A CARTA
Estremunhado, às escuras soergueu-se e rodou noventa graus.
Ficou sentado no bordo da cama. Cruzou os pés e calçou as pantufas. Descruzou
os pés e levantou-se. Tentou perceber onde estava. Estranho! Nada lhe era
familiar, nem o ar em si mesmo com um travo de frio, nem tão pouco o odor das
madeiras. Aprumou-se e pé ante pé, vai que não vai, foi em direcção da frincha
de luz que vislumbrava. Rodou o fecho, abriu as portadas da janela e milhares
de arcos-íris entraram de rompante na obscuridade! Fragmentos luminosos,
vermelhos em toda a gama, azuis e roxos, amarelos e violetas, mas todos
baralhados e fora de sítio, partidos em pedaços minúsculos. Cegou com tanta
luz. Fechou os olhos e recuou devagar, mais e mais até se encostar à parede.
Receoso, olhos semicerrados espreitou. Sim, lá estava aquele espectáculo de luz
e de cor de uma intensidade enorme e de uma beleza ímpar, muito mais belo do
que tudo o que vira nas festas da cidade. Flores de luz que se agrupavam e se
isolavam, cristalinas e moventes passavam de um tom para outro. Nunca tal coisa
tinha visto. Ali era a janela, mas as janelas não são assim. As janelas deixam
ver para fora, mas aquela só se deixava ver a si mesma. Um caleidoscópio
marado. Mas o tamanho e o que via!... Porra! Meteram o arco-íris na trituradora;
despejaram os pedaços por cima da janela!
Resolveu fazer marcha atrás na memória, lembrar-se de como
estava ali e porquê, que era maneira de ir sossegando e de saber o necessário
para entender tudo aquilo. Mas estava confuso e não conseguia pensar. Aqueles
brilhos, fugidios a cada pestanejar, baralhavam-no por completo. Não conseguia
regressar ao início, começar pelo começo. Não se lembrava de nada.
A noite fora fria e caíra geada.
Os cristais de gelo
agarraram-se
às vidraças, que nem
lapas.
Agora, num raio de sol
fugidio entre as nuvens,
a luz dispersa-se em
refracções e transparências.
A janela vive na
invenção de um tempo breve.
Encostado à parede, olhos fechados tinha feito o caminho da memória e
relembrado o necessário para entender a situação. Agora sabe porque está aqui: um
dia de Natal, sozinho, uma casa alugada, um descampado, um sítio desconhecido,
vai escrever uma carta. Abre os olhos e tudo mudara! A janela está agora preenchida
por um rendilhado de brilhos suaves e brancos opalescentes, imersos em
transparências, formas translúcidas e fugazes. Geometrizações radiantes,
diversas e cativantes, imagens suaves na passagem de tom e firmes no recorte
das formas, oscilando entre o branco puro e o cinzento profundo numa sensação
de fragilidade imensa, como se fosse o sossego antes do apagamento.
Não quer perder o que vê. Rápido, vai às portadas e fecha-as muito de
mansinho. Guarda o que vê na janela fechada.
Fica às escuras. Há mais janelas, mas acha prudente não as abrir não vá
acontecer o que quer que seja e lá se baralha tudo de novo que, por enquanto,
já chega assim. Então foi acendendo aqui uma vela, ali um candeeiro a petróleo.
Nem sequer vê se há electricidade ou não.
Vai de um lado para o outro e não abre nenhuma porta. Todas estão
abertas.
Entra pela porta aberta: cozinha grande de grande e nada moderna. Fogão a
lenha e essas coisas. A um canto a lareira onde cabe uma família toda, com o
chão em pedra enegrecido de fumo e esbranquiçado de cinzas; potes de ferro e
mais utensílios, escanos à volta. Mesas, o cântaro de zinco e os tachos de
cobre. Deve dar muito trabalho limpar tudo. Teve como que a impressão de que
está habitada. É como se houvesse ali quem descascasse as batatas, quem
atiçasse a lareira e chegasse os potes ao lume, quem se atarefasse na
preparação da próxima refeição. Sentem-se as presenças dos seus ocupantes. Se
calhar ainda ontem ali estavam a limpar tudo muito bem limpo, porque hoje ele
ia chegar. Então saíram à pressa, já noite feita.
Passa mais uma porta aberta e entra na sala de
jantar. Mesa ao meio a todo o longo, uma cristaleira, um aparador, mesas de
apoio. As cadeiras todas encostadas às paredes. Estranho: uma cadeira, só uma
junto à cabeceira da mesa como se o dono da casa ainda ali estivesse. Aproxima-se
e na mesa, em frente da cadeira põe a folha de papel de carta, ao lado o
envelope e a caneta junto. Ficam bem em cima daquela mesa enorme, brilhante na
sua madeira maciça devidamente encerada. Senta-se e a mesa brilha em reflexos
subtis ao longo do comprimento. Acaricia a madeira. Sente a textura suave e
muito adocicada da cera. Pousa as duas mãos e pressiona forte para sentir e
sentir-se em união. Está à cabeceira. Preside a algo de imaginário, a uma
refeição solene talvez, onde se brinda e se discursa; coisas importantes a
dizer e a ouvir. Mas de um lado e do outro da mesa não há nada, nem ninguém.
Olha para o papel de carta. Não, ainda é cedo para escrever. Nada de pressas
que a pressa é má conselheira. Pega no papel, no envelope e na caneta de tinta permanente
e dirige-se para uma porta aberta e entra. (…)
Assim à primeira vista, aqui a biblioteca não é actualizada há um ror de
tempo. (…)
Puxou uma cadeira e sentou-se na ponta da secretária. Não se atrevia a
ocupar o centro deste espaço que não era seu. Pensando melhor, sentou-se de
lado. Colocou na sua frente o papel de carta, o envelope e a caneta. Ia
escrever a carta, uma carta de Boas Festas, uma carta única, a mais bela de
todas as que se tinham escrito desde sempre. Estava ali sentado, longe de tudo
e de todos para poder escrever a carta. Estava ali sentado num lugar onde se
pensava e se elaboravam teorias profundas e fundamentais para o devir da
humanidade, nunca saindo da biblioteca da casa no descampado, nunca passando de
frases escritas numa folha de papel, muito provavelmente. Mas elas são o
espelho da inquietação que leva a procurar a outra margem, aquela que é sempre
mais bela, e é isso que importa e é isso que ele veio fazer. (…)
Porfírio Alves Pires
(Excertos adaptados, in O Vale do Cego)
1 comentário:
Não é fácil colocar em palavras precisas o turbilhão de pensamentos e a avalanche memorial de situações vividas, nas quais as pessoas e os lugares se misturam num real/surreal que nos entontece.
O autor conseguiu-o muito bem.
Parabéns, Porfírio Alves Pires.
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