A
CONSOADA
Enquanto a neve caía
sobre os lajedos ou nas ruas lamacentas, começando a estender, suavemente, o
seu manto branco sobre as pequenas casas de granito tosco, e as ovelhas
regressavam apressadamente aos redis, balindo graciosamente pelas quelhas,
anunciando aos cordeirinhos, seus filhos, que chegara a hora do reencontro,
após um dia inteiro pastando nos prados, a tia Prazeres ia acendendo o lume com
a caruma e cavacos de pinheiro, para fazer a consoada.
O sol que nessa
altura do ano nada aquece, e que naquele dia nem se viu, ia baixando
lentamente, para desaparecer, finalmente, por detrás dos pinheiros do
horizonte, mergulhando a pequena aldeia numa escuridão fantástica, sobre a qual
pairava uma densa neblina formada pelo fumo que saía pelos telhados das casas,
já cobertos de neve. A negritude era tal que só aquela gente sabia caminhar
pelas vielas estreitas, onde tudo era escuro, triste, alegrando-se apenas um
pouco mais, quando, também nas ruas, a neve começava a coalhar, aveludando
então tudo em redor.
O senhor José saiu de
casa, levando numa das mãos a lanterna de petróleo e na outra a ferrada. Ia à
loja ordenhar o gado.
Os filhos, o António
Francisco, a Isabel e o Zé Manuel que, embora traquinas, ia embalando o último
rebento, com pouco mais de um mês, seguiam todos com atenção as voltas
afadigadas da mãe e colaboravam, ajeitando as cavacas da fogueira crepitante ou
varrendo as lajes da cozinha, onde iam caindo as fonas e pedaços de carrasca de
pinheiro.
O avô, já com os seus
setenta anos, tinha ido ao cabanal à procura de um cepo do Natal: um tronco de
carvalho rijo e seco, guardado propositadamente para esta altura, que, posto na
fogueira, ardia até às tantas.
Em panelas separadas,
eram cozinhados os diferentes pratos da consoada. Numa estava a cozer a couve do
Natal, à qual seria misturado o trigo e pedaços de bacalhau. Na outra estavam
as batatas com cebola e bacalhau.
Na noite anterior,
quando os filhos já dormiam, tinham ficado os dois - pai e mãe - na cozinha, a
fazer as filhós e as fritas.
Por fim, estava tudo
preparado.
O pai acabara de
chegar, com a ferrada cheia de leite, tamancos fortes nos pés, salpicos de neve
no chapéu e no casaco, as mãos enregeladas.
A mesa, suspensa na
parede por uma das pontas e fixa com um cravelho, era baixada, firmando-se numa
perna. Estendia-se a toalha de linho branco. As batatas com a cebola e o
bacalhau fumegavam no alguidar de alumínio. Noutro, de barro vermelho vidrado,
estava a couve, mesmo apetitosa. A um canto da mesa estava um jarro com vinho.
No centro, o pão. Todos se sentavam à mesa, no banco comprido de pinho ou nos
mochos toscos, com pernas de carvalho. E comia-se com vontade, com apetite,
regando-se a couve e as batatas com azeite, enquanto os mais velhos bebiam o
vinho tinto gelado.
No final da ceia,
apareciam os irmãos e sobrinhos, que vinham festejar o Natal, saudar o avô e
conversar à roda da fogueira, enquanto se comiam figos secos e se bebia
aguardente.
Os mais novos
britavam nozes na pedra enegrecida da lareira.
O cepo de carvalho ia
ardendo e aquecendo, como símbolo da União e do Amor, da grande Festa da
Família.
A.
F. Caseiro Marques
In ASSIM SE MOLDAVA O BARRO,2003
1 comentário:
Um texto assaz delicioso!
Parabéns, Caseiro Marques!
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