2011

Fado Transmontano de José Carlos Ary dos Santos, uma leitura

Manuel Cardoso




O Fado Transmontano[1] de José Carlos Ary dos Santos (n. Lisboa, 7 de Dezembro de 1936 – m. Lisboa em 18 de Janeiro de 1984) é uma interessante letra em que se misturam as vontades do poeta como denunciante de injustiças, instrumento de libertação e portador da esperança. Mas em que o mesmo poeta, com um tique muito citadino, não consegue fugir ao preconceito de uma certa ideia de Trás-os-Montes, triste e desoladora, com as suas pedras duras e negras, altas montanhas, centeio duro, camas de vento, lençóis de sofrimento, pedra negra de tanta, tanta fome.
Esta visão citadina (que é uma deformação da realidade mas não uma caricatura ou uma falta de verdade – que alguma verdade há nela) tinha e tem uma correspondência com a vida ou, pelo menos, com uma parte da vida do que era todo esse mundo de Trás-os-Montes. Foi moda, aliás, foi uma visão de Trás-os-Montes cujo retrato existe numa literatura revisitada por muitas edições[2] e por alguma filmografia de que destacamos apenas os filmes Pedro Só, de Alfredo Tropa[3], e Trás-os-Montes, de António Reis e de Margarida Cordeiro[4]: a da vida dura, algo imóvel no espaço, atávica no tempo.
Sabia o poeta do que falava? Sabia, pois. JCAS tinha uma costela trasmontana ainda próxima que lhe fazia efervescer tal sentimento pela terra, a si trazido pelos genes e por alguma tradição familiar, já que o seu bisavô paterno foi um emigrado de Bragança para Lisboa[5], tendo nascido naquela cidade o seu avô, e ainda por conhecimento próprio das viagens que ele fez ao longo da vida.
Não sei quantas vezes JCAS terá estado em Trás-os-Montes mas algumas esteve. Se bem que, antes de escrever o fado e segundo Carlos do Carmo nos informou, não tinha cá vindo recentemente. Mas dir-se-ia, fazendo uma leitura deste poema, que a sua escrita é a de alguém que está ausente (e estava-o, de facto): os primeiros versos surgem como se estivesse a contemplar a ideia de Trás-os-Montes e não a terra, como se a tivesse visto de fora e disso se recordasse. Seria da imagem do Marão com que terá ficado das suas animadas estadias na Casa de Pascoaes[6], da visão da montanha a partir do poiso na varanda de Pascoaes, de onde este escreveu o Marânus[7], sobressalto de alma meditado na contemplação da distância e da vida? É uma forte probabilidade. Mas pode bem dizer-se que JCAS intui muito bem o sentimento especial de expatriamento[8] e, com isso, adquire a refracção com que vê o Trás-os-Montes do seu fado.
Para a visão trasmontana de Ary muito terá contribuído também toda a informação e propaganda que a política do tempo veiculava. Com efeito, para a clique partidária de esquerda instalada em Lisboa, os ecos que lhe chegavam, do Norte em geral e de Trás-os-Montes em particular, eram os de uma terra onde “os reaccionários e caciques” mantinham espezinhada e explorada, desde a Ditadura de Salazar, toda uma multidão escravizada que urgia “libertar”[9].
Com esta bagagem e com os flashes que ela proporcionava, JCAS escreve, a pedido de Carlos do Carmo, a letra para este fado. Seguindo a metodologia habitual: a música já existia quando a letra foi feita e foi esta moldada àquela. A música é de Carlos Paulo. O fado foi feito em 1978, tanto a letra como a música, segundo informação que nos foi prestada directamente por Carlos do Carmo, para quem o que salienta este trabalho é “a austeridade do arranjo musical que respeita a força de uma narrativa que contém muita dor”.

“Por trás da pedra dura pedra negra
para além destas encostas
um homem quando nasce é como a pedra
e o Marão volta-lhe as costas.”

Que Marão é este, do JCAS? Não é a serra homónima. É um Marão “para além destas encostas”, que volta as costas ao homem mas que o homem, como pedra, nasce para ele, feito de si mesmo: o Marão de JCAS é o Fado, o omnipresente do Destino, a Fortuna. Uma Fortuna dura, feita para andarilhos, feita para os que sabem, ou têm, de ir procurá-la algures, saltando:

“Ai! Como é duro este centeio
Com as altas montanhas pelo meio
E um homem que é um pássaro sem lar
Poderá por não ter chão, saltar.”

É a terra que põe fora os homens, com desconforto, a do centeio duro, das camas de vento, dos lençóis de sofrimento, dos cobertores de geada, de fontes estéreis, de sabor a nada e a frio. É uma terra de desolação e não se vive, não se pode viver, numa terra de desolação:

“Por detrás de Trás-os-Montes
é numa cama de vento
que se deitam horizontes
nos lençóis do sofrimento.
Por detrás de Trás-os-Montes
um cobertor de geada
gela a garganta das fontes
mas o frio não sabe a nada.”

Ora, como na concepção do poeta os trasmontanos seriam uns seres escravos anacrónicos de uma certa ideia de destino e fatalidade, o fado de homens assim só pode ser um fado triste e dorido, limitado na sua grandeza, cheio de mágoa:

“Por trás das mãos rugosas e da mágoa
para aquém desta grandeza
os homens transmontanos choram água
pelos olhos da tristeza.”

Mas a que acende uma luz de fuga, feita de inesperado patriotismo, “chora à portuguesa”, de um grito de raiva libertadora, “raiva maior que a pobreza”, de reconhecimento de que o homem não é um solitário, “e um homem que é um pássaro com lar / poderá tendo mulher, saltar.”

“Pois quando um homem chora à portuguesa
a raiva é maior do que a pobreza
e um homem que é um pássaro com lar
poderá tendo mulher, saltar.”

É muito curioso este verso que acabámos de ler, e ainda permite outras leituras. A condição para que a raiva seja maior que a pobreza é a de que o seu choro seja à portuguesa. Será um contraponto com a Galiza, com Leão e Castela, paredes-meias com Trás-os-Montes? Cremos que sim, uma subentendida farpa política, tão ao gosto do poeta, a Espanha. E o facto de que aqui se refere aos pássaros com lar, em complemento dos pássaros sem lar da segunda estrofe, é porque se dirige aos homens com família, “tendo mulher” e lar, pequenos lavradores, empregados ou proprietários, numa tentativa de alcançar todas as franjas sociais desfavorecidas, na óptica do poeta, e não apenas os referidos em primeiro, “sem lar”, proletários e, acima de tudo, solitários (a solidão foi sempre uma das fobias do JCAS ao longo da vida[10]).
Muito interessante este reconhecimento do núcleo familiar como uma forma de não solidão, ainda que as mulheres surjam em traços indesfarçavelmente arysianos, esculpidas em imagens construtivistas que estão, aliás, de acordo com a então recente mundividência de Ary[11], “a mulher é de granito / os seus braços duas pontes / entre o ventre e o infinito”, em que se sente ainda essa dimensão, recorrente na sua poesia, de serem os seres femininos aqueles que fazem a ponte para o infinito.
De certa forma, está aqui uma outra constante em Ary dos Santos, também presente noutros poemas e letras: a de que o homem, nascido num ventre, lugar misterioso e mágico em que se gera a vida, siga até ao infinito, lugar misterioso e mágico em que a vida, forçosamente, continuará, porque infinito. Acreditaria JCAS na vida para além da morte? Cremos que sim[12].
Os homens surgem invocados mais como seres aparentemente materiais, homens como pedras, homens como pássaros, homens sem lar, homens sem ter chão, homens que saltam, homens de mãos rugosas, homens que choram água (não choram lágrimas, choram água!), homens que choram à portuguesa, homens que são andarilho, homens que esquecem o nome. Qual o destino que lhes aponta Ary dos Santos? O de saltar, fugir do país, atravessar a fronteira custe o que custar, sem leis nem peias. Saltar[13]. Mas conservando as pontes com o esforço do trabalho lá fora, com braços que servem tanto para trabalhar como para abraçar, ligando a terra aos filhos, mantendo, em suma, o essencial da família:

“Por detrás de Trás-os-Montes
a mulher é de granito
os seus braços duas pontes
entre o ventre e o infinito
Por detrás de Trás-os-Montes
os homens são andarilhos
seus braços arcos das pontes
que ligam a terra aos filhos.”

Já no fim do fado, JCAS retoma a razão de ser de o escrever, o da denúncia da condição do homem em Trás-os-Montes, “anda tanta, tanta fome”, ao mesmo tempo que aponta uma forma de remissão de vida: “um homem quando emigra / esquece até o próprio nome.”

Por detrás da pedra negra
anda tanta, tanta fome
que um homem quando emigra
esquece até o próprio nome.
Em Trás-os-Montes chamado
Zé Mário no seu País
Seu nome está exilado
como se chama em Paris?

Este exílio do nome, “seu nome está exilado”, é uma expressão genial encontrada para dizer que não é apenas o homem, com o seu potencial de trabalho, que passou a fronteira. É mais do que isso. Num nome está o ser na sua dimensão material e transcendente, está o homem que se foi, que é e que será. O homem e o seu sonho, na sua terra mítica, Paris, o eldorado dos que fugiam de cá, desligado da fatalidade do seu começo, transformado nas possibilidades do seu devir: “como se chama em Paris?”.
É muito curioso que esta letra de fado não nos fale de liberdade de uma forma expressa, um tema muito caro a JCAS e presente em tantos dos seus poemas e letras, tal como não aponte a esperança como uma conclusão natural. Propositadamente, com certeza. É que a emigração, o “exílio em Paris”, a ida dos trasmontanos para as bidonvilles[14] não poderia nunca ser encarada como uma libertação. Era uma fuga a uma realidade dura, sem dúvida, mas uma fuga com o sabor amargo do exílio, de uma nova escravatura a troco da sobrevivência e de um melhor bem-estar social, um tudo esquecer e deixar para trás para que para trás ficasse a fome denunciada pelo poeta. No fundo, este fado denuncia uma fuga dos trasmontanos de si próprios: “um homem quando emigra / esquece até o próprio nome”, um despir da sua identidade – ou talvez não: “como se chama em Paris?”.
Este Fado Transmontano não deixa de ser um documento literário com muitas leituras. Propomos aqui uma delas. Assinalando com isto o mês em que se comemora a morte precoce deste poeta controverso que, com Trás-os-Montes, tinha e tem muito mais que ver do que apenas o ter escrito a letra de um fado com uma certa ideia da terra que ainda lhe corria nas veias.


manuel cardoso
Janeiro 2011


[1] Seguimos aqui a versão escrita em As Palavras das Cantigas, José Carlos Ary dos Santos, Edições Avante!, página 77.
[2] De que destacamos apenas, como exemplo, o Terra Fria, romance de Ferreira de Castro, editado em 1934 e reeditado numerosas vezes desde então.
[3] Pedro Só, longa-metragem de Alfredo Tropa, produzido em 1970-1971, estreado em 1972.
[4] Trás-os-Montes, de António Reis e Margarida Cordeiro, produção do Centro Português de Cinema, rodado em 1974-75 e estreado em 1976.
[5] Alfredo Carlos Gonçalves dos Santos (n. Bragança em 1 de Junho de 1854 e m. em Lisboa em 9 de Janeiro de 1912) foi bisavô do poeta, sendo de família de Bragança e de Vinhais e tendo ido para Lisboa, onde casou na igreja de Santa Isabel com D. Ermelinda da Conceição Portocarrero de Almada, n. Aldeia Galega da Merceana, e tendo vivido o resto da sua vida em Lisboa, se bem que o seu filho Carlos Ary Gonçalves dos Santos, avô de JCAS, tenha nascido ainda em Bragança em 27 de Maio de 1879. Cf. Anuário da Nobreza de Portugal, III, Tomo II, página 197 e em www.geneall.net . O apelido Santos poderá ser de origem espanhola e é introduzido por Maria dos Santos, nascida e com terras em Casares, Vinhais, onde contraiu matrimónio com André Gonçalves, natural dos Salgueiros, em 1775, sendo avós de Alfredo Carlos. Sobre esta ascendência transmontana de JCAS, veja-se um artigo do Pe. Manuel Teixeira na Brigantia, UM MISSIONÁRIO BRAGANÇANO NO ORIENTE, Brigantia Vol. XII nº. 2 pág. 145-149.
[6] Em Amarante, S. João de Gatão, onde JCAS foi num grupo em que estava também Natália Correia.
[7] Publicado em 1911, obra que é a “bíblia” do saudosismo. Teixeira de Pascoaes fez construir em granito e vidro, na varanda de sua casa, um pequeno compartimento anexo ao seu escritório, voltado para o Marão. Nele, em cima de uma mesa de pedra, escreveu o Marânus.
[8] “o expatriamento, antes de ser emigração” e “expatriamento, no apelo da fé, no fanatismo, bem como emigração interna e externa: esta, nas partes ultramarinas, africanas e europeias”, vide Ernesto Rodrigues in Literatura Transmontana e Alto-Duriense: uma região sem paredes.
[9] “reaccionários e caciques”, “libertar”, expressões correntes no léxico usado pelo poeta, se bem que não presentes nesta letra do fado em análise.
[11] Como é conhecido, JCAS era simpatizante do Partido Comunista Português, estalinista na sua teoria e praxis política.
[13] Saltar: atravessar a fronteira ilegalmente.
[14] Bidonvilles: bairros da lata de Paris e das grandes cidades francesas, onde se amontoavam os emigrantes em condições de vida com conforto inexistente, higiene precária e privações de todo o género.