08 dezembro 2017



Consoada duma família Cigana

A etnia cigana nunca foi muito bem vista em Barroso como, aliás, em todo o norte do País, por serem indivíduos pouco dados ao trabalho e inclinados para o gamanço. Em Barroso costuma dizer-se que “quem não trabuca não manduca” e por conseguinte, os ciganos, que não são gente de dar o corpo ao manifesto, não gozam ali de grande simpatia.
Em parte, esta filosofia Barrosã, tem a sua lógica se atendermos a que ali se vive do trabalho e todos trabalham arduamente para viverem.
Começava-se desde criança, mesmo na idade pré-escolar, a guardar as vacas nos lameiros. Faltava-se depois à escola para ir levar e buscar as vacas ao tapado. Nas férias, com um naco de pão centeio e uma boa talhada de presunto na saca, pendurada a tiracolo, tocava a marchar atrás das vacas por essa serra acima, todo o dia, ou com a rês quando batia a vezeira à porta. No pós-escolar alargavam-se os afazeres pelo campo e já lá vinha um irmão mais novo para lançar ao rabo dos bovinos. “De pequenino se torce o pepino” ainda diz o aforismo popular.
Em Barroso sempre se viveu para trabalhar e nunca se soube fazer outra coisa. Também a pobreza da região só é compensada com muito trabalho e quem não trabalha, quem não produz não tem o direito de consumir. Eis a razão da aversão Barrosã à ciganada. Não que a terra seja improdutiva, mas os rigores do clima com “nove meses de inverno e três de inferno”, as más ligações aos centros de consumo, mais recentemente a falta de braços provocada pela emigração e a escassa ou nula industrialização, é que fazem de Barroso uma região pobre.
O Ti João e a Tia Maria ciganos não eram como os demais. Honestos, humildes, educados e trabalhadores. Boas virtudes para se arranjarem amigos em Barroso e, assim, é que eles os arranjaram e eram estimados em rodo o Rio.
­ Eh calês[1] de quem és?
­ Da Maria Cigana.
­ Então toma lá um molho de feno p’ró gerico…
­ Toma lá umas batatas…um pedaço de broa para a família.
Enquanto a Tia Maria manguinhava[2] e tratava de fazer o ghalhar[3], os chaburrilhos[4]cortavam e limpavam vimes e Ti João fabricava cestas, fazia e consertava albardas.
- Oh calês, roubaste-me um molho de erva!?
- Não nhõr. Eu num chordo[5] co meu bate[6] currala-me[7] cum castre[8]
Não Senhor. Chordar não, manguinhar sim e nem fica mal a quem precisa.
Natal frio o desse ano. A neve que começara a cair lenta, bailando no ar como pétalas de flor de cerejeira, indo cair cada uma no lugar certo a completar o tapete branco, convertera-se naquela neve miudinha, gélida e furaqueira, tocada a vento lá das bandas do Gerez, que penetrava por qualquer minúsculo buraco.
Os cães tiritavam enrolados a um canto do pátio, sobre uns restos de palha, enterrando o focinho nas partes. Os gados não tinham saído a pasto. Os pardais, famintos, piavam tristes e de longe não se atrevendo a voos largos, recolhendo-se sob os beirais dos canastros com a plumagem eriçada.
Nesse dia, Ti João cigano não trabalhou. Matou o bicho com dois caudalosos tragos de panhi[9]e abalou a dar uma volta pelos palheiros a manguinhar uns molhos de feno para o gher[10]. À tarde foi procurar um madeiro para a fogueira da noite de consoada. No forno do povo estavam os da volta[11]e por serem brigões o Ti João não quisera misturar-se-lhes. Acampara sob uma extensa varanda, abrigada de norte e poente, por conseguinte, da inclemência da neve.
A um lado o burro, com o traseiro encolhido a proteger-se da intempérie e de um ou outro borrifo caído do beiral, consumia placidamente a molhada. Do outro lado, quatro mantas dobradas sobre um molho de palha onde dormiria toda a família: o João, a gamba[12] e os três chaburrilhos. Ao centro a grande fogueira e os potes a cobrirem-se de cinza.
- Maria, quando se cozem essas balulas[13]!?
- Já vai. Já deste o cadês[14] ó lacrô[15] p’ra ir buscar o mole[16]?
- Já. Jalela-te[17] Tonho se queres camelar[18] do mole!
E lá vai o Tonho a correr com a garrafa numa mão, enquanto com a outra segura pelo cós as calças que lhe saíram largas e sem alças.
É noite. A neve continua a polvilhar tudo em redor. Pelas janelas das casas rústicas o fumo sai se amaina a ventania., mas volta a entrar em redemoinho se ela o força. Tilintam nas cortes as campainhas e o gado remói. O burro do cigano consumiu o feno. À volta da fogueira, em religioso silêncio, só se ouve o crepitar da chama e o derriçar dos dentes no conduto. O Ti João, com as barbas besuntadas, derriçava a dente um pernil de porco, fumado, vermelhinho e capaz de fazer pecar o mais beato em Sexta-Feira Santa e os olhos sorriam-lhe felizes pelo petisco. Aquilo não era comer de todos os dias, nem era todos os dias, apesar de serem boa gente, que avezavam de esmola um pernil a não ser em paga de alguma cesta de vime! Dos três chaburrilhos, enquanto dois se compraziam com uma unha de porco e um bocado de chouriça, o mais novinho, de olhar brilhante, chupava um seio da runhi[19] descaído da blusa, enquanto esta, com uma faca, limpava até ao osso um canelo de presunto. Em escudela de madeira, fumegavam as balulas farinhudas, apetitosas, donde todos se serviam em comum.
Limpando os beiços e os queixos às costas da mão que, por sua vez, limpavam às vestes por altura do traseiro, embocavam a garrafa e o mole comprado na taberna do Augusto ajudava ao deleite daquela família.
A chama da fogueira dava ao quadro uma tonalidade de sol-posto à beira-mar.
Qualquer bom pintor faria dali a sua obra-prima pois jamais se viu assim um presépio tão natural. Faltava apenas a vaquinha que é animal com que cigano não quer nada.

Deus invejaria não ser humano para se associar àquela ceia.!



António Francisco Dias Vieira,
In "HISTÓRIAS DA BRECA - Curtas e irreverentes", Editora Fronteira de Caos, 2017

[1] -cigano
[2] -pedia
[3] -comer
[4] -filhos
[5] -roubo
[6] -pai
[7] -bate-me
[8] -pau, vara
[9] -aguardente
[10] -burro
[11] -pobres não ciganos que normalmente tinham a arte de latoeiros
[12] -mulher
[13] -batatas
[14] -dinheiro
[15] -rapaz
[16] -vinho
[17] -corre, vai depressa
[18] -beber
[19] -mãe

1 comentário:

Odete Ferreira disse...

Que delícia de relato!
Parabéns, António Francisco Dias Vieira. :)