Nirvana
Paz da montanha, meu alívio
certo.
O girassol do mundo, aberto,
E o coração a vê-lo sossegado.
Fresco e purificado,
O ar que se respira.
Os acordes da lira
Audíveis no silêncio do
cenário.
A bem-aventurança sem mentira:
Asas nos pés e o céu
desnecessário.
Miguel Torga, in Diário VII
Montanha. Palavra mágica para o poeta que
nasceu no meio das fragas transmontanas onde crescem a urze, a giesta e o
rosmaninho. E também os tojos que lhe inspiram um traço de autocaracterização –
“tojo arnal”. Torga é como as rochas que o embalaram – duro, resistente à
erosão, poiso para descanso, solitário. “Eu sou um homem de granito”, afirma.
Dividido entre o mar e a terra – “eu sou um
animal anfíbio” – é ela a sua matriz, a sua pátria, a sua raiz, o seu paraíso,
o seu “chão sagrado”. E de toda esta
“nesga de terra debruada de mar” sobressai, em toda a sua evidência, a paixão
por Trás-os-Montes. Ele o diz numa entrada do Diário VII escrita no Gerês: “[…] O pouco que sou devo-o às fragas.
Foi a pisá-las que aprendi a conhecer a dureza do mundo e a admirar o ímpeto
que se não resigna à lisa sonolência duma paz interior espalmada. A inquietação
da terra vê-se nos montes. […]”
Veio à
luz em S. Martinho de Anta, “debaixo de telha”, já que a mãe andava, naquele
dia 12 de Agosto de 1907, a juntar o milho na eira contígua ao casebre paterno,
com uma vassoura de codessos, quando lhe rebentaram as águas. Na aldeia foi o
aluno mais distinto do professor Botelho, mas também um garoto travesso como os
ganapos com quem brincava.
Inteligente, precoce observador da realidade social que
rodeava a sua infância, familiarizado com o quotidiano rural , pequeno aprendiz
de tarefas agrícolas, estranhamente consciente da sua dureza e da exploração do trabalhador, a sua memória
guardará até ao fim esse passado. Com as raízes tão fundamente enterradas no
solo nativo como a torga que lhe deu o apelido de artista, não admira que a
obsessão da montanha física e humana lhe tenha inspirado muitos poemas, uma peça de teatro (Terra Firme), comunicações, incontáveis
entradas nos dezasseis volumes do Diário,
colectâneas de contos.
Em 1941 publicou o livro Montanha, logo apreendido pela censura.
Embora impermeável a quaisquer influências de correntes literárias, os contos não
andavam longe dos pressupostos da corrente neo-realista cujo marco foi Gaibéus, de Alves Redol, datado de 1940.
Em 1955 sairá uma segunda edição no Rio de Janeiro com o título Contos da Montanha que viajou
clandestinamente até ao nosso país. A terceira edição, de 1962, é ainda da responsabilidade
de um país que consumiu a adolescência do então Adolfo Rocha.
Mas não é este conjunto de histórias de
vida protagonizadas pela gente iletrada e humilde da sua região que justifica
esta breve abordagem. O que pretendemos, neste ano de 2014, é assinalar o
septuagésimo aniversário da primeira edição de Novos Contos da Montanha de que constam dezassete narrativas às
quais vieram a juntar-se seis nas edições posteriores, revistas, refundidas,
aumentadas, com prefácios (três delas). Curioso é que o autor tenha excluído de
todas elas o conto “Firmeza”, talvez o mais cruamente acusatório da tirania dos
“senhores” com aqueles desgraçados sem poder reivindicativo e com receio de
perderem o magro ganha-pão.
Novos Contos vêm dar sequência ficcionada
aos Contos. O mesmo cenário, a mesma atracção pelas alturas rochosas,
personagens de nomes e vidas diferentes, mas protagonizando dramas próprios da
sua qualidade de gente rude, humilde, frontal, autêntica. Contos, quase todos
eles, de desenlace intuído pelo leitor que conhece a massa de que são feitos
homens e mulheres a quem o destino ditou a desgraça na vida e na morte.
Deste livro foram feitas quinze edições em
português. Foi traduzido para polaco e para castelhano, tendo sido ultrapassado
por Bichos que chegou à 19ª edição
(1995) e teve traduções em sete línguas.
Socorramo-nos de excerto da prefácio à
terceira edição (1952) para compreender o espírito que presidiu à escrita
destes contos:
Leitor
amigo:
[…] Painel tosco e montanhês, como sabes.
Mas nosso, quer queiramos, quer não, e dos outros também, quando a curiosidade
dos outros der a volta ao mundo.
Então, embora sorriam da ingénua pintura do artista, hão-de certamente
render-se à penitente grandeza desses irmãos serranos, que se purificam com o
sofrimento universal num purgatório de chamas transmontanas.
Na conferência proferida em Pedras Salgadas
em 1941, durante o Segundo Congresso Transmontano – Um Reino Maravilhoso (Trás-os-Montes)
– , posteriormente incluída em PORTUGAL,
Miguel Torga, numa análise exaustiva da realidade transmontana em todas as suas
vertentes, define o carácter do homem que, como ele, se plasmou nos rigores de
um cantinho esquecido e abandonado, mau grado as suas potencialidades materiais
e imateriais. E escreve:
[…] Homens de uma só peça,
inteiriços, altos e espadaúdos, que olham de frente e têm no rosto as mesmas
rugas do chão. Castiços nos usos e costumes, cobrem-se com varinos, croças,
capuchas e mais roupas de serrobeco ou de colmo, e nas grandes ocasiões
ostentam uma capa de honras, que nenhum rei!
[…] Fiéis à palavra dada, amigos do seu
amigo, valentes e leais, é movidos por altos sentimentos que matam ou morrem.
Ufanos da alma que herdaram querem-na sempre lavada, nem que seja com sangue. A
lendária franqueza que vem nos
livros, é deles, realmente. […]
Com
efeito, se bem que as personagens das narrativas se movam num chão
geograficamente assinalado e que se divide entre Trás-os-Montes e o Alto-Douro,
se a acção de cada uma decorre num tempo determinado (década de quarenta do
século passado), os sentimentos que os movem, por serem humanos, bons e maus,
transformam-nos em heróis (ou anti-heróis) intemporais e universais. Traços como
o trabalho resignado, a aplicação da justiça segundo a Pena de Talião, a defesa
da honra, a solidariedade, a conciliação do divino com o profano, o espírito do
antes quebrar que torcer, o ciúme, a aceitação do destino traçado por Deus,
tudo isto e não só, confirma aquela frase do escritor que qualquer torguiano
que se preze gosta de citar: “O universal é o local sem paredes” com que o
homem de S. Martinho enceta um parágrafo da conferência “Trás-os-Montes no
Brasil” apresentada no Rio de Janeiro e em S. Paulo em 1954 e que continua
assim:
É o
autêntico que pode ser visto de todos os lados, e em todos os lados está certo,
como a verdade. Ora Trás-os-Montes é uma realidade sem muros, esse torrão
aberto aos olhos do mundo, cioso de lhe pertencer e de o servir.
Ler os contos de Miguel Torga é compreender
a identidade transmontana do “Entre quem é!” que o tempo empurrou para o
abismo. É conhecer uma realidade a que a efabulação não retirou verosimilhança.
É recuar ao passado para melhor valorizar o presente. É degustar uma escrita
viva, exemplar, emotiva, poética, despojada. É regalar-se o leitor com o
tipicismo da linguagem regional, comover-se com dramas irreversíveis,
revoltar-se com desenlaces catárticos. É mostrarmo-nos dignos do legado
literário de um comprovinciano que voou mais alto sem perder, como escreveu, “a
virgindade do coração”. Um homem a quem arrancaram do berço e que nunca
consegui enraizar-se em nenhum outro lugar.
“Vou e venho. Perco-me por lá, encontro-me
aqui”, escreve numa visita às berças onde se desloca para “tonificar a
esperança”, para ir em busca da “estabilidade perdida”, para, pisando a terra,
sentir a inexpugnabilidade de Anteu.
S. Martinho de Anta, 20 de Setembro de 1968 – De todos os mitos de
que tenho notícia, é o de Anteu que mais admiro e mais vezes ponho à prova, sem
me esquecer, evidentemente, de reduzir o tamanho do gigante à escala humana, e
o corpo divino da Terra olímpica ao chão natural de Trás-os-Montes. […] Sempre
que, prestes a sucumbir ao morbo do desalento, toco uma destas fragas, todas as
energias perdidas começam de novo a correr-me nas veias. É como se recebesse
instantaneamente uma transfusão de seiva.
[…] Devotado de corpo e alma a estes montes, não concebo desgraça maior
do que deixá-los para sempre na sombra de uma saudade desiludida. […]
Diário XI
M.
Hercília Agarez, Julho de 2014
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