AS CORES DO NATAL
Na
aldeia de Trás-os-Montes, onde nasci, o colorido das lembranças natalinas
ilumina o olhar e a memória dessa tradição. As cores tradicionalmente usadas
para marcar a época eram o vermelho, o verde, o branco, o amarelo, o azul,
o prateado e o dourado; mas, muitas vezes, a cor que mais predominava
nesta época era o branco da neve e das fortes geadas que cobriam toda a região
de gélido frio, e nem o verde dos pinheiros sobressaía na paisagem montanhosa,
ou escondia cheiros e aromas da festividade. O frio vinha embrulhado em denso
nevoeiro, obrigando a um recolher quase clausura e à adoração paciente diante
da fogueira do lar.
Os
enfeites de oiro davam luz à tradicional festa, fazendo cintilar os embrulhos
dos presentes, o amarelo dourado das palhinhas do presépio, a luz das velas e
do fogo que ardia para aconchegar a alma. E, ainda, o colorido das bolas de
vidro na árvore de Natal, as fitas em azul, branco, amarelo, vermelho, verde,
as luzinhas a piscar e as guirlandas a enfeitar as portas.
À
espera dos presentes, havia a bota ou a meia, junto à lareira, o Presépio
montado numa pequena paisagem feita de musgo, trazido do monte pela pequenada, que
passara a tarde a recolher o aveludado musgo junto das pedras mais altas, nos
lugares mais húmidos, onde ele nasce macio e muito verde. Era tradição, e uma
romaria, subir ao Monte de S. Brás. Juntos corríamos as fráguas montanhosas à
procura do musgo macio que decorava o cenário do grande presépio no adro da
igreja e dentro das nossas casas.
E
o meu Natal sempre teve uma cor muito especial e perfumada. As violetas
apareciam junto à nora, terra húmida e bravia conservando-as cheirosas,
inebriando o ambiente, sobrepondo-se ao cheiro dos pinheiros, da lareira e dos
cozinhados natalícios. Como ansiava encontrá-las nas férias de Natal e fazer
raminhos que depois trazia para a escola primária e oferecia à senhora
professora!
Era
o meu Natal violeta e não trocava essa cor por nenhuma das outras; eram as
primeiras violetas que apareciam no campo, quase como por milagre; por entre a
geada ou a neve. Por isso o meu Natal tem cheiro de rabanadas perfumadas,
filhós violáceas, arranjos com pinhas e ramos de pinheiro e minúsculas violetas
arroxeadas, florindo por entre as bagas vermelhas do azevinho.
Os
olhos do meu Pai Natal eram de cor lilás e perfumavam os presentes que ficavam,
à noite, debaixo do pinheirinho para serem abertos logo pela manhã, bem cedo,
pela criançada.
Um
dos raminhos de violetas era levado ao Menino Jesus na Missa do Galo à
meia-noite e, muitas vezes, era a única saída de casa durante as férias de
Natal, em casa das avós, pois o frio obrigava as pessoas a ficarem recolhidas
nos seus lares; eram rigorosos os invernos transmontanos. As casas aquecidas
pela lareira dançavam sombras nas paredes da cozinha, as cores do fogo
crepitando, projectavam na penumbra o único filme da longa noite.
Uma
grande fogueira ardia com a lenha do pinhal, o canhoto estalava, cheirava a
madeira de pinho, giestas secas, estevas e rosmaninho. Os risos das crianças tinham
o sabor a fumo das histórias que a avó contava, enquanto se esperava para sair
para a missa ou enquanto ela fritava ao lume da lareira as filhós, as rabanadas
e os bolinhos de bacalhau. O arroz doce no pote de ferro cheirava a canela e a
laranja, aromatizado de sabores tradicionais, com os arabescos desenhados pela
avó. A aletria amarelinha era servida nas grandes travessas de barro ou de
esmalte. E pouco mais havia de doces natalícios.
O
espírito do Natal, nos confins da terra enregelada, iluminava de calor humano a
escuridão e o sossego do isolamento, tempos em que só havia o correio trazido
uma vez por semana pelo carteiro de bicicleta. As distâncias eram maiores, e as
notícias, às vezes, perdiam-se pela demora, esticando as saudades e encurtando
o tempo de tristezas.
Era
muitas vezes o carteiro vestido de Pai Natal que aparecia lá na aldeia e dizia
às crianças que estava a substituir o carteiro, que tinha ido de férias. E lá
ia a garotada toda atrás da bicicleta, a rir e a gritar com o pobre do homem,
chamando-lhe mentiroso, porque sabiam muito bem que ele era o carteiro,
disfarçado de Pai Natal. E o Pai Natal só vinha durante a noite e só sabia um
caminho para as casas da aldeia, o das chaminés.
A
ingenuidade infantil e o sonho da fantasia, com simples brinquedos de madeira
ou de latão, ou bonecas de trapos ou de barba de milho, muitas vezes feitas com
aproveitamento de meias velhas e cabelos de farripas de lã de ovelha, ou sobras
de fio, de grossas camisolas ou gorros, teimavam em prevalecer na imaginação
das crianças.
Quero
acreditar que esse Pai Natal ainda hoje existe, perfumado de violetas,
distribuindo palavras que ainda resistem a serem escritas.
Ana Bárbara de Santo António
Édito em Coletânea "Lugares e Palavras de Natal”,
Lugar da Palavra Editora, vol IV
1 comentário:
A tua marca poética nesta evocação de um natal pintado com as cores da inocência e da autenticidade. Foi muito saboroso acompanhar-te neste itinerário.
Parabéns, Ana Barbara Santo Antonio. Bjinho
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