10 julho 2014

Setenta anos de NOVOS CONTOS DA MONTANHA de Miguel Torga,por M. Hercília Agarez


Nirvana

Paz da montanha, meu alívio certo.
O girassol do mundo, aberto,
E o coração a vê-lo sossegado.
Fresco e purificado,
O ar que se respira.
Os acordes da lira
Audíveis no silêncio do cenário.
A bem-aventurança sem mentira:
Asas nos pés e o céu desnecessário.

                                                                                                    Miguel Torga, in Diário VII


    Montanha. Palavra mágica para o poeta que nasceu no meio das fragas transmontanas onde crescem a urze, a giesta e o rosmaninho. E também os tojos que lhe inspiram um traço de autocaracterização – “tojo arnal”. Torga é como as rochas que o embalaram – duro, resistente à erosão, poiso para descanso, solitário. “Eu sou um homem de granito”, afirma.
    Dividido entre o mar e a terra – “eu sou um animal anfíbio” – é ela a sua matriz, a sua pátria, a sua raiz, o seu paraíso, o seu “chão sagrado”.  E de toda esta “nesga de terra debruada de mar” sobressai, em toda a sua evidência, a paixão por Trás-os-Montes. Ele o diz numa entrada do Diário VII escrita no Gerês: “[…] O pouco que sou devo-o às fragas. Foi a pisá-las que aprendi a conhecer a dureza do mundo e a admirar o ímpeto que se não resigna à lisa sonolência duma paz interior espalmada. A inquietação da terra vê-se nos montes. […]”
   Veio à luz em S. Martinho de Anta, “debaixo de telha”, já que a mãe andava, naquele dia 12 de Agosto de 1907, a juntar o milho na eira contígua ao casebre paterno, com uma vassoura de codessos, quando lhe rebentaram as águas. Na aldeia foi o aluno mais distinto do professor Botelho, mas também um garoto travesso como os ganapos com quem brincava.
    Inteligente, precoce observador da realidade social que rodeava a sua infância, familiarizado com o quotidiano rural , pequeno aprendiz de tarefas agrícolas, estranhamente consciente da sua dureza  e da exploração do trabalhador, a sua memória guardará até ao fim esse passado. Com as raízes tão fundamente enterradas no solo nativo como a torga que lhe deu o apelido de artista, não admira que a obsessão da montanha física e humana lhe tenha inspirado muitos  poemas, uma peça de teatro (Terra Firme), comunicações, incontáveis entradas nos dezasseis volumes do Diário, colectâneas de contos.
    Em 1941 publicou o livro Montanha, logo apreendido pela censura. Embora impermeável a quaisquer influências de correntes literárias, os contos não andavam longe dos pressupostos da corrente neo-realista cujo marco foi Gaibéus, de Alves Redol, datado de 1940. Em 1955 sairá uma segunda edição no Rio de Janeiro com o título Contos da Montanha que viajou clandestinamente até ao nosso país. A terceira edição, de 1962, é ainda da responsabilidade de um país que consumiu a adolescência do então Adolfo Rocha.
    Mas não é este conjunto de histórias de vida protagonizadas pela gente iletrada e humilde da sua região que justifica esta breve abordagem. O que pretendemos, neste ano de 2014, é assinalar o septuagésimo aniversário da primeira edição de Novos Contos da Montanha de que constam dezassete narrativas às quais vieram a juntar-se seis nas edições posteriores, revistas, refundidas, aumentadas, com prefácios (três delas). Curioso é que o autor tenha excluído de todas elas o conto “Firmeza”, talvez o mais cruamente acusatório da tirania dos “senhores” com aqueles desgraçados sem poder reivindicativo e com receio de perderem o magro ganha-pão.
    Novos Contos vêm dar sequência ficcionada aos Contos. O mesmo cenário, a mesma atracção pelas alturas rochosas, personagens de nomes e vidas diferentes, mas protagonizando dramas próprios da sua qualidade de gente rude, humilde, frontal, autêntica. Contos, quase todos eles, de desenlace intuído pelo leitor que conhece a massa de que são feitos homens e mulheres a quem o destino ditou a desgraça na vida e na morte.
    Deste livro foram feitas quinze edições em português. Foi traduzido para polaco e para castelhano, tendo sido ultrapassado por Bichos que chegou à 19ª edição (1995) e teve traduções em sete línguas.
    Socorramo-nos de excerto da prefácio à terceira edição (1952) para compreender o espírito que presidiu à escrita destes contos:

                                                                                     Leitor amigo:

    […] Painel tosco e montanhês, como sabes. Mas nosso, quer queiramos, quer não, e dos outros também, quando a curiosidade dos outros der a volta ao mundo.
Então, embora sorriam da ingénua pintura do artista, hão-de certamente render-se à penitente grandeza desses irmãos serranos, que se purificam com o sofrimento universal num purgatório de chamas transmontanas.

    Na conferência proferida em Pedras Salgadas em 1941, durante o Segundo Congresso Transmontano – Um Reino Maravilhoso (Trás-os-Montes) – , posteriormente incluída em PORTUGAL, Miguel Torga, numa análise exaustiva da realidade transmontana em todas as suas vertentes, define o carácter do homem que, como ele, se plasmou nos rigores de um cantinho esquecido e abandonado, mau grado as suas potencialidades materiais e imateriais. E escreve:

    […] Homens de uma só peça, inteiriços, altos e espadaúdos, que olham de frente e têm no rosto as mesmas rugas do chão. Castiços nos usos e costumes, cobrem-se com varinos, croças, capuchas e mais roupas de serrobeco ou de colmo, e nas grandes ocasiões ostentam uma capa de honras, que nenhum rei!
    […] Fiéis à palavra dada, amigos do seu amigo, valentes e leais, é movidos por altos sentimentos que matam ou morrem. Ufanos da alma que herdaram querem-na sempre lavada, nem que seja com sangue. A lendária franqueza que vem nos livros, é deles, realmente. […]

    Com efeito, se bem que as personagens das narrativas se movam num chão geograficamente assinalado e que se divide entre Trás-os-Montes e o Alto-Douro, se a acção de cada uma decorre num tempo determinado (década de quarenta do século passado), os sentimentos que os movem, por serem humanos, bons e maus, transformam-nos em heróis (ou anti-heróis) intemporais e universais. Traços como o trabalho resignado, a aplicação da justiça segundo a Pena de Talião, a defesa da honra, a solidariedade, a conciliação do divino com o profano, o espírito do antes quebrar que torcer, o ciúme, a aceitação do destino traçado por Deus, tudo isto e não só, confirma aquela frase do escritor que qualquer torguiano que se preze gosta de citar: “O universal é o local sem paredes” com que o homem de S. Martinho enceta um parágrafo da conferência “Trás-os-Montes no Brasil” apresentada no Rio de Janeiro e em S. Paulo em 1954 e que continua assim:

É o autêntico que pode ser visto de todos os lados, e em todos os lados está certo, como a verdade. Ora Trás-os-Montes é uma realidade sem muros, esse torrão aberto aos olhos do mundo, cioso de lhe pertencer e de o servir.

    Ler os contos de Miguel Torga é compreender a identidade transmontana do “Entre quem é!” que o tempo empurrou para o abismo. É conhecer uma realidade a que a efabulação não retirou verosimilhança. É recuar ao passado para melhor valorizar o presente. É degustar uma escrita viva, exemplar, emotiva, poética, despojada. É regalar-se o leitor com o tipicismo da linguagem regional, comover-se com dramas irreversíveis, revoltar-se com desenlaces catárticos. É mostrarmo-nos dignos do legado literário de um comprovinciano que voou mais alto sem perder, como escreveu, “a virgindade do coração”. Um homem a quem arrancaram do berço e que nunca consegui enraizar-se em nenhum outro lugar.
     “Vou e venho. Perco-me por lá, encontro-me aqui”, escreve numa visita às berças onde se desloca para “tonificar a esperança”, para ir em busca da “estabilidade perdida”, para, pisando a terra, sentir a inexpugnabilidade de Anteu.

    S. Martinho de Anta, 20 de Setembro de 1968 – De todos os mitos de que tenho notícia, é o de Anteu que mais admiro e mais vezes ponho à prova, sem me esquecer, evidentemente, de reduzir o tamanho do gigante à escala humana, e o corpo divino da Terra olímpica ao chão natural de Trás-os-Montes. […] Sempre que, prestes a sucumbir ao morbo do desalento, toco uma destas fragas, todas as energias perdidas começam de novo a correr-me nas veias. É como se recebesse instantaneamente uma transfusão de seiva.
[…] Devotado de corpo e alma a estes montes, não concebo desgraça maior do que deixá-los para sempre na sombra de uma saudade desiludida. […]

                                                                                                                                              Diário XI



M. Hercília Agarez, Julho de 2014