Com a realidade jogamos ao faz de
conta
De
súbito, forte ventania, como surgida do nada, abateu-se nos plátanos que
margeiam, pela esquerda, a via pública fez tombar no asfalto milhões de folhas
que resistiam à morte inevitável e com elas encetou algo semelhante a um
bailado, progredindo em círculos, e avançou até se perder de vista bem lá no
extremo da rua. Em simultâneo, o céu, até então de um cinzento pacífico,
escureceu antecipando a noite e prenunciando temporal. Caíram as primeiras
gotas de chuva, finas e espaçadas antes, mais constantes a seguir, obrigando os
transeuntes a protegerem-se com guarda-chuvas ou a correrem em busca de um
abrigo.
Só
então me apercebi de que não trouxera qualquer resguardo, remédio seria vencer
aqueles dois hectómetros e meio com a minha neta de sete anos em corrida ao faz
de conta. Duzentos e cinquenta metros para lá, outro tanto aquando do regresso.
“E se, entretanto, a chuva tiver virado temporal?” questão recorrente em
circunstâncias tais que também nesse momento me assalta, me tira a paz de
espírito e perdura nessa hora e meia de permanência no recinto. Quem vai
chegando não parece estar muito incomodado com o que acontece no exterior. Bom
sinal! A preocupação decresce a um nível mais baixo. Mesmo sem sombreiro –
curioso como, na aldeia, as pessoas resumiam com tal designação o objeto que
podia resguardá-las tanto da chuva como do sol embora não seja adequado no
primeiro caso preferindo o nome derivado ao composto talvez a pensar que, com
ele cobertos, de certa maneira ficamos a uma sombra protetora – estamos à
vontade, a minha neta leva um casaco que, depois de entrar no automóvel, lhe
retiro sem que da sua falta advenha desconforto, basta ligar o ar condicionado.
Agora
é noite fechada, conjugaram-se os humores do tempo e a precisão da
meteorologia. Boa noite! Desapareceu o motivo da ansiedade que precede esses
momentos de indefinição característicos do lusco-fusco. Aí pode começar o
mistério que sempre vem associado ao período de treva. Em tempo não muito
distante, a ausência de luz natural determinava muito mais do que a separação
entre o dia e a noite, o trabalho e o repouso, a certeza e a dúvida, o
movimento e a imobilidade, o balanço do dia que termina e a projeção do dia
seguinte: o dia era associado à vida, a noite era o fechar dos olhos do dia, a
ausência de luz natural, a morte. Receava-se a noite quase como se temia a
morte, o sono era uma espécie de vida suspensa, entregue nas mãos de Deus, a
morte era o descanso final, o não retorno. A convicção de que haveria esse
retorno eis o que justifica o “quase” que alentava quem vivo era e confiava no
Supremo Juiz que tinha o poder decisório sobre a nossa existência. O receio era
fortalecido pela fraca iluminação que permitia alguma atividade no período
entre o regresso a casa e a disposição dos corpos para o repouso. Candeias,
candeeiros de mesa e lampiões a petróleo (querosene para os brasileiros),
protegidos do vento por manga de vidro, bruxuleavam a guiar os passos naquele
lapso de tempo, os primeiros dentro e o último fora de casa. Quando surgiram os
“petromax”, que projetavam uma luz muito mais intensa e clara, o ambiente
transformava-se, mudava a disposição das pessoas nos espaços circundantes.
“Parece que é de dia!” - exclamavam. A eletrificação das casas também
contribuiu para esbater a distinção entre o dia e a noite além da comodidade
que trouxe, bastava “carregar no garabito” como dizia o Bebé, um pobre de
espírito que fazia recados, transportava pequenas cargas e só pedia por retribuição
que o deixassem pressionar o interruptor, prazer supremo, que outros não conhecia.
Bem
pode dizer-se que, ao terminar a primeira metade do século XX, a vida era,
ainda, a preto e branco. Na aldeia, os homens vestiam pardo ou roupa exterior
de tonalidade baça, na cidade já o pardo fora abolido mas não a modesta
variedade dos trajes, o luto obrigava homens e mulheres a vestir de negro
durante um ano ou mais, as viúvas traziam a morte com elas para o resto dos
seus dias, o que distinguia os eclesiásticos era o negro das batinas que usavam
no dia a dia e nos atos religiosos, o escuro era sinónimo de castigo para as
tolices das crianças: “ se continuas a fazer perrice, vais para o quarto
escuro.” Por contraste, brancos eram os lençóis em camas de gente remediada ou
rica; as toalhas que revestiam altares e mesas de quase todas as famílias em
dias de festa, diariamente para as mais abonadas; as roupas de batismo e a
toalha que limpava a cabecinha dos neófitos após o derramamento da água sacramental;
as camisas dos homens nos domingos e dias de festa; meias e agasalhos para
todos no tempo frio de outono e de inverno que pressupunha cultivo do linho ou
posse de ovelhas porque dinheiro nem sempre havia para comprar novelos de lã.
O
toque dos sinos às Ave-Marias quando clareava era um grito de alegria e
agradecimento a Deus por mais um dia de vida, o mesmo toque às Trindades tão
logo o sol se despedia e as primeiras sombras já adormentavam a Natureza,
conquanto representasse alívio da labuta diária e chamada ao reagrupamento
familiar, vinha marcado por uma indefinível emoção entre o regozijo da
convivência e a pena da despedida. O simbolismo da noite em relação à morte
trazia consigo o desejo de distanciamento de tudo quanto lembrasse o momento
fatal: na igreja enquanto lugar onde eram celebradas as exéquias, se expunham
os mortos antes da encomendação e, durante séculos, se enterraram os corpos; o
cemitério, espaço onde todos os moradores tinham familiares sepultados e
destino certo dos que ainda conservavam o precioso dom da vida; a igreja e o
cemitério em conjunto, por isso duplamente atemorizante, a presença,
materialmente silenciosa, de Deus na Sua morada e a ausência dos que nos
pertenceram e se tornaram pó, a perspetiva para nós tão certa quanto
aterrorizadora, a certeza da morte e o temor, que não gostamos de admitir, de,
um dia, ela nos vir buscar. Cito Gonçalo M. Tavares em crónica publicada no
número 1025 da revista Visão: o medo da morte e o medo dos mortos. Os relatos
sobre esse temor diante do cadáver, esse não querer tocar. Talvez uma lembrança
inconsciente da peste negra. Aí, o morto matava: tocar na morte era correr um
risco (…) Hoje ainda, no século XXI, a lógica, a medicina e a racionalidade
podem dizer-nos que não, que é absurdo, mas o inconsciente ali está…”
Na
minha aldeia, o cemitério ficava ao lado da igreja, cercados pelo mesmo muro. À
noite, as pessoas transitavam pelos caminhos contíguos de coração apertado
tentando desviar os olhos desse lado, ainda que a morada divina devesse
merecer-nos toda a confiança e do campo santo nada tivéssemos a recear porque
os mortos não voltam. António Lobo Antunes, numa entrevista concedida à rádio TSF
por ocasião da “Escritaria”, em Outubro passado, em sua homenagem, referia-se a
alguém que nunca ia ao cemitério “porque nesses lugares não estava ninguém”.
“Então onde estão os mortos?” – perguntavam-lhe. “Andam por aí. – explicava
essa pessoa – falam connosco, dão-nos as suas opiniões, fazem-nos companhia,
sentimo-las ao nosso lado.” E Lobo Antunes acrescentava: “Tinha razão. Eu
ouço-os, distingo-lhes as vozes, compreendo o que me dizem…” Houve uma pessoa
que nunca manifestou receio de dirigir-se à igreja a qualquer hora da noite
como do dia. Foi zeladora do Santíssimo Sacramento durante alguns anos. Uma
lâmpada, suspensa do teto e permanentemente acesa, simbolizava a eternidade de
Deus e da sua presença entre os homens. O depósito de azeite alimentava uma
torcida cujo pavio teria que ser substituído de quando em quando, presumo que
de quatro em quatro horas. Essa era a principal tarefa da zeladora: nunca
deixar que a luz se extinguisse porque simbolizava a fé das pessoas da
comunidade e a sua homenagem a Jesus Sacramentado. No outono e no inverno
anoitece mais cedo mas, na claridade do dia ou na escuridão da noite, lá ia ela
renovar o pavio da lâmpada. Essa mulher, a pessoa mais corajosa que conheci,
era a minha mãe.
Nuno Afonso
Publicado in “A
Voz de Ermesinde” a 30 de novembro de 2012
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