Consoada duma família Cigana
A etnia cigana
nunca foi muito bem vista em Barroso como, aliás, em todo o norte do País, por
serem indivíduos pouco dados ao trabalho e inclinados para o gamanço. Em
Barroso costuma dizer-se que “quem não
trabuca não manduca” e por conseguinte, os ciganos, que não são gente de
dar o corpo ao manifesto, não gozam ali de grande simpatia.
Em parte, esta
filosofia Barrosã, tem a sua lógica se atendermos a que ali se vive do trabalho
e todos trabalham arduamente para viverem.
Começava-se
desde criança, mesmo na idade pré-escolar, a guardar as vacas nos lameiros.
Faltava-se depois à escola para ir levar e buscar as vacas ao tapado. Nas
férias, com um naco de pão centeio e uma boa talhada de presunto na saca,
pendurada a tiracolo, tocava a marchar atrás das vacas por essa serra acima,
todo o dia, ou com a rês quando batia a vezeira à porta. No pós-escolar
alargavam-se os afazeres pelo campo e já lá vinha um irmão mais novo para
lançar ao rabo dos bovinos. “De pequenino se torce o pepino” ainda diz o
aforismo popular.
Em Barroso
sempre se viveu para trabalhar e nunca se soube fazer outra coisa. Também a
pobreza da região só é compensada com muito trabalho e quem não trabalha, quem
não produz não tem o direito de consumir. Eis a razão da aversão Barrosã à
ciganada. Não que a terra seja improdutiva, mas os rigores do clima com “nove meses de inverno e três de inferno”, as más ligações aos centros de
consumo, mais recentemente a falta de braços provocada pela emigração e a
escassa ou nula industrialização, é que fazem de Barroso uma região pobre.
O Ti João e a
Tia Maria ciganos não eram como os demais. Honestos, humildes, educados e
trabalhadores. Boas virtudes para se arranjarem amigos em Barroso e, assim, é
que eles os arranjaram e eram estimados em rodo o Rio.
Eh calês[1] de quem és?
Da Maria
Cigana.
Então toma
lá um molho de feno p’ró gerico…
Toma lá
umas batatas…um pedaço de broa para a família.
Enquanto a Tia
Maria manguinhava[2] e
tratava de fazer o ghalhar[3], os chaburrilhos[4]cortavam
e limpavam vimes e Ti João fabricava cestas, fazia e consertava albardas.
- Oh calês, roubaste-me um molho de erva!?
Não Senhor. Chordar não, manguinhar sim e nem fica mal a quem precisa.
Natal frio o
desse ano. A neve que começara a cair lenta, bailando no ar como pétalas de
flor de cerejeira, indo cair cada uma no lugar certo a completar o tapete
branco, convertera-se naquela neve miudinha, gélida e furaqueira, tocada a
vento lá das bandas do Gerez, que penetrava por qualquer minúsculo buraco.
Os cães
tiritavam enrolados a um canto do pátio, sobre uns restos de palha, enterrando
o focinho nas partes. Os gados não tinham saído a pasto. Os pardais, famintos,
piavam tristes e de longe não se atrevendo a voos largos, recolhendo-se sob os
beirais dos canastros com a plumagem eriçada.
Nesse dia, Ti
João cigano não trabalhou. Matou o bicho com dois caudalosos tragos de panhi[9]e abalou a dar uma
volta pelos palheiros a manguinhar
uns molhos de feno para o gher[10]. À tarde foi
procurar um madeiro para a fogueira da noite de consoada. No forno do povo
estavam os da volta[11]e por
serem brigões o Ti João não quisera misturar-se-lhes. Acampara sob uma extensa
varanda, abrigada de norte e poente, por conseguinte, da inclemência da neve.
A um lado o
burro, com o traseiro encolhido a proteger-se da intempérie e de um ou outro
borrifo caído do beiral, consumia placidamente a molhada. Do outro lado, quatro
mantas dobradas sobre um molho de palha onde dormiria toda a família: o João, a
gamba[12] e os
três chaburrilhos. Ao centro a grande
fogueira e os potes a cobrirem-se de cinza.
- Maria,
quando se cozem essas balulas[13]!?
E lá vai o
Tonho a correr com a garrafa numa mão, enquanto com a outra segura pelo cós as
calças que lhe saíram largas e sem alças.
É noite. A
neve continua a polvilhar tudo em redor. Pelas janelas das casas rústicas o fumo
sai se amaina a ventania., mas volta a entrar em redemoinho se ela o força.
Tilintam nas cortes as campainhas e o gado remói. O burro do cigano consumiu o
feno. À volta da fogueira, em religioso silêncio, só se ouve o crepitar da
chama e o derriçar dos dentes no conduto. O Ti João, com as barbas besuntadas,
derriçava a dente um pernil de porco, fumado, vermelhinho e capaz de fazer
pecar o mais beato em
Sexta-Feira Santa e os olhos sorriam-lhe felizes pelo
petisco. Aquilo não era comer de todos os dias, nem era todos os dias, apesar
de serem boa gente, que avezavam de esmola um pernil a não ser em paga de
alguma cesta de vime! Dos três chaburrilhos,
enquanto dois se compraziam com uma unha de porco e um bocado de chouriça, o
mais novinho, de olhar brilhante, chupava um seio da runhi[19]
descaído da blusa, enquanto esta, com uma faca, limpava até ao osso um canelo
de presunto. Em escudela de madeira, fumegavam as balulas farinhudas, apetitosas, donde todos se serviam em comum.
Limpando os
beiços e os queixos às costas da mão que, por sua vez, limpavam às vestes por
altura do traseiro, embocavam a garrafa e o mole
comprado na taberna do Augusto ajudava ao deleite daquela família.
A chama da
fogueira dava ao quadro uma tonalidade de sol-posto à beira-mar.
Qualquer bom
pintor faria dali a sua obra-prima pois jamais se viu assim um presépio tão
natural. Faltava apenas a vaquinha que é animal com que cigano não quer nada.
Deus invejaria
não ser humano para se associar àquela ceia.!
António Francisco Dias
Vieira,
In "HISTÓRIAS DA BRECA - Curtas e irreverentes",
Editora Fronteira de Caos, 2017
[1] -cigano
[2] -pedia
[3] -comer
[4] -filhos
[5] -roubo
[6] -pai
[7] -bate-me
[8] -pau, vara
[9] -aguardente
[10] -burro
[11] -pobres não ciganos que
normalmente tinham a arte de latoeiros
[12] -mulher
[13] -batatas
[14] -dinheiro
[15] -rapaz
[16] -vinho
[17] -corre, vai depressa
[18] -beber
[19] -mãe
1 comentário:
Que delícia de relato!
Parabéns, António Francisco Dias Vieira. :)
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