07 janeiro 2018


A CARTA

Estremunhado, às escuras soergueu-se e rodou noventa graus. Ficou sentado no bordo da cama. Cruzou os pés e calçou as pantufas. Descruzou os pés e levantou-se. Tentou perceber onde estava. Estranho! Nada lhe era familiar, nem o ar em si mesmo com um travo de frio, nem tão pouco o odor das madeiras. Aprumou-se e pé ante pé, vai que não vai, foi em direcção da frincha de luz que vislumbrava. Rodou o fecho, abriu as portadas da janela e milhares de arcos-íris entraram de rompante na obscuridade! Fragmentos luminosos, vermelhos em toda a gama, azuis e roxos, amarelos e violetas, mas todos baralhados e fora de sítio, partidos em pedaços minúsculos. Cegou com tanta luz. Fechou os olhos e recuou devagar, mais e mais até se encostar à parede. Receoso, olhos semicerrados espreitou. Sim, lá estava aquele espectáculo de luz e de cor de uma intensidade enorme e de uma beleza ímpar, muito mais belo do que tudo o que vira nas festas da cidade. Flores de luz que se agrupavam e se isolavam, cristalinas e moventes passavam de um tom para outro. Nunca tal coisa tinha visto. Ali era a janela, mas as janelas não são assim. As janelas deixam ver para fora, mas aquela só se deixava ver a si mesma. Um caleidoscópio marado. Mas o tamanho e o que via!... Porra! Meteram o arco-íris na trituradora; despejaram os pedaços por cima da janela!
Resolveu fazer marcha atrás na memória, lembrar-se de como estava ali e porquê, que era maneira de ir sossegando e de saber o necessário para entender tudo aquilo. Mas estava confuso e não conseguia pensar. Aqueles brilhos, fugidios a cada pestanejar, baralhavam-no por completo. Não conseguia regressar ao início, começar pelo começo. Não se lembrava de nada.

A noite fora fria e caíra geada.
            Os cristais de gelo agarraram-se
            às vidraças, que nem lapas.
            Agora, num raio de sol fugidio entre as nuvens,
            a luz dispersa-se em refracções e transparências.
            A janela vive na invenção de um tempo breve.

Encostado à parede, olhos fechados tinha feito o caminho da memória e relembrado o necessário para entender a situação. Agora sabe porque está aqui: um dia de Natal, sozinho, uma casa alugada, um descampado, um sítio desconhecido, vai escrever uma carta. Abre os olhos e tudo mudara! A janela está agora preenchida por um rendilhado de brilhos suaves e brancos opalescentes, imersos em transparências, formas translúcidas e fugazes. Geometrizações radiantes, diversas e cativantes, imagens suaves na passagem de tom e firmes no recorte das formas, oscilando entre o branco puro e o cinzento profundo numa sensação de fragilidade imensa, como se fosse o sossego antes do apagamento.
Não quer perder o que vê. Rápido, vai às portadas e fecha-as muito de mansinho. Guarda o que vê na janela fechada. 
Fica às escuras. Há mais janelas, mas acha prudente não as abrir não vá acontecer o que quer que seja e lá se baralha tudo de novo que, por enquanto, já chega assim. Então foi acendendo aqui uma vela, ali um candeeiro a petróleo. Nem sequer vê se há electricidade ou não.
Vai de um lado para o outro e não abre nenhuma porta. Todas estão abertas. 
Entra pela porta aberta: cozinha grande de grande e nada moderna. Fogão a lenha e essas coisas. A um canto a lareira onde cabe uma família toda, com o chão em pedra enegrecido de fumo e esbranquiçado de cinzas; potes de ferro e mais utensílios, escanos à volta. Mesas, o cântaro de zinco e os tachos de cobre. Deve dar muito trabalho limpar tudo. Teve como que a impressão de que está habitada. É como se houvesse ali quem descascasse as batatas, quem atiçasse a lareira e chegasse os potes ao lume, quem se atarefasse na preparação da próxima refeição. Sentem-se as presenças dos seus ocupantes. Se calhar ainda ontem ali estavam a limpar tudo muito bem limpo, porque hoje ele ia chegar. Então saíram à pressa, já noite feita. 
Passa mais uma porta aberta e entra na sala de jantar. Mesa ao meio a todo o longo, uma cristaleira, um aparador, mesas de apoio. As cadeiras todas encostadas às paredes. Estranho: uma cadeira, só uma junto à cabeceira da mesa como se o dono da casa ainda ali estivesse. Aproxima-se e na mesa, em frente da cadeira põe a folha de papel de carta, ao lado o envelope e a caneta junto. Ficam bem em cima daquela mesa enorme, brilhante na sua madeira maciça devidamente encerada. Senta-se e a mesa brilha em reflexos subtis ao longo do comprimento. Acaricia a madeira. Sente a textura suave e muito adocicada da cera. Pousa as duas mãos e pressiona forte para sentir e sentir-se em união. Está à cabeceira. Preside a algo de imaginário, a uma refeição solene talvez, onde se brinda e se discursa; coisas importantes a dizer e a ouvir. Mas de um lado e do outro da mesa não há nada, nem ninguém. Olha para o papel de carta. Não, ainda é cedo para escrever. Nada de pressas que a pressa é má conselheira. Pega no papel, no envelope e na caneta de tinta permanente e dirige-se para uma porta aberta e entra. (…)
Assim à primeira vista, aqui a biblioteca não é actualizada há um ror de tempo. (…)
Puxou uma cadeira e sentou-se na ponta da secretária. Não se atrevia a ocupar o centro deste espaço que não era seu. Pensando melhor, sentou-se de lado. Colocou na sua frente o papel de carta, o envelope e a caneta. Ia escrever a carta, uma carta de Boas Festas, uma carta única, a mais bela de todas as que se tinham escrito desde sempre. Estava ali sentado, longe de tudo e de todos para poder escrever a carta. Estava ali sentado num lugar onde se pensava e se elaboravam teorias profundas e fundamentais para o devir da humanidade, nunca saindo da biblioteca da casa no descampado, nunca passando de frases escritas numa folha de papel, muito provavelmente. Mas elas são o espelho da inquietação que leva a procurar a outra margem, aquela que é sempre mais bela, e é isso que importa e é isso que ele veio fazer. (…)

Porfírio Alves Pires
(Excertos adaptados, in O Vale do Cego)

1 comentário:

Odete Ferreira disse...

Não é fácil colocar em palavras precisas o turbilhão de pensamentos e a avalanche memorial de situações vividas, nas quais as pessoas e os lugares se misturam num real/surreal que nos entontece.
O autor conseguiu-o muito bem.
Parabéns, Porfírio Alves Pires.