28 janeiro 2013

Bibliografia do Distrito de Bragança



Ernesto Rodrigues

Na hora em que são editados os volumes III e IV da BdBBibliografia do Distrito de Bragança (Série Escritores – Jornalistas – Artistas), cumpre celebrar este projecto de Hirondino da Paixão Fernandes empreendido já nos anos 60, no Mensageiro de Bragança, e que teve em António Jorge Nunes, presidente da Câmara Municipal, o necessário apoio, acertado e justo. Farei, antes, breve historial da dicionarística literária em Portugal, de modo a enquadrar a BdB e perceber a importância de iniciativa tão fecunda quão honrosa para a Cultura do distrito.
Vidas, linhagens e genealogias, bibliografias, catálogos e relações de livrarias ou bibliotecas, são imprescindíveis na investigação: por mais enfadonhos, trazem sempre algo de fresco e útil. Os tenteios inaugurais de vida e obra vêm numa colecção manuscrita de Manuel Severim de Faria, Compendio de Varias Obras de Authores Portugueses (1613), e na vida de Camões, por Pedro de Mariz (1613), sendo Camões núcleo reflexivo desde Manuel de Lira (1591). Mas o século XVII – que também é o da Imprensa periódica, cujos dicionários interessam à literatura, e do impressionismo crítico no Hospital das Letras (1657; editado em 1721), após duplo esforço canonizador de Jacinto Cordeiro, Elogio de Poetas Lusitanos, e António de Sousa de Macedo, Flores de España..., ambos de 1631 – reserva dois monumentos singulares: a Biblioteca de João Franco Barreto = Biblioteca / Lusitana / Autores / Portuguesez / 1.ª Parte, etc., e Joanne [João] Soares de Brito, Theatrum Lusitaniae Litterarium [...], 1655. A Bibliotheca… consta de cinco volumes, e um sexto de Índices (de nomes, sobrenomes, pátrias dos autores), no total de 1180 páginas. Se a introdução data de 27 de Janeiro de 1648, a obra estende-se para lá de 1656. Cerca de mil autores é uma soma respeitável; este princípio de todos reunir, até os que versaram Direito Civil e Canónico, inspirará Diogo Barbosa Machado, Inocêncio Francisco da Silva… e Hirondino Fernandes. Outra preciosidade é o manuscrito Cathalogo dos Auctores Portugueses, de Manuel de Faria e Sousa (BN, COD. 361). Concomitantemente, urge compulsar os índices inquisitoriais quinhentistas e o Index Auctorum Damnatae Memoriae (1624). No conspecto europeu, consulte-se a Bibliotheca Scriptorum Societatis Jesu […], de Pedro de Rivadeneyra, 1643.
A Bibliotheca Hispana de Nicolau António (1672; ed. aumentada, 1783-1788) inspira a Bibliotheca Lusitana: Historica, Critica, e Cronológica [...]  (Lisboa, 4 vols.; 1741-1759; já em formato digital), que não se queda pelo impresso em língua portuguesa, como Inocêncio, mas evita anónimos. A BdB tem anónimos e estrangeiros, se atinentes ao distrito. Devedor de Franco Barreto, Barbosa é canibalizado por muitos. Conviria confrontá-lo com a “Memória de alguns escritores em todas as ciências da Companhia de Jesus”, título actualizado constante do apócrifo Cathalogos de Ministros e Memorias Varias (manuscrito após 1754; BN, COD. 1457). Bento José de Sousa Farinha faz, em 1206 páginas e três tomos, um Summario da Bibliotheca Luzitana (1786), despachando, no terceiro (1787), as letras L-Z. E, oportunista, acrescenta um quarto tomo de Bibliotheca Luzitana Escolhida (1786), o que é um bom exercício de cânone literário do tempo. Bibliotheca Lusitana Escolhida ou Catalogo dos Escriptores Portugueses será título de José Augusto Salgado (1841). O critério ora afina, ora relaxa. Exemplo de solução mista, em tempo de Ilustração nascente, é o Anno Historico, / Diario Portuguez, Noticia Abreviada / De pessoas grandes, e cousas notaveis de Portugal, [...], pelo Padre Mestre / Francisco de Santa Maria, 1744. Os três volumes, além de efemérides, biografam vultos, na linha do que farão os almanaques. No ano seguinte, temos o Corpus Illustrium Poetarum Lusitanorum qui Latine Scripserunt, [...] (8 tomos, 1745-1748), compilado pelos padres António dos Reis e Manuel Monteiro.
Enquanto isso, está por estudar a faceta dicionarística de Francisco Xavier de Oliveira, com dezenas de artigos sobre obras de portugueses em David Clément, Bibliothèque Curieuse Historique et Critique, ou Catalogue Raisonné des Livres Difficiles à Trouver (9 vols., 1750-1760). Deve ser confrontada com as suas Mémoires Historiques, Politiques et Littéraires, concernant le Portugal et toutes ses dépendances, avec la Bibliothèques des écrivains et des historiens de ces états, 2 vols., 1743. Diz-nos que o jesuíta Francisco da Cruz deixou Memorias Manuscritas para uma sonhada Bibliotheca Portuguesa.
Entre outras margens de dicionarização, em Setecentos, citemos uma Bibliotheca Portuguesa (1736-1741) e outra Bibliotheca Lusitana, em cinco volumes manuscritos, ambas com informação biobibliográfica de autores portugueses remetida a D. Francisco de Almeida (1701-1745; BN: COD. 908 e COD. 909-912). O Diccionario da Lingoa Portugueza (1793) fecha o século com um selecto cânone de autores.

De Inocêncio a Prado Coelho

O Diccionario Bibliographico Portuguez (1858; já digitalizado) vinha sendo pedido por Cunha Rivara celebrando Barbosa Machado, e propondo uma Bibliotheca Portugueza n’O Panorama (X, 30-IV-1853). Aquele Diccionario… é mais do que de Inocêncio. Continuado por Brito Aranha, Gomes de Brito, Álvaro Neves, o tomo XXI é dedicado a Herculano (1914), no pretexto centenarial (1910); o t. XXII (1923) fecha a série, em que só nos reencontramos se tivermos à mão João Soares de Sousa, Índice Alfabético (1938), ou um esforçado Ernesto Soares, Guia Bibliográfica, correspondendo ao tomo XXIII (1972), e que fora suplemento ao Boletim da Biblioteca da Universidade de Coimbra, vol. XXIII, 1958. No Rio de Janeiro, Sacramento Augusto Victorino Blake responsabilizou-se por outro Dicionário Bibliográfico Português. Sem indicação de tomo, está Martinho da Fonseca, Aditamentos ao Dicionário Bibliográfico Português (1927; 1972), já autor de Subsídios para Um Diccionario de Pseudonymos, Iniciaes e Obras Anonimas de Escriptores Portuguezes (1896; 1973), que podemos considerar o vigésimo quinto tomo de tão magno projecto. A paginação dos dez volumes da BdB não se ficará, todavia, atrás.
Vinte anos depois do primeiro Inocêncio, Ricardo Pinto de Mattos (que assinara Bibliographia Historica Portuguesa, 1850) traz precisões no Manual Bibliographico Portuguez de Livros Raros, Classicos e Curiosos (1878), revisto e prefaciado por Camilo Castelo Branco. Do estrangeiro, interessam-nos: Augustin et Aloïs de Backer, Bibliothèque des Écrivains de la Compagnie de Jésus, ou Notices Bibliographiques [...], 7 vols., 1853-1861; o médico setubalense Domingo García Peres, Catálogo Razonado Biográfico e Bibliográfico de los Autores Portugueses Que Escribieron en Castellano, 1890; Meyer Kayserling, Biblioteca Española-Portuguesa-Judaica. Dictionnaire bibliographique des auteurs juifs, de leurs ouvrages espagnols et portugais et des ouvres sur et contre les juifs..., 1890. Tirante isto, há o conceito de notabilidade, em que todos se misturam, seja no Álbum das Glórias de Rafael Bordalo Pinheiro, na Revista Contemporânea de Portugal e Brasil (1859-1865), nas necrologias do Novo Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro, em inaugurada biografia herculaniana de Júlio César Machado, “Notas para um dicionário dos portugueses notáveis do meu tempo”, A Illustração. Revista de Portugal e do Brazil (ano 5, v. 5, n.º 4, 20-II-1888). Desactualizados estão a Portuguese Bibliography (1922), de Aubrey Bell, e o Dicionário Universal de Literatura: Bio-Bibliográfico e Cronológico (1934, 1940), de Henrique Perdigão.
Ora, em 1 de Março de 1956, no suplemento ‘Artes e Letras’ do Diário de Notícias, Jacinto do Prado Coelho anunciava o Dicionário das Literaturas Portuguesa, Galega e Brasileira, cujo primeiro fascículo saiu em Agosto de 1956. Em Outubro de 1960, a Livraria Figueirinhas resumia tudo a um só volume, a duas colunas, páginas 3-880, com Addenda e corrigenda, Índice de nomes de autores, Índice de títulos de obras e revistas, Errata, até à p. 1021. A 2.ª edição atenta mais à literatura brasileira e à estilística: torna-se Dicionário das Literaturas Portuguesa, Brasileira, Galega e Estilística Literária, Temos dois volumes (A-M, 1969, 686 páginas; N-Z, 1971; total: 1527 páginas) a três colunas, ilustrações, e uma 3.ª edição em três (1976) e cinco volumes (1973), da qual decorre, nos anos 80 e 90, alegada 4.ª edição (desde 1992), e que, na prática, significa uma vintena de reimpressões. O texto de 1969-1971 mantém-se incólume até 2002-2003, quando, apoiado em Pires Laranjeira e José Viale Moutinho, coordenei três volumes de Actualização. Posso afirmar que conheço os agora oito volumes como as minhas mãos. Em 29 de Março de 1984, eu inserira no Diário de Lisboa o artigo “Um dicionário vergonhoso de Literatura Portuguesa”, vergastando um Dicionário de Literatura Portuguesa, sem data (1983?), e sem indicação de editor, de um certo José Correia do Souto, plagiando regularmente J. do Prado Coelho... Releve-se, nos 800 novos artigos para 958 páginas, a fecundidade das bibliografias – em que só a BdB o ultrapassa –, não raro mais extensas que o verbete.
A variedade contida no Dicionário de Literatura animou projectos afins ou de aprofundamento parcelar. Prometia muito o Grande Dicionário da Literatura Portuguesa e de Teoria Literária, I, 1977 (iniciou o 2.º vol., de que restaram fascículos soltos), dirigido por João José Cochofel. Tal promessa foi satisfatoriamente cumprida pela Biblos. Enciclopédia Verbo das Literaturas de Língua Portuguesa (5 vols., 1995-2005). Concretizou-se num volume o Dicionário de Literatura Portuguesa (1996; dir. de Álvaro Manuel Machado), pensado em termos só de autores, enquanto o Dicionário Cronológico de Autores Portugueses (6 vols., 1985-2001), pela informação quase exaustiva sobre nomes, é um manancial, mas sem particulares juízos críticos, nem orientações bibliográficas. O seu índice de pseudónimos deve ser complementado por Adriano Guerra Andrade, Dicionário de Pseudónimos e Iniciais de Escritores Portugueses (1999). Projectos internacionais não devem passar despercebidos (caso do Dicionário Biográfico Universal de Autores, 5 vols., 1966-1982); outros são inúteis, ou pouco menos (Fernanda Frazão, Maria Filomena Boavida, Pequeno Dicionário de Autores de Língua Portuguesa, 1983; O Dicionário / Literatura Portuguesa, vendido com o diário Público, 2004; Célia Vieira e Isabel Rio Novo, Literatura Portuguesa no Mundo. Dicionário Ilustrado, 2005, 12 vols.).
Por períodos ou movimentos, saudemos: Dicionário de Literatura Medieval Galega e Portuguesa (dir. de Giulia Lanciani e G. Tavani, 1993); Dicionário da Arte Barroca em Portugal (dir. de José Fernandes Pereira e Paulo Pereira, 1989); Dicionário do Romantismo Literário Português (coord. por Helena Carvalhão Buescu, 1997). Em nome próprio, o Dicionário de Eça de Queiroz (1988; 1993), organizado por A. Campos Matos, exigiu Suplemento (2000); o Dicionário de Camilo Castelo Branco (1989), testamento de Alexandre Cabral, saiu actualizado em 2003; qual díptico, chegou o Dicionário de Personagens da Novela Camiliana (dir. de Maria de Lourdes A. Ferraz, 2002).
Cidades, distritos, regiões e antigas possessões não se lamentem. Ficam exemplos, desde o fim do Antigo Regime, todos muito aquém da BdB, ainda que olhando somente ao critério literário: Francisco de Carvalho, Historia de Coimbra..., BN, COD. 905; Agostinho Tinoco, Dicionário dos Autores do Distrito de Leiria, 1979; João Afonso, Bibliografia Geral dos Açores. Sequência Açoriana do Dicionário Bibliográfico Português, 3 vols., 1985-1997; Padre Fernando Augusto da Silva e Carlos Azevedo de Meneses, Elucidário Madeirense, 3 vols., 1940-1946; fac-símile, 1998; Luiz Peter Clode, Registo Bio-Bibliográfico de Madeirenses. Sécs. XIX e XX, s. d.; Aleixo Manuel da Costa, Dicionário de Literatura Goesa, 3 vols., 1997. Do claustro saem inúmeros: baste Francisco Álvares Loureiro da Silva, Bibliografia dos Autores Trinitários Portugueses, 1996. As mulheres conquistam o seu Dicionário no Feminino (Séculos XIX-XX; dir. de Zília Osório de Castro, João Esteves, 2005). As crianças têm António Garcia Barreto, Dicionário da Literatura Infantil Portuguesa, 2002.
Entre profissões, destaquem-se militares, juristas e médicos: Francisco Augusto Martins de Carvalho, Diccionario Bibliographico Militar Portuguez, 1891; Eduardo Alves de Sá, Bibliographia Juridica Portugalensis, 1898, precedido de Ignacio da Costa Quintela, Bibliotheca Jurisconsultorum Lusitanorum, 1790, e do Demetrio Moderno ou Bibliographo Juridico Portuguez..., 1781, de António Barnabé de E. Barreto de Aragão; Gracinda Pais Brígida, Escritores Médicos Portugueses na Segunda Metade do Séc. XIX, 1948; Armando Moreno, Médicos Escritores Portugueses, 1990.
Pouco adiantaremos ao olhar para enciclopédias e dicionários estrangeiros que inscrevam os nossos autores; mas notem-se os brasileiros Celso Pedro Luft, Dicionário de Literatura Portuguêsa e Brasileira, 1967, e Massaud Moisés, org., Pequeno Dicionário de Literatura Portuguesa, 1981. No campo da teoria, importam alguns dicionários de termos literários (Harry Shaw, Massaud Moisés, António Moniz / Olegário Paz) ou o Dicionário de Narratologia, de Carlos Reis / Ana Cristina Macário Lopes, 1987.

Fonte de criação

Seria possível conjugar a diversidade de intenções acima resumida? Hirondino Fernandes disse que sim.
Por ordem de apelido, inclusive em pseudónimos e iniciais, aos nomes sucede indicação de lugar e data de nascimento e morte, se possíveis. As biografias são desiguais, quer em espaço, quer em método, mas suficientes. A riqueza está na bibliografia activa (manuscrita, dactilografada, mimeografada, impressa), por anos, e excertos úteis, nos títulos menos acessíveis. Intercalam remissões e fecha uma não raro extensa bibliografia passiva − acompanhada de eventuais ‘ecos da Imprensa’ −, só parcialmente referenciada no limiar do vol. I, onde seguem centenas de publicações periódicas consultadas. Nomes com parte de leão temos o Abade de Baçal (I, p. 341-350) ou Trindade Coelho (II, p. 429-706), aliás, inseridos em edições comemorativas.
Considere-se, entretanto, maioria de impressos, seja qual for o suporte, a extensão e qualidade. O senão de rastrear mero artigo de jornal, nem sempre de fácil atribuição, é que o autor pode não rever-se num passado que deseja rasurar. São mais aceitáveis, em termos de bibliografia activa, a revista e livro (e, mesmo, o recurso ao online), mas o efeito de desentranhar páginas inesperadas, que escapam aos autores, é prova de uma dedicação que nunca louvaremos assaz.
Com menos relevo, mas decisão fundada, estão os não naturais, cujos títulos respeitam ao distrito. É um olhar de fora, geralmente empático, que mostra interlocutores insuspeitados, para lá das fronteiras regionais, nacionais, linguísticas. Ver e ser visto torna-se, assim, mais fácil.
Se perde, em relação a Inocêncio ou Prado Coelho, na injustificada inclusão de brasileiros e galegos, embora alguns compareçam, por outras razões, a todos os dicionários sobreleva esta BdB, e não só em número de páginas: de escopo distrital, vai para lá deste chão, conjugando vocações, actividades, profissões, desde o título ou apelidos mais antigos, longe de serem todos forçosamente ilustres (muitos destes estão ausentes, por não entrarem na série). O critério editorial não-selectivo deixa entrever as principais dificuldades: uniformização, em tempo útil, de dados biográficos (ora com datas precisas, ora só os anos, por exemplo), várias interrogações, sobretudo, nos corpora bibliográficos. Mas só quem não investiga neste país desconhece as dificuldades.
Conjugando Barreto, Barbosa Machado e Inocêncio (na esperança de que o décimo volume, de índices, esclareça os caminhos), estamos em condições, agora, de ler o distrito em títulos, temas, conceitos, épocas, potencialidades, que entreabria Prado Coelho. Sendo a melhor fonte de um passado que ainda mal se conhece, com ganhos para estudiosos, que não terão pequenas surpresas, a inclusão dos mais novos ou de quem pratica as nossas especialidades ajuda-nos num acompanhamento próximo imediato. Já tínhamos as Memórias Arqueológico-Históricas… baçalianas; com a BdB, temos o segundo monumento cultural da nossa terra.    
        

O IMPREVISTO ACONTECE



Com a realidade jogamos ao faz de conta

De súbito, forte ventania, como surgida do nada, abateu-se nos plátanos que margeiam, pela esquerda, a via pública fez tombar no asfalto milhões de folhas que resistiam à morte inevitável e com elas encetou algo semelhante a um bailado, progredindo em círculos, e avançou até se perder de vista bem lá no extremo da rua. Em simultâneo, o céu, até então de um cinzento pacífico, escureceu antecipando a noite e prenunciando temporal. Caíram as primeiras gotas de chuva, finas e espaçadas antes, mais constantes a seguir, obrigando os transeuntes a protegerem-se com guarda-chuvas ou a correrem em busca de um abrigo.
Só então me apercebi de que não trouxera qualquer resguardo, remédio seria vencer aqueles dois hectómetros e meio com a minha neta de sete anos em corrida ao faz de conta. Duzentos e cinquenta metros para lá, outro tanto aquando do regresso. “E se, entretanto, a chuva tiver virado temporal?” questão recorrente em circunstâncias tais que também nesse momento me assalta, me tira a paz de espírito e perdura nessa hora e meia de permanência no recinto. Quem vai chegando não parece estar muito incomodado com o que acontece no exterior. Bom sinal! A preocupação decresce a um nível mais baixo. Mesmo sem sombreiro – curioso como, na aldeia, as pessoas resumiam com tal designação o objeto que podia resguardá-las tanto da chuva como do sol embora não seja adequado no primeiro caso preferindo o nome derivado ao composto talvez a pensar que, com ele cobertos, de certa maneira ficamos a uma sombra protetora – estamos à vontade, a minha neta leva um casaco que, depois de entrar no automóvel, lhe retiro sem que da sua falta advenha desconforto, basta ligar o ar condicionado.
Agora é noite fechada, conjugaram-se os humores do tempo e a precisão da meteorologia. Boa noite! Desapareceu o motivo da ansiedade que precede esses momentos de indefinição característicos do lusco-fusco. Aí pode começar o mistério que sempre vem associado ao período de treva. Em tempo não muito distante, a ausência de luz natural determinava muito mais do que a separação entre o dia e a noite, o trabalho e o repouso, a certeza e a dúvida, o movimento e a imobilidade, o balanço do dia que termina e a projeção do dia seguinte: o dia era associado à vida, a noite era o fechar dos olhos do dia, a ausência de luz natural, a morte. Receava-se a noite quase como se temia a morte, o sono era uma espécie de vida suspensa, entregue nas mãos de Deus, a morte era o descanso final, o não retorno. A convicção de que haveria esse retorno eis o que justifica o “quase” que alentava quem vivo era e confiava no Supremo Juiz que tinha o poder decisório sobre a nossa existência. O receio era fortalecido pela fraca iluminação que permitia alguma atividade no período entre o regresso a casa e a disposição dos corpos para o repouso. Candeias, candeeiros de mesa e lampiões a petróleo (querosene para os brasileiros), protegidos do vento por manga de vidro, bruxuleavam a guiar os passos naquele lapso de tempo, os primeiros dentro e o último fora de casa. Quando surgiram os “petromax”, que projetavam uma luz muito mais intensa e clara, o ambiente transformava-se, mudava a disposição das pessoas nos espaços circundantes. “Parece que é de dia!” - exclamavam. A eletrificação das casas também contribuiu para esbater a distinção entre o dia e a noite além da comodidade que trouxe, bastava “carregar no garabito” como dizia o Bebé, um pobre de espírito que fazia recados, transportava pequenas cargas e só pedia por retribuição que o deixassem pressionar o interruptor, prazer supremo, que outros não conhecia.
Bem pode dizer-se que, ao terminar a primeira metade do século XX, a vida era, ainda, a preto e branco. Na aldeia, os homens vestiam pardo ou roupa exterior de tonalidade baça, na cidade já o pardo fora abolido mas não a modesta variedade dos trajes, o luto obrigava homens e mulheres a vestir de negro durante um ano ou mais, as viúvas traziam a morte com elas para o resto dos seus dias, o que distinguia os eclesiásticos era o negro das batinas que usavam no dia a dia e nos atos religiosos, o escuro era sinónimo de castigo para as tolices das crianças: “ se continuas a fazer perrice, vais para o quarto escuro.” Por contraste, brancos eram os lençóis em camas de gente remediada ou rica; as toalhas que revestiam altares e mesas de quase todas as famílias em dias de festa, diariamente para as mais abonadas; as roupas de batismo e a toalha que limpava a cabecinha dos neófitos após o derramamento da água sacramental; as camisas dos homens nos domingos e dias de festa; meias e agasalhos para todos no tempo frio de outono e de inverno que pressupunha cultivo do linho ou posse de ovelhas porque dinheiro nem sempre havia para comprar novelos de lã.
O toque dos sinos às Ave-Marias quando clareava era um grito de alegria e agradecimento a Deus por mais um dia de vida, o mesmo toque às Trindades tão logo o sol se despedia e as primeiras sombras já adormentavam a Natureza, conquanto representasse alívio da labuta diária e chamada ao reagrupamento familiar, vinha marcado por uma indefinível emoção entre o regozijo da convivência e a pena da despedida. O simbolismo da noite em relação à morte trazia consigo o desejo de distanciamento de tudo quanto lembrasse o momento fatal: na igreja enquanto lugar onde eram celebradas as exéquias, se expunham os mortos antes da encomendação e, durante séculos, se enterraram os corpos; o cemitério, espaço onde todos os moradores tinham familiares sepultados e destino certo dos que ainda conservavam o precioso dom da vida; a igreja e o cemitério em conjunto, por isso duplamente atemorizante, a presença, materialmente silenciosa, de Deus na Sua morada e a ausência dos que nos pertenceram e se tornaram pó, a perspetiva para nós tão certa quanto aterrorizadora, a certeza da morte e o temor, que não gostamos de admitir, de, um dia, ela nos vir buscar. Cito Gonçalo M. Tavares em crónica publicada no número 1025 da revista Visão: o medo da morte e o medo dos mortos. Os relatos sobre esse temor diante do cadáver, esse não querer tocar. Talvez uma lembrança inconsciente da peste negra. Aí, o morto matava: tocar na morte era correr um risco (…) Hoje ainda, no século XXI, a lógica, a medicina e a racionalidade podem dizer-nos que não, que é absurdo, mas o inconsciente ali está…”
Na minha aldeia, o cemitério ficava ao lado da igreja, cercados pelo mesmo muro. À noite, as pessoas transitavam pelos caminhos contíguos de coração apertado tentando desviar os olhos desse lado, ainda que a morada divina devesse merecer-nos toda a confiança e do campo santo nada tivéssemos a recear porque os mortos não voltam. António Lobo Antunes, numa entrevista concedida à rádio TSF por ocasião da “Escritaria”, em Outubro passado, em sua homenagem, referia-se a alguém que nunca ia ao cemitério “porque nesses lugares não estava ninguém”. “Então onde estão os mortos?” – perguntavam-lhe. “Andam por aí. – explicava essa pessoa – falam connosco, dão-nos as suas opiniões, fazem-nos companhia, sentimo-las ao nosso lado.” E Lobo Antunes acrescentava: “Tinha razão. Eu ouço-os, distingo-lhes as vozes, compreendo o que me dizem…” Houve uma pessoa que nunca manifestou receio de dirigir-se à igreja a qualquer hora da noite como do dia. Foi zeladora do Santíssimo Sacramento durante alguns anos. Uma lâmpada, suspensa do teto e permanentemente acesa, simbolizava a eternidade de Deus e da sua presença entre os homens. O depósito de azeite alimentava uma torcida cujo pavio teria que ser substituído de quando em quando, presumo que de quatro em quatro horas. Essa era a principal tarefa da zeladora: nunca deixar que a luz se extinguisse porque simbolizava a fé das pessoas da comunidade e a sua homenagem a Jesus Sacramentado. No outono e no inverno anoitece mais cedo mas, na claridade do dia ou na escuridão da noite, lá ia ela renovar o pavio da lâmpada. Essa mulher, a pessoa mais corajosa que conheci, era a minha mãe.
                                                                                                                                             Nuno Afonso

Publicado in “A Voz de Ermesinde” a 30 de novembro de 2012