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31 dezembro 2017
Cântico Infantil de Natal
Este Menino Jesus
que nasce na minha aldeia
é muito mais pobre ainda
do que Jesus da Judeia.
Veste camisa de linho
há mil anos por lavar,
sem botões nem colarinho,
tiras soltas pelo ar.
Calças rotas nos joelhos.
lá vai pedindo esmola
que pelas benditas almas
logo mete na sacola.
Longos cabelos pingando,
pés descalços pelo chão…
Lá vai o nosso Jesus
todo inteiro-coração!
Vai depressa não sei onde
com vontade de chegar…
Talvez onde o pão abonde:
vai ao forno do lugar.
Bate à porta dos casais
que julga terem mais bens;
espera desconfiado
porque tem medo dos cães.
Este Menino Jesus
mal vestido, quase nu
e nevão dentro do peito,
és tu, meu amigo, és tu!
Vila da Ponte, 2008 (1972)
José Dias Baptista
In Foz do Tédio – (1957-2017)
60 anos de Poesia, 2017.
30 dezembro 2017
Um Sorriso
As ruas estavam enfeitadas, a música entoava nas lojas. As pessoas
agitavam-se rapidamente, comprando os últimos presentes. Naquele centro
comercial, no fundo do corredor de lojas, um espaço amplo e luminoso chamava a
atenção para um tapete vermelho, um cadeirão vermelho, com um figurante de Pai
Natal, também vestido de vermelho. As crianças, em fila, pretendiam abraçar
aquela personagem, de cara alegre e de barbas brancas, tirar uma fotografia no colo
do Pai Natal e segredar os presentes que desejavam na noite de consoada. Uma a
uma, lá iam passando, fotografando e saindo devagar ao encontro dos pais. Foto
tirada, sonho realizado.
No meio desta azáfama, um jornalista de um canal de
televisão fazia a cobertura para uma reportagem a apresentar numa das próximas
noites. Após observar, durante uma boa hora o cenário divertido do Pai Natal e
das crianças que o iam abraçando, Pedro, o jornalista, resolveu dirigir-se ao
local e questioná-lo, dadas as dúvidas que lhe suscitava. Pensava: “Será que
este homem só tem histórias felizes? Será que alguma vez foi marcado por alguma
criança? Será que guarda consigo algum momento especial?”.
Sem perder mais tempo, aguardou que, num momento de descanso,
o Pai Natal se sentasse no seu trono vermelho para encostar a cabeça pesada e
cansada. Há quatro horas que estava naquele lugar a animar e a divertir as
crianças.
Pedro aproximou-se dele, parecendo, ao mesmo tempo, uma
criança em ponto grande. Cumprimentou-o e o Pai Natal perguntou pela próxima criança
que iria tirar fotografias. Pedro explicou que vinha sozinho. Identificou-se e
pediu-lhe que se deixasse entrevistar para uma reportagem do jornal da noite,
talvez até da noite de consoada. O Pai Natal convidou-o a sentar-se ao seu
lado. Pedro perguntou:
— Gosta do que faz?
— Sim, muito. Talvez nem saiba fazer nada melhor do que ser
“Pai Natal”.
— Qual é a sua verdadeira profissão?
— Sou programador, escrevo aplicações informáticas. Estou muitas
horas em frente ao computador. Chego a estar oito a dez horas seguidas em
frente ao ecrã. Como preciso de estar em contacto com pessoas, um dia, vi um
anúncio para selecionar figurantes para este papel. Por incrível que pareça, fui
selecionado. Faço esta tarefa há cinco anos, neste centro comercial. E também
vou ao hospital pediátrico desta cidade, nos dias próximos do Natal, para dar
um pouco de alegria àquelas crianças. Mas estar aqui vestido de Pai Natal é encantador.
Sinto-me outra pessoa!
— É estranho que uma pessoa ligada ao mundo dos computadores
se reveja neste papel… – disse o jornalista.
— É muito simples. Como me sinto muito isolado, preciso de
ver movimento, luz, sentir o mundo a girar. Olhar para estas crianças que
querem um colo, abraçar-me e tirar uma fotografia… É fantástico! Vê-las sorrir
é o melhor do mundo.
— Durante estes cinco anos, de certeza que teve algum
momento que o marcou de uma forma especial… — comenta o jornalista.
— Sim, é verdade. Tenho alguns momentos que vou guardar
comigo e serão sempre únicos. Mas há verdadeiramente um que me marcou para a
vida e me faz estar aqui todos os anos com mais alegria!…
— Quer contar-me esse episódio?
— Num dia de consoada, estando as últimas crianças a tirar
fotografias, houve uma situação que me tocou profundamente. Aproximaram-se de
mim, um casal e uma criança com cerca de dez anos. O menino não tinha cabelo.
Percebi que teria um problema de saúde grave. Os pais pediram-me que o Miguel,
assim se chamava o menino, queria muito conhecer o Pai Natal e que desejava vir
ao centro comercial nessa tarde.
À medida que contava este episódio, a voz ficou mais trémula
e os olhos começaram a ficar mais brilhantes pela emoção. Após uns momentos de
silêncio, o Pai Natal, que se chamava Rodrigo, continuou a sua história.
— Com muito cuidado, o menino Miguel foi colocado no meu
colo. Enquanto os pais tiravam algumas fotografias e se afastavam ligeiramente
para nos deixarem a sós, comecei a sentir um carinho muito grande por aquela
criança. Não sei explicar porquê, mas a verdade é que sentia algo diferente… O
menino, então, começou a dialogar comigo e disse-me que me queria conhecer.
Perguntei-lhe porquê. Respondeu-me que era esse o seu melhor presente. Queria
saber o que é a alegria de ver e sentir o Pai Natal, o velhinho das barbas brancas.
Eu não entendia muito bem aquele fascínio. Mas o certo é que me deixou sem
palavras. Disse-me aquela criança: “Sabes, Pai Natal, gostava de te pedir que
fosses sempre carinhoso com as crianças que vêm ter contigo. Elas precisam do
teu sorriso e do teu abraço. Não lhes prometas muitas coisas, pois algumas não
têm possibilidades. Oferece apenas o que podes dar.” Eu estava realmente
encantado. Como era possível aquela criança transmitir-me uma mensagem tão
profunda?! E continuou: “Eu sei que vou partir em breve, muito em breve.
Dizem-me que eu tenho nome de um anjo e que vou encontrá-lo no céu, que vamos
brincar muito nesse lugar de paz e tranquilidade. Não sei como é esse meu
amiguinho, que tem o meu nome, mas vai ser divertido de certeza. Os meus pais andam
muito tristes e eu sei porquê. Os médicos disseram-lhes que eu tenho uma doença
rara e que não tem cura. Nada podem fazer para me salvar. Mas podem-me ajudar a
sorrir e a cumprir os meus desejos.” Eu estava de boca aberta. Como era
possível uma criança tão pequena ter um discurso tão adulto!?
O jornalista estava cada vez mais atento à história que
ouvia. E, quase sem pestanejar, pediu a Rodrigo que continuasse. Então, o Pai Natal
disse:
— Quais são os teus desejos, Miguel? E ele respondeu: “Já
tenho todos os meus desejos realizados. Este era o último. Queria conhecer-te e
pedir-te que fizesses todas as crianças felizes. Os meus pais estão muito
contentes. Vê como sorriem. Sabes porquê? Porque eu pedi que me trouxessem até
aqui. O meu desejo está realizado e agora já posso partir para encontrar o meu amiguinho
Miguel. Obrigado por me trazeres um grande sorriso a mim e aos meus pais.”
Entretanto, o menino, que estava no meu colo, abraçou-me verdadeiramente por
largos minutos. De repente, os seus braços penderam e percebi que tinha ido ao
encontro do seu amiguinho. O meu coração, cheio de emoção, de alegria e de
tanto amor, estava, agora, também, em sofrimento e choro.
Perante esta história, Rodrigo, o Pai Natal desse centro
comercial, estava desfeito em lágrimas e, sufocado de emoção, disse ao
jornalista:
— Foi a melhor prenda de Natal que podia ter recebido e a
melhor mensagem recebida no meu colo. Tudo através de uma criança. Esta é a
história mais marcante da minha vida. E quando preciso de forças para o meu
dia-a-dia, penso no Miguel e recordo a sua atitude de coragem e de esperança
que me transmitiu. Que força magnífica a de esta criança! Nunca esquecerei esta
mensagem.
O jornalista agradeceu a amabilidade do tempo e da narrativa
partilhada. Pedro foi-se afastando lentamente do centro comercial e, a caminho
de casa, recordou toda a história que lhe tinha sido contada. Nessa noite,
compreendeu que as grandes lições estão nas pequenas coisas, nas crianças
pequenas, e sentiu que o seu Natal seria mais aconchegante, porque tinha o
coração cheio de emoção e de ternura. Os afetos são os melhores presentes que
se podem oferecer.
Maria da Assunção Anes
Morais
(Texto adaptado)
Publicado in “Boletim Cultural – N.º 23”, Vila Real, 2017.
29 dezembro 2017
Natal
Renasce em nós a alma de criança
Família reunida em comunhão
Os olhos ternurentos mão na mão
As brasas crepitando na lembrança
Os olhos duma mãe de esperança
Amor a transbordar do coração
As luzes dum pinheiro em clarão
Um canto empolgado em plena dança
Havemos de ter hoje um melhor dia
Que nos encha de amor
e de alegria
Que nos torne mais amigos por igual
Se fosse todo o ano era tão bom
Que seja ao menos hoje ao suave som
Duma ária festiva de Natal
Custódio Montes
(Poema inédito)
28 dezembro 2017
O Natal
O Natal brasileiro de que a minha mãe me falava, com
as indispensáveis idas à praia, nunca me entusiasmou. Ao falar desse natal, a
minha mãe não falava das idas ao musgo, da fogueira da praça nem do cantar dos
Reis. E disso eu gostava muito. Começava a pensar nele muito tempo antes, não
sei bem quanto, mas só quando chegavam a TIA e o tio Justino é que o Natal
começava realmente para mim. No dia seguinte à sua chegada, o meu pai, o tio Justino e eu íamos ao
musgo. Às vezes tinha pena de arrancá-lo, tão verde e tão fofo ele estava,
agarrado às paredes. Parecia veludo. Arrancado o musgo começava a construção do
presépio, essencialmente a cargo do tio Justino e da minha mãe. Eu colaborava
ativamente. Também os meus colegas de escola vinham muitas vezes ajudar.
Fazia-se no pátio de baixo. O tio Justino começava por empilhar várias cortiças
de modo a criar uma estrutura em relevo. Depois cobríamo-las com o musgo. Em
seguida, com areia fazíamos uns carreirinhos, ao longo dos quais iríamos
colocar várias figuras. Estas eram de barro pintado e tinham sido trazidas de
Viana pelo tio Justino. Também foi ele quem fez a cabana do Menino Jesus, com
uma cortiça virgem. Para além das figuras, da cabana e dos carreirinhos, havia
no presépio um lago, feito com um espelho envolvido de musgo, ao qual dava
acesso um regato que serpenteava ao longo da cascata e era feito com papel
prateado. Havia ainda uma fogueira feita com papel celofane vermelho, coberto
com galhinhos de lenha, e por baixo do qual se colocava uma lanterna acesa. Era
à volta desta fogueira que se colocavam os pastores. Presa do teto havia uma
estrela que iluminava os reis magos. Era de cartão coberta com papel dourado.
Para além do presépio, havia lá em casa uma árvore de
Natal, e creio que seria a casa de cima a única casa da TERRA onde tal
acontecia. A ideia da árvore de Natal tinha vindo com a minha mãe. Era feita
com um zimbrinho que era colhido no mesmo dia em que íamos ao musgo. Os
enfeites eram pompons de lã, coloridos, que eu fazia com a ajuda da Mininha, e
pequenos biscoitos que a minha mãe fazia com vários formatos de estrela, de
meia lua, de sino, de árvore. Na parte superior da árvore havia um grande laço
de seda arranjado pela minha mãe.
Mas o Natal era muito mais que o presépio e a árvore.
Era a ceia, sempre na CASA, até à morte da TIA. Comíamos todos à mesa- os meus
pais, a TIA e o tio Justino, a Germana, a Balbina, o António Joaquim e a
família. A ceia constava de bacalhau, polvo e pescada cozidos com batatas e
couves da TERRA, que têm um sabor diferente de todas as outras que eu conheço.
E tudo isto era regado com o azeite dourado das oliveiras, também da TERRA. Eu,
na altura, não apreciava muito essa comida mas sabia que depois vinham as
sobremesas. E dessas eu gostava. Eram as rabanadas, as filhós, os milhos doces,
o arroz doce, a aletria, os fritos de jerimum, os rochedos de amêndoa. No dia
de Natal, o almoço era na casa de cima. Invariavelmente era peru recheado com
farofa, acompanhado de arroz com amêndoas, passas e nozes. À sobremesa eram
doçarias brasileiras- quindins, bom bocado, docinhos de amêndoa, pudim de
laranja. Eu gostava de ajudar a fazer estas doçarias, particularmente os
docinhos de amêndoa. Eram feitos de véspera com uma pasta de açúcar, gemas e
amêndoa, que era introduzida dentro de cascas de nozes para ali secar. No dia
de Natal saíam das cascas docinhos de amêndoa com o formato de noz.
Depois do almoço eu ia sempre, com o meu pai e o tio
Justino, ver a fogueira na praça. Ainda hoje se faz a fogueira. Antes do Natal
os rapazes da TERRA vão pelas casas mais abastadas pedir lenha. As pessoas
indicam-lhe onde a podem ir buscar. Na véspera de Natal lá vão eles. Após a
ceia de Natal, lá pelas 10 h da noite, a lenha, grandes toros e raízes, começa
ser empilhada na praça, em frente à igreja. Em seguida acende-se a fogueira.
Levam-se umas chouriças para assar e assim, entre conversas, comendo chouriça
assada, os homens vão passando a noite. Se há Missa do Galo, vai-se à Missa.
Caso contrário por ali se fica até passar da meia-noite. A fogueira manter-se-á
acesa por vários dias, enquanto a lenha durar. As mulheres não participam deste
evento. Podem ir ver, passar algum tempo, mas é uma prática essencialmente
masculina.
Outra boa recordação que tenho da época natalícia é o
cantar dos Reis. Aí participam crianças e jovens que vão de porta em porta
cantando. Lembro-me particularmente de alguns excertos de duas canções de Reis.
Uma delas era:
Dai-nos
leitão e cabrito,
arroz
doce e marmelada,
dai-nos
vinho de há cem anos
já
não vos queremos mais nada.
Trigo
e nozes e marmelada,
lombo
de porco, vitela assada,
pão
com manteiga, chá ou café
e
o Deus Menino nascido é.
A outra, era a última a ser cantada:
Ao
carrasco de Lisboa já lhe caiu a bolota
Se
nos querem dar os Reis venham-nos abrir a porta.
E as portas abriam-se e lá vinham as nozes, a
marmelada, os figos, as chouriças. Eu gostava muito de cantar os Reis em todas
as casas mas, muito em especial, na casa de cima. A minha mãe preparava uma
cesta com uns embrulhos feitos em papel de seda com uns grandes laços. Cada um
retirava da cesta um embrulho. Era bonito, pela surpresa. Lá dentro podia haver
caramelos de leite (que ela fazia tão bem), biscoitos iguais aos da árvores,
docinhos recheados com amêndoa, pé de moleque. Eu ficava muito feliz até porque
me parecia que a minha mãe também estava feliz.
Regina Gouveia
(Excerto de Estórias com sabor a Nordeste)
27 dezembro 2017
POEMA DE NATAL
Pediram-me um poema
de Natal
e eu quase tremi com
a encomenda…
— Quem terá umas palhas e uma tenda
um burro e uma vaca
no curral?
Se acaso
encontrardes o sinal
que tire dos meus
olhos esta venda,
dizei-me! Talvez eu
com ele aprenda
o caminho da Paz
Universal.
António Fortuna
(Poema publicado no “Notícias de Vila Real”)
26 dezembro 2017
É Tempo de Natal
Hoje, quando estava em
casa a ver televisão, vi a publicidade a um brinquedo para o Natal. Estamos a quase
um mês do Natal... Isto fez-me reflectir sobre o significado que tem hoje o
Natal e os valores que representa (e que representava no tempo da minha
mocidade)… Hoje com o individualismo do mercado, a obsessão do consumo, a
globalização da cultura (o mesmo é dizer a “americanização” ou como eu mais
gosto de dizer a “macdonalização” da cultura), os valores alteraram-se para bem
pior e para utilizar uma frase feita “a tradição já não é o que era”. Hoje
nesta cultura do stress (a vida transformou-se num verdadeiro fast-food), não
interessa o que se é, mas antes aquilo que se tem. Hoje diz-se: “Diz-me o que
tens, dir-te-ei o que vales”. Não interessa saber como se conseguiu o dinheiro,
interessa, isso sim, é saber se se tem ou não tem, como o conseguiu, não
interessa... É nesta sociedade sem valores, ou melhor, com falsos valores que
se educa a nossa juventude. Apetece dizer que, algo “vai podre no Reino da
Dinamarca”. E depois dizemos que esta juventude é uma “geração rasca”, “rasca”
é a sociedade que transmite estes “valores”... Até mesmo o significado da
dádiva de presentes pelo Natal se alterou. Hoje dão-se presentes caros para qual
“novo-rico” ostentar o seu poder económico e não pelo seu verdadeiro
significado que é o prazer da partilha, no sentido mais nobre desta palavra e da
dádiva.
Os verdadeiros valores
do Natal são a Tolerância e a Fraternidade. É por isso que o Natal é lindo, é
por isso que nos toca tão fundo. Não é por um “homem vestido de vermelho e de
barbas brancas” distribuir presentes à entrada de um Centro Comercial (que tem
origem, nos anos trinta, quando a Coca-Cola Company decidiu usar São Nicolau
nas suas campanhas de publicidade de Inverno), é pelo sentido de fraternidade,
pelo calor humano de, pelo menos uma vez no ano, nos sentirmos irmãos, de
fazermos parte dessa grande família que é a HUMANIDADE.
São estes os
verdadeiros valores do Natal, são estes os valores que devemos ensinar aos
nossos filhos e aos nossos alunos. Só assim seremos verdadeiramente educadores.
Basta ver a televisão
ou ler os jornais para nos apercebermos da violência e da desumanidade que
reina no mundo. A violência e a desmoralização que vemos não são obra do acaso.
Elas crescem “como cogumelos” no mundo podre que todos nós ajudamos a criar,
com o nosso egoísmo, com a nossa cegueira, com a nossa passividade e com a
nossa sofreguidão pelo dinheiro.
Esqueceram-se os
valores, hoje só se pensa no “conforto”, no carro novo que se quer comprar, no
novo telemóvel, nas férias... Não se pensa na guerra, na fome que vai no mundo,
na miséria que se vive, às vezes ao nosso lado, não se pensa nos que sofrem,
nos velhos sem carinho e sem o conforto de uma família. No nosso egoísmo não se
“atura” o pai e a mãe que nos criou, com tanto carinho, com tanto amor e, às
vezes com tanto sacrifício... Não temos “tempo” para eles...
E os nossos filhos?
Quando falamos com eles? Sabemos os problemas que têm? Quem são os seus
“amigos”? Como vão os seus estudos? Damos-lhes dinheiro! Sim, mas o dinheiro às
vezes é o que menos interessa... Quantos problemas se evitariam, se os pais
dessem mais atenção aos seus filhos!...
São
estes os verdadeiros valores do Natal: a Tolerância, a Partilha, o Diálogo, o
Amor e a Fraternidade. Não nos iludamos, o Natal está dentro de nós. Devemos
reflectir sobre isto e fazer uma saudável autocrítica. Os pensamentos devem
fazer-nos voltar a casa... à nossa casa em que ainda meninos sonhávamos com um
mundo novo em que não havia fome, nem miséria. Regressemos aos valores do Natal
da nossa infância, à boa e saudável ruralidade, à festa da família, do amor ao
próximo. Só assim poderemos fazer de cada dia um verdadeiro NATAL.
António Pimenta de Castro
(Texto publicado nos jornais “O
Vianense” de Viana do Castelo
e “O Guerra-Zoelae” de Macedo de
Cavaleiros)
25 dezembro 2017
Natais distantes
Pergunto-me o que ficou
desses Natais distantes
que eram vagarosos e tingiam
da cor e do sabor de frutos
estivais
os frios dias de então.
De cada um desses Natais
que aboliam a noite,
instituíam a luz – o que ficou?
Pouca coisa: incertos
farrapos de memórias
que nada resgatam
e nada ressuscitam –
apenas doem.
Talvez uma abelha na janela,
perdida do seu tempo,
sofrendo a chuva,
violentando a vidraça –
e o meu irmão a rir-se disso.
Talvez a descoberta
de um frasco esquecido com doce de
ginja
no armário do canto,
e a boca e os dedos sujos do doce
e um caroço engolido sem querer
e a vigilância das fezes.
Talvez o eco das vozes
dos que ceavam lá em baixo
desatentos do braço que parti na
neve –
e eu sem encontrar posição para
dormir.
Talvez uma gota de champanhe
no fundo da taça – a mais doce
porque era a do fundo e na garrafa
não havia mais
e foi a minha Mãe que ma trouxe à
cama.
Talvez o borralho, as faúlhas,
depois apenas cinza. Talvez sal.
A. M. Pires Cabral,
In As têmporas da cinza (Cotovia, 2008)
24 dezembro 2017
A
CONSOADA
Enquanto a neve caía
sobre os lajedos ou nas ruas lamacentas, começando a estender, suavemente, o
seu manto branco sobre as pequenas casas de granito tosco, e as ovelhas
regressavam apressadamente aos redis, balindo graciosamente pelas quelhas,
anunciando aos cordeirinhos, seus filhos, que chegara a hora do reencontro,
após um dia inteiro pastando nos prados, a tia Prazeres ia acendendo o lume com
a caruma e cavacos de pinheiro, para fazer a consoada.
O sol que nessa
altura do ano nada aquece, e que naquele dia nem se viu, ia baixando
lentamente, para desaparecer, finalmente, por detrás dos pinheiros do
horizonte, mergulhando a pequena aldeia numa escuridão fantástica, sobre a qual
pairava uma densa neblina formada pelo fumo que saía pelos telhados das casas,
já cobertos de neve. A negritude era tal que só aquela gente sabia caminhar
pelas vielas estreitas, onde tudo era escuro, triste, alegrando-se apenas um
pouco mais, quando, também nas ruas, a neve começava a coalhar, aveludando
então tudo em redor.
O senhor José saiu de
casa, levando numa das mãos a lanterna de petróleo e na outra a ferrada. Ia à
loja ordenhar o gado.
Os filhos, o António
Francisco, a Isabel e o Zé Manuel que, embora traquinas, ia embalando o último
rebento, com pouco mais de um mês, seguiam todos com atenção as voltas
afadigadas da mãe e colaboravam, ajeitando as cavacas da fogueira crepitante ou
varrendo as lajes da cozinha, onde iam caindo as fonas e pedaços de carrasca de
pinheiro.
O avô, já com os seus
setenta anos, tinha ido ao cabanal à procura de um cepo do Natal: um tronco de
carvalho rijo e seco, guardado propositadamente para esta altura, que, posto na
fogueira, ardia até às tantas.
Em panelas separadas,
eram cozinhados os diferentes pratos da consoada. Numa estava a cozer a couve do
Natal, à qual seria misturado o trigo e pedaços de bacalhau. Na outra estavam
as batatas com cebola e bacalhau.
Na noite anterior,
quando os filhos já dormiam, tinham ficado os dois - pai e mãe - na cozinha, a
fazer as filhós e as fritas.
Por fim, estava tudo
preparado.
O pai acabara de
chegar, com a ferrada cheia de leite, tamancos fortes nos pés, salpicos de neve
no chapéu e no casaco, as mãos enregeladas.
A mesa, suspensa na
parede por uma das pontas e fixa com um cravelho, era baixada, firmando-se numa
perna. Estendia-se a toalha de linho branco. As batatas com a cebola e o
bacalhau fumegavam no alguidar de alumínio. Noutro, de barro vermelho vidrado,
estava a couve, mesmo apetitosa. A um canto da mesa estava um jarro com vinho.
No centro, o pão. Todos se sentavam à mesa, no banco comprido de pinho ou nos
mochos toscos, com pernas de carvalho. E comia-se com vontade, com apetite,
regando-se a couve e as batatas com azeite, enquanto os mais velhos bebiam o
vinho tinto gelado.
No final da ceia,
apareciam os irmãos e sobrinhos, que vinham festejar o Natal, saudar o avô e
conversar à roda da fogueira, enquanto se comiam figos secos e se bebia
aguardente.
Os mais novos
britavam nozes na pedra enegrecida da lareira.
O cepo de carvalho ia
ardendo e aquecendo, como símbolo da União e do Amor, da grande Festa da
Família.
A.
F. Caseiro Marques
In ASSIM SE MOLDAVA O BARRO,2003
23 dezembro 2017
AS CORES DO NATAL
Na
aldeia de Trás-os-Montes, onde nasci, o colorido das lembranças natalinas
ilumina o olhar e a memória dessa tradição. As cores tradicionalmente usadas
para marcar a época eram o vermelho, o verde, o branco, o amarelo, o azul,
o prateado e o dourado; mas, muitas vezes, a cor que mais predominava
nesta época era o branco da neve e das fortes geadas que cobriam toda a região
de gélido frio, e nem o verde dos pinheiros sobressaía na paisagem montanhosa,
ou escondia cheiros e aromas da festividade. O frio vinha embrulhado em denso
nevoeiro, obrigando a um recolher quase clausura e à adoração paciente diante
da fogueira do lar.
Os
enfeites de oiro davam luz à tradicional festa, fazendo cintilar os embrulhos
dos presentes, o amarelo dourado das palhinhas do presépio, a luz das velas e
do fogo que ardia para aconchegar a alma. E, ainda, o colorido das bolas de
vidro na árvore de Natal, as fitas em azul, branco, amarelo, vermelho, verde,
as luzinhas a piscar e as guirlandas a enfeitar as portas.
À
espera dos presentes, havia a bota ou a meia, junto à lareira, o Presépio
montado numa pequena paisagem feita de musgo, trazido do monte pela pequenada, que
passara a tarde a recolher o aveludado musgo junto das pedras mais altas, nos
lugares mais húmidos, onde ele nasce macio e muito verde. Era tradição, e uma
romaria, subir ao Monte de S. Brás. Juntos corríamos as fráguas montanhosas à
procura do musgo macio que decorava o cenário do grande presépio no adro da
igreja e dentro das nossas casas.
E
o meu Natal sempre teve uma cor muito especial e perfumada. As violetas
apareciam junto à nora, terra húmida e bravia conservando-as cheirosas,
inebriando o ambiente, sobrepondo-se ao cheiro dos pinheiros, da lareira e dos
cozinhados natalícios. Como ansiava encontrá-las nas férias de Natal e fazer
raminhos que depois trazia para a escola primária e oferecia à senhora
professora!
Era
o meu Natal violeta e não trocava essa cor por nenhuma das outras; eram as
primeiras violetas que apareciam no campo, quase como por milagre; por entre a
geada ou a neve. Por isso o meu Natal tem cheiro de rabanadas perfumadas,
filhós violáceas, arranjos com pinhas e ramos de pinheiro e minúsculas violetas
arroxeadas, florindo por entre as bagas vermelhas do azevinho.
Os
olhos do meu Pai Natal eram de cor lilás e perfumavam os presentes que ficavam,
à noite, debaixo do pinheirinho para serem abertos logo pela manhã, bem cedo,
pela criançada.
Um
dos raminhos de violetas era levado ao Menino Jesus na Missa do Galo à
meia-noite e, muitas vezes, era a única saída de casa durante as férias de
Natal, em casa das avós, pois o frio obrigava as pessoas a ficarem recolhidas
nos seus lares; eram rigorosos os invernos transmontanos. As casas aquecidas
pela lareira dançavam sombras nas paredes da cozinha, as cores do fogo
crepitando, projectavam na penumbra o único filme da longa noite.
Uma
grande fogueira ardia com a lenha do pinhal, o canhoto estalava, cheirava a
madeira de pinho, giestas secas, estevas e rosmaninho. Os risos das crianças tinham
o sabor a fumo das histórias que a avó contava, enquanto se esperava para sair
para a missa ou enquanto ela fritava ao lume da lareira as filhós, as rabanadas
e os bolinhos de bacalhau. O arroz doce no pote de ferro cheirava a canela e a
laranja, aromatizado de sabores tradicionais, com os arabescos desenhados pela
avó. A aletria amarelinha era servida nas grandes travessas de barro ou de
esmalte. E pouco mais havia de doces natalícios.
O
espírito do Natal, nos confins da terra enregelada, iluminava de calor humano a
escuridão e o sossego do isolamento, tempos em que só havia o correio trazido
uma vez por semana pelo carteiro de bicicleta. As distâncias eram maiores, e as
notícias, às vezes, perdiam-se pela demora, esticando as saudades e encurtando
o tempo de tristezas.
Era
muitas vezes o carteiro vestido de Pai Natal que aparecia lá na aldeia e dizia
às crianças que estava a substituir o carteiro, que tinha ido de férias. E lá
ia a garotada toda atrás da bicicleta, a rir e a gritar com o pobre do homem,
chamando-lhe mentiroso, porque sabiam muito bem que ele era o carteiro,
disfarçado de Pai Natal. E o Pai Natal só vinha durante a noite e só sabia um
caminho para as casas da aldeia, o das chaminés.
A
ingenuidade infantil e o sonho da fantasia, com simples brinquedos de madeira
ou de latão, ou bonecas de trapos ou de barba de milho, muitas vezes feitas com
aproveitamento de meias velhas e cabelos de farripas de lã de ovelha, ou sobras
de fio, de grossas camisolas ou gorros, teimavam em prevalecer na imaginação
das crianças.
Quero
acreditar que esse Pai Natal ainda hoje existe, perfumado de violetas,
distribuindo palavras que ainda resistem a serem escritas.
Ana Bárbara de Santo António
Édito em Coletânea "Lugares e Palavras de Natal”,
Lugar da Palavra Editora, vol IV
22 dezembro 2017
Lembranças de Natal…
Quando
me lembro de ti
Ó
Natal da minha vida
Penso
até que já morri
Sem
ter a vida vivida
Natal,
palavra bela
Nos
meus tempos de criança
Quem
me dera ainda vê-la
Em
olhares de esperança
É
que vejo outra realidade
Que
não gostava de ver
Daquele
tempo ai que saudade
Agora
não o quero viver
Fico
demasiado aturdido
Com
as falsas esperanças
Mas
contudo, boto sentido
Ao
que fazem pelas crianças
E
hoje faz-se tão pouco
E
até fazem pouco delas
Do
que vejo fico louco
E
as crianças são tão belas
Quero ter outros Natais
Como
aqueles que já vivi
Onde
os homens eram demais
Na
procura do que senti
Davam
tudo pelos seus
Mesmo
que um pouco enganados
Não
abominavam o seu Deus
Por
Ele tinham momentos amados
Que
hoje seja Natal
Um
pouco como antigamente
Um
momento de tão real
Que
em nós seja presente
Armindo Loureiro
(Texto inédito,
03/12/2017)
21 dezembro 2017
Faz sentido falar de natal?
Todo o tempo é
diferente. Todo o espaço é diferente. Todos os lugares se veem diferentes. Como
as pessoas. Nada de novo, portanto. Assim como o tempo, o espaço e os lugares
que falam natal, encorpado da semântica, do significado, das circunstâncias,
dos territórios em que é moldado. Como se fora uma veste talhada para um corpo.
De preferência, seguindo as tendências da moda. O lado visual, atrativo,
estilizado: um catálogo a ser vendido, após aturados estudos prospetivos. E
quase tudo vai na mesma direção, num segmento previsível, terrivelmente
sensabor. Após o enchimento dos olhos, quase piscos pelo excesso das luzes,
sente-se o esvaziamento do balão, tocado por um presépio de musgo, timidamente
colocado num cantinho da montra – global – entre a profusão de laços e
laçarotes.
Se assim é, faz sentido falar de natal?
Invocar o natal? Escrever as cores de natal?
Sim, faz! Natal
é mensagem e metáfora de humanidade: a sua alma, o seu imaginário (como um conto
das mil e uma noites), a sua magia, o seu sonho, a sua fortaleza, o seu abrigo.
Raiz e matriz. Sentido. Dádiva. Em si, para si e entre si. Um mandato do
espírito, um mandato do amor. Um aviso aos homens de má vontade, num tempo em
que se cultua o umbiguismo (e outros ismos), as reações timóticas, a frieza (e
crueza) comunicacional das redes sociais, postergando os princípios,
ancestralmente herdados, na conduta social, para uma segunda ou terceira vias –
ou mesmo residual: o olho no olho, a mão na mão, a fala, como processos basilares
de entendimento. E é disto que se trata nas falas de natal, na troca das Boas
Festas. De respeito, de boa vontade. De humanidade.
Consequentemente,
não podemos deixar de alocar a frase feita: natal é quando o homem quiser.
Então, que (re)nasçam homens e mulheres que sejam mensageiros de palavras e
atos de verdade. E que seja esta a época inteira em que se renovam os votos,
numa celebração milenar, nascedouro de homens de boa vontade. E que, neste ano
de terra queimada, nos penitenciemos dos natais adiados e irremediavelmente
perdidos, em todos os lugares, prometendo intermediarmo-nos com a única língua
entendida por todos: o amor.
Foi verde o
nascimento do Menino. Só poderá ser verde o natal de todos os meninos.
Honremo-lo!
Agora e sempre!
Odete Costa
Ferreira
(Texto de
opinião inédito, 29-11-2017)
A autora escreve segundo as regras do novo
acordo ortográfico
Obra de Domingos Sequeira, acervo do Museu
Nacional de Arte Antiga
20 dezembro 2017
Há fantasmas pelo natal
De noite
enquanto
dormimos
há
fantasmas que nos visitam e revisitam
São essas as noites em que sabemos
que
o mundo lá fora não dorme tranquilamente
São as mesmas noites estas em que agora escrevemos
sentidos
de
coisas só para nós sentidas
noites
estranhas de anódinos silêncios
em
que dormem apenas aqueles que podem dormir
Noites em que uma certa luz teima em chamar
não
sei se para ver melhor os vultos as sombras os espectros
não
sei se para não ver melhor os três fantasmas que se aproximam
e
que não somos capazes de acarear devidamente
que
vêm não sei se de levante seguindo uma luz promissora para estenderem
a Mão
e terem
uma sopa por companhia onde escrever os sonhos perdidos
longe
das luzes das árvores centrais o seu lugar o ocidente
onde
virem a jusante ou outro lugar
De noite uma cortina
sempre
aberta e sombras nubentes desenhadas nela com que dormimos
nunca
se sabe se por detrás do pano algum fantasma
desses
que estendem a mão para mover uma dama uma torre um nimbo
o
natal passado jogado como se não tivesse existido jamais
uma
fogueira à volta da casa onde as sombras são o que fomos
ou
somos hoje o que as sombras puderam ter sido naquela fogueira falecida
Às duas ou às três da manhã o menino deseja
continuar a ser o mesmo menino
(ou
a todas as horas) quando os três natais se aproximam dele
procurando
o presépio que já não está estando em louçanas aporias
às
vinte e quatro horas da existência do dia vinte e quatro de consoada
estenderei
a mão para ti desfiando cada hora cada dia e dir-te-ei
Amigo
para
que também os fantasmas sejam parte de nós
e
assim possamos dormir
enquanto é dia
Norberto do Vale Cardoso
(Poema publicado em 2006, reescrito em
dezembro de 2017)
19 dezembro 2017
Natal em mim
In
memoriam de Maria Odete de Castro Tavares Gomes
O Natal evoca em mim
dois sentimentos, qual deles o mais fundo e emotivo. São sentimentos
antitéticos: um de alegria e completude, de crença num mundo cheio de futuro,
onde tudo era novidade e deslumbramento e um outro feito de ausências, em que a
falta dos que sempre estavam, se adensa e toca mais fundo, nesta quadra…
A casa da avó Arminda
iluminava-se por dentro e por fora. O lume recrudescia a cada toro que o
padrinho atirava para a lareira e a cozinha aquecia e iluminava-se, fazendo
brilhar o fumeiro, pendurado em varas sabiamente equilibradas em estrutura de
arame, que asseguram que nenhum de nós levasse com uma peça de fumeiro em cima,
durante o convívio familiar.
Minhas tias, doceiras
afamadas, entravam numa roda viva: era o amassar das filhós e o tender e o
fritar e polvilhar com açúcar e canela: “olha que as filhós querem-se doces!”…
Era a aletria que não
podia faltar na mesa da consoada e o arroz doce e os milhos doces, por que o
meu pai se “pelava”…Mas o mais trabalhoso eram as rabanadas, cujo pão demorava
dias a estar no ponto e depois tinham de obedecer aos tempos certos, caso
contrário transformavam-se numa papa enchumbada em leite e óleo …E quando se entrava no grande pátio granítico
da casa, cuja escadaria levava ao andar superior, vinda do frio polar do
Inverno trasmontano, eu era logo imersa numa nuvem de calor e cheiros
deliciosos, a canela e açúcar e limão que me faziam galgar os degraus de dois a
dois para ver o que estava a acontecer na cozinha, o grande laboratório mágico,
onde as poções deliciosas se fabricavam!
Depois tudo era
colocado na sala grande. Esta era, aos meus olhos de menina, um lugar quase
mágico, onde o tempo podia voltar para trás, cheio de retratos antigos de gente
de outros tempos que me antecedera na história familiar e dezenas de fotos de
pessoas que eu nem conhecia, espalhados pelos móveis e aparadores.
Os meus padrinhos,
como não tinham filhos “perfilharam” mais afilhados do que é possível dizer ou
saber e muitos deles faziam questão de enviar fotos que eles, gente de afetos profundos,
faziam questão de ter sempre presentes… Era nessa sala, numa mesa redonda do
canto que as “iguarias natalícias eram colocadas pelas "mestras cozinheiras”
e eu, secretamente ia espreitar , debaixo da toalha branca de linho com que
estavam protegidas de “olhares” indiscretos…Como se também o pudessem estar de
possíveis subtrações…
E chegava o momento da
ceia : o barulho, a confusão, a animação, que na altura me punha com um nervoso
miudinho, na minha timidez de criança muito metida em si…De resto, eu e a minha
prima, pouco mais nova que eu, estávamos sempre numa ansiedade a querer saber
das prendas de natal, mas as regras estavam definidas e conhecíamo-las há
muito: só se abriam os presentes quando se regressasse da missa do Galo, depois
da meia-noite…E debaixo do pinheiro só havia o musgo que apanháramos na
cortinha , com as figurinhas do presépio, mais nada..
É curioso como agora,
passados tantos anos, me vêm tantas vezes à memória ditos e frases e risos e
expressões daqueles que já partiram para a grande Viagem e fizeram parte de
tantos natais da minha vida. A cada ano que passa sinto a sua falta com uma dor
renovada e um vazio mais fundo.
Agora o Natal é o dos
gadgets e das novas tecnologias, da netflix e da apple, do I-phone e dos meus
filhos e da lareira com recuperador que instalámos na sala grande cá de casa
para mitigar a saudade das grandes lareiras abertas dos natais antigos. Nessa altura
em que eu lia até às duas da manhã, aproveitando cada dia de férias para
desbravar o fantástico mundo dos livros e viajar nas histórias, que as aulas e
o estudo não tinham permitido fazer durante o 1.º período…Ficava com a mão que
tinha fora da cama, gelada, no quarto da minha avó materna e tinha de a ir
alternando para segurar no livro, pois na aldeia o aquecimento era na cozinha e
braseira a brasas na sala grande e ponto! Mas nunca ler me soube tão bem…Pois
era ao mesmo tempo um desafio e um gozo enormes. E foram tantos natais a
descobrir Mauro de Vasconcelos e a meninice dorida do Meu pé de laranja lima,
as aventuras de Constantino, guardador de vacas e de sonhos, Quinze histórias
da Mitologia e de Ficção e de Mistério…
“Ó filha munto lês
tu!” -dizia a minha avó materna, a quem metia muita confusão que eu
amanhecesse, entardecesse e anoitecesse, agarrada a um livro…
Às vezes dormia com
ela, quando o meu avô já não estava connosco. Lembro-me que dormia sempre de
camisa de dormir de flanela e era pequenina e quentinha, como só as avós sabem
ser e eu encolhia-me para conseguir chegar aos seus pés e ela aquecia-me e contava-me
estórias e ditos antigos e orações…-que pena tenho agora não os ter assente… Pensamos
sempre que os que amamos são eternos e a sua memória não se apaga esquece, mas
chega um dia em que deixam de saber quem são…
Olhando
retrospetivamente, a saudade é imensa: das pessoas, dos afetos, das conversas e
só é mitigada pelo amor imenso dos pais, ainda presentes e elo a esse tempo
antigo e dos filhos, elo com o futuro e todos os projetos que sinto que ainda
me faltam cumprir.
Muita coisa mudou em mim:
os sonhos, a crença ilimitada nos outros e nas potencialidades da vida. Não o
sentindo, já percorri quase meio século, mas creio que o Natal evocará sempre
em mim, enquanto tiver consciência de que vivo, uma mescla de sentimentos agridoces
que mais nenhuma época do ano não tem o condão de fazer!
Carla
Alexandra do Espírito Santo Guerreiro
Texto inédito.
18 dezembro 2017
CÂNTICO
BRANCO
Pela calada da noite, veio Quione de mansinho
Estender alvo manto pelas veredas da serra
E o perfume da giesta, do carvalho e do azevinho.
Crepita em laudatória, cânticos que a lareira encerra.
Lá fora, o torpor dos andrajosos, gélidos desvalidos
À procura de recanto que o vento não fustigue,
Da intempérie que se abate sobre os passos doridos
Incitada por Despina, que cada pegada extingue.
Para outros, oh sublime pintura impressionista
Exuberante arraial de brilho e felicidade
Onde se veste de púrpura branca a vaidade,
Nas Selfies repetidas ao instante e ao achado
Para juntar ao álbum da fama e da posteridade
Onde não consta o gélido andarilho mal tratado.
José Maldonado
(Publicado na página de facebook do autor)
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