Tudo é possível para quem acredita.
Jesus de Nazaré,
fundador do Cristianismo (em Marcos 9:23)
TRÊS
PIRILAMPOS NO NATAL
– Ritinha, vamos para a mesa. O comer
está pronto. Vai lavar as mãos primeiro!... – diz a mãe, na cozinha, enquanto
dá os últimos retoques na refeição.
Passam poucos minutos e a Ritinha
mantém-se impávida a tagarelar, no chão do seu quarto.
– Ritinha, não me ouviste chamar?
Ritinha?!...
– És uma acelerada, mamã! – diz a miúda,
de forma bem audível.
– Sou uma quê?
– Uma a–c-e-l-e-r-a-d-a! Tu ouviste bem,
pois fui clara! – soletrou a criança, dizendo cada nome de letra, tal e qual,
pela ordem correta.
O pai levanta-se da mesa e puxa a miúda
por um braço e diz-lhe com severidade: – Não ouviste a tua mãe? E um bocadinho
de respeito não te fica bem? Há alturas que me fazes perder a paciência!
A miúda mantém a calma, apesar de
forçada fisicamente a levantar-se, e responde de seguida, quando a mãe também
se aproxima: – Por isso mesmo é que o Menino Jesus está aqui a falar comigo.
– O Menino Jesus? Ai valha-me Nossa
Senhora!... Esta rapariga dá comigo em doida! – desabafo da mãe, enquanto limpa
as mãos ao avental.
– Sim o Menino Jesus, mas não é o bebé…
o que a gente vê no presépio, deitado nas palhinhas… com a vaquinha, o
burrinho… e o pastor com o borreguinho… Ele está quase a fazer cinco anos como
eu – e levanta a mão, com os dedos esticados, para se ver bem que são cinco,
continuando – E olha que ele tem conversas muito interessantes, faz-me
companhia e até me faz rir quando vocês… – faz uma breve pausa e continua –
vocês discutem um com o outro. E não percebo… se vocês gostam um do outro, por
que discutem?
– Querem ver… só faltava mais esta!... –
diz o pai, já a ficar descontrolado – Ela não vem para a mesa e eu, no meio
disto tudo, é que sou o mau da fita… querem lá ver! Ó Lúcia, tira-lhe as pilhas
que eu já não aguento mais! Trá-la tu, que nós vamos começar a servir-nos. Anda
– o João mete o braço no meu e leva-me até à mesa, pois também me tinha
levantado e ainda diz – desculpa lá o atraso e tudo isto.
Conheço a Ritinha desde que nasceu, é
filha única e sempre demonstrou ser uma criança muito viva e precoce. Acho
mesmo que tem “qualquer coisa de especial”. Já me tinha dito que no jardim de
infância o aconselharam a levá-la a um psicólogo, para apoio especializado,
pois era muito hiperativa e punha os nervos em franja às educadoras. Deu para
ver que este almoço de domingo começou um pouco atribulado. Quando nada o fazia
prever, a dada altura a conversa azedou mesmo entre o casal. Estamos a poucos
dias do Natal e, nesta altura do ano, há um redobrar de stresse. Ambos
aparentam preocupação com a questão das prendas e esgrimam argumentos, em que
ele não quer passar a consoada com a numerosa família dela e ela não a quer
passar com os pais e irmã dele – família do meu lado. Ficarem os três sozinhos
também não parece não agradar a nenhum. Apesar de eu ser um familiar próximo,
não deixo de ser um convidado e nada fazia prever que falassem tão abertamente.
Espero, depois do que vi, que consiga dar ao João um pouco de esperança e
fazê-lo arribar com a perspetiva de uma oportunidade de atividade independente
rentável e cujo investimento será, na minha ótica, rapidamente recuperado.
A Ritinha manteve-se calada (coisa rara)
até acabar de comer a sopa embala, comprada no hipermercado, o que fez com
muita lentidão, seja para absorver bem a conversa, mesmo que desagradável,
porque não era a sopa preferida ou por qualquer outra razão. Então,
parecendo-lhe ser a altura indicada, desfere o seguinte, dirigindo-se ao pai –
O Menino Jesus ensinou-me que o amor deve fluir, como fazendo parte da
natureza, como flui… aquela coisa que anda no ar e brilham muito… vocês sabem… ai…
parecem bolinhas de sabão… quando na primavera as árvores dão flor. Sei que não
há desejo sem conflito, pois eu gosto muito de chocolates e vocês dão-me umas
palmadas nas mãos e ralham, por eu estar a ficar gorda, mas vocês não deixam
fluir o amor e estragam tudo...
Estava impressionado com a lucidez e
desenvolvimento da miúda, própria de um adulto e mantive-me em silêncio, mas o
João não foi capaz e interrompeu-a: – Olha, até a formiga tem catarro! Já disse
à tua mãe para te tirar as pilhas! – mandando-lhe um olhar frio e, quem sabe, como
que a querer culpá-la pela miúda ser como é.
– O Natal é amor – continua a Ritinha,
indiferente ao comentário jocoso do pai – Embora todos gostem de receber
presentes, o Natal está para além das prendas e mais agora que estás sem
trabalho. E para mim até é uma chatice! Faço anos no dia 23 e é como se eu e
Jesus fizéssemos anos com um dia de diferença. Mas ele já me disse que pode não
ser bem assim, porque para os orto… ortod… ai… ortodoxos, o dia de nascimento
dele é no dia 7 de janeiro, mas que isso não tem importância nenhuma. Para mim,
eu faço numa noite e o Menino Jesus faz anos na noite a seguir, mas é chatice
porque vocês sentem que me devem dar prendas num dia e logo no outro a seguir,
por ser Natal. Mas a melhor prenda era mesmo o amor…
–
Ei… ei… espera lá! Estás a querer dizer que não gostamos de ti? – mostra-se
admirada a mãe.
– Não, não fiques chateada. Não é bem
isso. Mas vocês sabem bem que não me queriam…
– Não te queríamos? Que história é essa?
– atalha o pai, perplexo, e vira-se para a mulher e diz-lhe – Ouve lá, o que é
que andaste a meter na cabeça da miúda?
A Lúcia só lhe respondeu com uma
pergunta, mas com ar zangado – Achas???
O João vira-se para mim, como que
envergonhado, e diz em jeito de desculpa – Já viste isto? Eu dou em maluco!
–
Vocês sabem bem! – insiste a criança, mentalmente evoluída e bem adulta, e
continua – Eu não quero saber de televisão, jogos de computador, filmes, mesmo
de bonecos que mexem… é tudo de um mundo imaginário e eu gosto de brincar à
minha maneira, trabalhar a minha imaginação e não pensar como os outros ou com
a cabeça dos outros. Vocês andam muito ocupados com a vossa vida. Ignoram-me ou
ralham comigo por tudo e por nada. Desde sempre achaste que eu vim cedo de mais
e empurraste para a mamã, para ela querer-me ou não. A mamã quis mas anda
sempre atarefada. Eu às vezes quero falar, mas o Jesus diz-me para eu não
ligar, para não julgar, não criticar… que Deus também não o faz. E diz-me para
perdoar e ser amiga de vocês e da Ester do infantário, que às vezes bate-me por
eu gritar quando brinco e por não obedecer. Mas quem se porta mal é ela, que
devia ser castigada, embora os castigos não sirvam para nada e nem os castigos
estão no plano de Deus. Dizemos que ela se chama “estérica”, por estar sempre
aos gritos e maldisposta. Eu só não gosto é que me controlem a mente.
– A quê?! Ó João estás a ouvir bem?
Também achas que fui eu que lhe ensinei estas coisas? – diz a mãe, que só não
aparenta maior admiração por saber a filha que tem, desde que esta começou a
falar.
–
Não digo de onde vim, mas vim de muito longe e agora há muitos meninos, como
eu, que não querem continuar o vosso passado e receber a vossa educação.
Queremos que seja tudo bem diferente, porque o mundo tem de ser diferente, não
pode continuar assim e tudo começa nas escolas… – diz a Ritinha, até ser
interrompida.
– Ouve lá… ó pirralha! Que mal tem a
nossa educação? – diz o pai, a tentar exercer a sua influência.
– Acho que vocês são todos uns medrosos…
que foram preparados para obedecer. Ai… desculpa dizer isto… vê só, tu foste
despedido e dizes que nem sabes por quê. Não foram honestos contigo e fica tudo
bem… A mamã trabalha agora mais, ganha menos dinheiro e vem chateada para casa
– deixa-se, por uns instantes, estar fixada no estarrecido pai e depois vira-se
para a mãe – Sim, porque eu olho para a tua aura e fico preocupada. As cores
estão mesmo esborratadas! Andas fraca, por causa de tudo isto… por causa do
emprego, da comida, de não descansares, do stresse e de hábitos negativos.
Assim és mais afetada pelas forças exteriores. Queres um conselho?
– Qual é? – diz a embasbacada mãe, como
quem está à espera do conselho da vidente.
– Vai até ao lago onde andam os patos,
no Parque da Paz, e senta-te um bocado debaixo do salgueiro. Vais ver que as
dores de cabeça desaparecem num instante. E olha que o papá não está melhor.
Sente-se mal por causa de não ter trabalho, depois complica tudo e não faz nada
para se sentir bem. Nem lhe digo as cores que vejo. Se não chover de tarde, vão
os dois passear de mão dada até ao Parque e… – vira-se para o pai e diz –
senta-te debaixo de um pinheiro para purificar as energias negativas. Se
chover, fiquem em casa a ouvir canto greg… greg… ai… gregoriano. Também faz bem
e acalma.
Nós os três olhávamos uns para os
outros, completamente rendidos, e eu por nada queria interromper aquela
espantosa miúda, a fazer-me lembrar os incompreendidos mas espantosos génios
que tocam complicadíssimas peças de piano ou de violino, apenas com 4 anos.
Como demos espaços à Ritinha, ela continuou fluentemente o seu discurso – Uma
vez falava com o Menino Jesus e ele disse-me para imaginar um pirilampo numa
noite escura de verão. Depois disse-me para imaginar o espetáculo dado por
milhares de pirilampos todos juntos, deu-me um bocadinho de tempo para pensar…
e perguntou-me: “achas que alguém quer saber do escuro?”. Na noite de Natal,
não me vou importar com brinquedos. Adorava que nessa noite fôssemos três
pirilampos. Ó primo careca, também podes vir – disse, dirigindo-se a mim e
continuou – ai… ai… se houvesse muitos mais pirilampos este Natal seria tão
lindo!
Jorge Nuno
(Texto inédito, 2013)
1 comentário:
A Ritinha é como a Mafalda: põe todos os dedos na ferida...
Quem dera , sim, que "houvesse muitos mais pirilampos".
Gostei muito, amigo Jorge Nuno. Parabéns!!!
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