Quando uma língua não serve para rezar. Quando se dizem todos os pecados
a Deus, sem medo, e se tem vergonha de rezar em mirandês. Quando é assim, não
há língua que resista. Parece que Deus, quando andou pelo mundo a aprender as
línguas, chegou aqui e passou ao lado. Eu creio que o desviaram. É tempo de
Deus não ter vergonha de falar em mirandês.
Quando uma língua não se escreve, dizem que a história ainda não começou,
porque não há como contar essa história. Apenas pode ser contada pela língua
dos outros. Uma língua sem história não pode durar para sempre.
O pior é quando a língua deixa de servir para pensar. Ou, quando
dormimos, não aparece a falar nos sonhos, porque a língua dos sonhos é aquela
que está dentro de nós. Fala-se como se respira. Se o leite que mamamos não vem
misturado com a língua, esta não pode ficar metida dentro de nós e ser tão
importante para a vida como o estômago, o coração, a cabeça, o fígado. Só dessa
maneira não se pode viver sem ela. Apenas assim aparece nos sonhos, ainda que não
queiramos. Uma língua que não fala nos sonhos não vai longe.
Há palavras que, quando as dizemos, nos deixam com pele de galinha, mas
apenas nós nos apercebemos; há sons que mos envolvem como uma onda de calor,
mas apenas nós sentimos o gelo que por vezes trazemos dentro de nós a derreter;
há trejeitos da língua dentro da boca, falando, que nos fazem cócegas que
ninguém mais sente; há ditos que não têm outra maneira de se dizer e ninguém se
apercebe quando não conseguimos traduzi-los; há coisas que, quando usamos outra
língua para as dizer, soam como estranhas e, no fim, ficamos com a ideia de que
não fomos capazes de as dizer. Há palavras, sons, ditos, coisas, que dormiram
durante tanto tempo connosco, que tomaram cama para um lado e quando não nos
deitamos para esse lado é como dormir sobre uma pedra.
Em Lisboa há um jardim zoológico com animais de outros países ou que já
desapareceram dos campos. Quem fala mirandês, pode ser como esses animais
raros: toda a gente gosta de os ouvir e acha piada à sua língua. Está a chegar
um tempo em que quem fala mirandês pode estar como num jardim zoológico, animal
raro a quem as pessoas acham piada e por quem têm curiosidade. Acontecem coisas
que nos devem fazer pensar: há grupos, associações e até partidos para defender
tudo o que está a desaparecer. Defendem-se os pássaros, os burros, certas aves.
O governo até dá dinheiro para tudo isso. Por mim, até concordo. Por que razão
com o mirandês, uma língua que está a desaparecer, nada disso acontece?
Os mirandeses apenas podem gabar-se de uma coisa: a sua língua. Correi o
mundo inteiro e não encontrareis nada igual. Não é melhor do que as outras
línguas, mas é a nossa, única no mundo. Porque as línguas são como as pessoas,
cada pessoa: por muito semelhantes que sejam, são todas diferentes. Quando uma
delas morre, é algo que se perde para sempre.
Há mil anos, dizem, já se falava mirandês. Talvez fosse um pouco
diferente, mas era mirandês. Uma língua que teimou permanecer numa pequena
ilha, cercada pelo mar que é o português e o castelhano, deve levar-nos a
pensar. Se morrer, com ela morrerão de novo todas as pessoas que nestes mais de
mil anos a falaram. Então, ficamos com um enorme problema: nem em toda a Terra
de Miranda há espaço para enterrar tanta gente. Por isso, como almas penadas,
ficaremos condenados a chocar constantemente com os esqueletos da língua que
morreu: uma palavra aqui, uma letra além, um dito mais adiante. E quando,
durante o inverno, o fumo das chaminés se for espalhando com o vento por
fontes, por outeiros e por vales, os esqueletos da língua virão a aquecer-se na
boca de algum velho sentado à lareira com os netos nos joelhos. Porém, de tão
enregeladas, as letras, as palavras, não conseguirão juntar-se para formar
contos ou cantigas.
Concordareis comigo que ninguém gosta de viver num cemitério ou caminhar
por um campo de batalha onde apenas ficaram cadáveres, cheiro a pólvora e,
passado algum tempo, a carne putrefacta. Um campo assim, apenas pode ser bom
para os abutres que, voltejando no céu, virão descendo com os bicos preparados
para se fartarem. E só quem está cego não vê os abutres que já andam por aí.
Nada tenho contra os abutres, mas essa não pode ser a missão dos mirandeses.
Desde que os homens falam, já muitas línguas morreram: são línguas mortas.
Essas línguas ou geraram outras, que são suas filhas, ou deixaram escritos que
podemos ler e, pelo menos aí, voltam a viver. Porém, línguas houve que
desapareceram, ninguém sabe delas. As pessoas que as falaram é como se nunca
tivessem existido pois nada há que permita recordá-las.
Que destino queremos para o mirandês?
Há um tempo para tudo. Agora é o tempo para responder à pergunta. Para
responder com a cabeça. Porém antes, deixemos o coração pensar, pois é por aí
que a língua melhor se percebe.
No passado, há muitos anos, obrigaram-nos a falar português. Disseram-nos
que o mirandês não era uma língua de gente ou, então, era uma língua de gente
estúpida, atrasada. Os reis obrigavam as pessoas a fazer os documentos oficiais
em português. Os enviados do rei vinham a Miranda e falavam português. O
português era a língua dos ricos e do poder e, com o tempo, o mirandês foi-se
identificando como fala dos pobres, como fala do campo. Depois, quando Miranda
foi elevada a cidade, veio um bispo que obrigou todas as pessoas a rezar em
português. Todos deviam aprender as orações que mandou afixar nas portas das
igrejas. Desse modo, a língua foi expulsa da Igreja. Desde então para cá, foi
ficando pelos caminhos, abrigou-se do frio em volta das chaminés, acompanhava os
nossos sonhos. Envergonhada, foi-se escondendo de quem vinha de fora, foi
encolhendo até ficar presa numa pontinha de Portugal. Aí, nunca conheceu
fronteiras impostas por reis e manteve a sua pátria, para além das guerras,
dentro da casa da sua família asturo-leonesa.
Passou a andar por aí a lavrar, a ceifar, a cavar, a vindimar, a regar, a
apanhar rosmaninho para estrume, a apanhar lenha, a caminhos, a apascentar as
mulas ou as vacas. Sempre de cabeça levantada, mesmo com frio e com fome,
cansada, com sono. Foi língua de raiva, mas também de embalar; língua deste
inferno de mete pé saca pé e língua de sonhar com vidas melhores; língua de
ralhar e língua de torna-jeira ou torna o burro; língua de chorar e língua de
festas e de dançar; língua de morrer e língua de nascer. Enquanto andava por
aí, parava nas forjas a aquecer-se e saía de lá transformada em relhas, sachos,
guinchas, machadas, foices de cabo comprido e varandas; subia ao campanário e
tanto repicava a casamentos e baptizados como chamava à missa, voltejando solenemente,
ou tocava a rebate quando os medos eram tão fortes que obrigavam a juntar toda
a gente; era língua de bombeiros em filas de baldes sem fim; aos domingos à
tarde andava pelo Sagrado, engalanada, ou corria as ruas a dar vivas à
mocidade; quando tinha sede, baixava-se a beber de boca nos ribeiros ou
agarrava-se à picota, para baixo e para cima, sem parar; quando tinha fome, ia
pelas Arribas e pelo Planalto e, com a raiva feita sacho, alavanca ou enxadão,
punha as rochas a dar uvas, azeitona ou centeio.
Por vezes ficava em casa à espera, pois não a deixavam ir para a
Argentina, o Brasil, Sevilha, Lisboa, a França e outros mundos de Deus. Também
nunca foi à guerra, mas tantas vezes morreu por lá.
Era uma língua de vida. Vida difícil, mas vida. Era uma língua de uma
raça igual à da gente que a fala: gente orgulhosa, que nunca desiste nem se
contenta com o que tem ou o que é; gente que chora com raiva e, na desgraça ou
na necessidade, é capaz de se unir como se fosse um só; gente que à força de
passar a vida a subir encostas, aprendeu a olhar para cima; gente que a cada
sachada, a cada sulco, a cada balde de água, vai semeando e regando sonhos de
futuro e é capaz de tudo – apenas ela e deus sabem quanto! –, para ter a
vaidade de parir filhos que tenham uma vida melhor; gente que teimou em falá-la
e sempre se deu bem com ela.
Os anos foram passando, umas gerações após outras. E a língua foi ficando
sempre, como uma herança. As histórias que fazia, ninguém as escreveu. Hoje,
quem as pode contar? Onde haveria memória tão grande que lá coubessem todas?
Por isso, ficaram por aí: umas foram enterradas e já se desfizeram em terra,
outras voaram com o fumo das chaminés nas noites de inverno, abrigando-se
dentro das grutas, metendo-se pelos buracos das paredes, escondendo-se de dia
quando o barulho não a deixa ouvir-se. À noitinha, se estiverdes pelas Arribas,
sentai-vos numa pedra, deixai que o sol acabe de se pôr e os pássaros se
recolham, àquela hora em que se ouve o silêncio passar por entre os zimbros e
agarrar-se às fragas como um bafo. Esperai um pouco, até que se levante uma
brisa e escutai as vozes que começam a sair, formando histórias que o
lusco-fusco deixa adivinhar nos vultos dos socalcos e das oliveiras. Depois,
lançai-vos pelo carreiro acima sentindo os passos dos contos que buscam quem os
conte.
Cerca de quatrocentos ou quinhentos anos andou a língua nesta vida. Já se
tinha habituado ao português e ia esquecendo o castelhano. Então, começou a
pedir palavras emprestadas ao português, cada vez em maior número. Sempre que o
português aparecia com uma palavra nova, até lhe achava graça e levava-a para
casa como se fosse sua. Mas foi-se mantendo, sem nunca deixar de ser quem era.
Com o tempo, passou a conviver com o português dentro de cada pessoa, apenas se
atrevendo a sair quando esta a autorizava.
Entretanto, dizem-nos que as pessoas da cidade de Miranda deixaram de
falar mirandês. Expulsaram a língua para as aldeias à volta. E o mirandês
sentiu-se tão bem entre essa gente que nunca mais voltou à cidade. Em cada
aldeia, a língua cresceu com as suas diferenças, a sua maneira de ser, embora
sem deixar de ser quem era. Apagar essas diferenças ou fazer de conta que não
existem, seria ficar mais pobre e, quem sabe, morrer de vez. Pertencer ao
mirandês, como uma língua única, é algo de que nos devemos orgulhar. Mas não
devemos orgulhar-nos menos das diferenças que se foram sedimentando sabe-se lá
desde quando, e que já os nossos avós herdaram dos avós deles. Isso, não há
qualquer lei que o possa alterar. Mas a língua é só uma, o mirandês. Todos, em
conjunto, ainda nos poderemos fazer ouvir. Divididos, nada valemos e não
faltará quem esteja à espera dessa divisão para fazer troça de nós. Juntos
podemos defendê-la melhor, ensiná-la, escrevê-la e continuar a falá-la.
Que destino queremos para o mirandês?
É muito difícil responder: a língua está tão doente que ainda não
descobriu remédio que a salve. Primeiro, fez uma fronteira com o português e
manteve-se apenas numa parte da Terra de Miranda; depois, tornou-se amiga do
português e foi-lhe pedindo palavras emprestadas como se fossem suas. Quando,
entretanto, a expulsaram da Igreja, foi como receber uma facada que nunca
deixou de sangrar e, com o tempo, evoluiu para cancro. Quem conhece a cura para
o cancro? Apesar disso, não há que desistir nunca ou dar-se por vencido O pior
é que os mirandeses nem se aperceberam. Está doente, velha e cansada, com
poucas forças para resistir. E apenas existe uma maneira de os velhos viverem:
através dos filhos. O mirandês deve deixar filhos que tenham orgulho na sua
língua e não reneguem os pais.
Nos últimos trinta anos, a Terra de Miranda encheu-se de doutores, de
jornais, de rádios, de televisões. Mas não há doutores em mirandês, jornais que
o escrevam, rádios que o falem, televisões onde se veja. O mirandês é pobre e
não terá dinheiro para televisões, possivelmente nem para rádios. Mas pode ter
doutores. E pode ter um jornalzinho, por pequeno que seja, que vá pelo mundo
fora onde haja um mirandês com a língua enovelada dentro de si desde há muitos
anos e com vontade de a deitar para fora. Não será assim que a Terra de Miranda
pode mostrar que é grande? Qual é o mirandês que não daria dez tostões para
apoiar um jornalzinho que viva uma vez por mês, ou apenas de três em três
meses?
Nos últimos trinta anos, muitas coisas que falavam mirandês foram
desaparecendo, mortas ou escondidas onde ninguém as veja: arados, relhas,
charruas, carros de mulas e carros de bois, albardas, molhelhas, jugos, caniças
para a palha, forquilhas de madeira e de ferro, trilhos, foices, picotas,
foices de cabo comprido, cestos vindimadeiros, cestos estrumeiros, cilhas,
cargas e arrochos, cabeçadas, malhos, molhos de colmo, forjas, fornos, eiras e
tantas, tantas coisas. Mas a vida não parou, mudando o mundo em cada dia. Vamos
deixar que a língua morra agarrada a essas coisas que já morreram, em vez de a
fazer viver agarrada às pessoas que a falam, mudando e ficando com elas, indo
com elas para todo o lado?
Nos últimos trinta anos, a língua foi sendo expulsa das casas: os contos
já não sobem pelas chaminés, já não come à mesa, já não dorme na cama. Na rua,
quando por ela passa, já há quem a olhe de lado. A continuar assim, sem eira
nem beira, há-de morrer de frio, numa noite de inverno, debaixo de algum
telheiro onde, por caridade, lhe permitiram dormir. Não haverá na Terra de
Miranda uma casa para a língua, que seja apenas sua e onde entre quem a queira
falar, quem a queira aprender ou, pelo menos, dar-lhe uma ajuda? Uma casa que,
sem ser escola, sirva para ensinar quem a queira aprender? E onde se guardem
livros que falem dela e por ela? Não será assim que a Terra de Miranda mostra
que é grande?
Vou a ficar por aqui. Mas ainda vos quero fazer um desafio, a vós
mirandeses que, como eu, aprendestes a falar o mirandês enquanto mamáveis, e
também a vós que não o chegastes a aprender bem, mas ainda estais a tempo, pois
apenas através dela podereis lembrar os vossos avós, e a todos vós que,
mirandeses ou não, apenas agora a descobris e também a quereis meter dentro. Olhai
para dentro de vós, bem no fundo de vós, e respondei, um por um, olhos nos
olhos: quereis ser os coveiros da língua que herdastes? Quereis deixar que
morra a única coisa que é vossa e, como nenhuma outra, vos distingue? Se
quereis, então é tempo de comprar a urna e preparar o funeral. Se não quereis,
então mexei-vos porque o tempo é escasso para ainda fazer alguma coisa.
Quem esteve a ler, já vai cansado e com razão. Por mim, podia continuar.
Com o coração na ponta dos dedos, toda a noite fui escrevendo, sem sono, como
quem fica a vigiar para não morrer. Lisboa inteira, à minha volta, deixa-me a
falar sozinho. A Terra de Miranda, a quinhentos quilómetros daqui, cheira-me a
vindima e a sementeira.
Lisboa, numa longa noite de Setembro de 1999
Fracisco Niebro
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(manifesto an modo de hino)
Quando ũa lhéngua nun sirbe para rezar. Quando se dízen todos ls pecados
a Dius, sin miedo, i se ten bergonha de rezar an mirandés. Quando ye assi, nun
hai lhéngua que s’aguante. Parece que Dius, quando andubo pul mundo a daprender
las lhénguas, chegou eiqui i passou an zlhado. You acho que lo zbiórun. Ye
tiempo de Dius nun tener bergonha de falar an mirandés.
Quando ũa lhéngua nun se scribe, dízen que la stória inda nun ampeçou,
porque nun hai modo de cuntar essa stória. Solo puode ser cuntada pula lhéngua
de ls outros. Ũa lhéngua sin stória nun puode durar siempre.
L pior ye quando la lhéngua deixa de serbir para pensar. Ó, quando
drumimos, nun aparece a falar ne ls suonhos, porque la lhéngua de ls suonhos ye
la que stá andrento de nós. Fala-se cumo se respira. Se l lheite que se mama
nun ben misturado cula lhéngua, esta nun puode quedar metida andentro i ser tan
amportante pa la bida cumo l stómado, l coraçon, la cabeça, l fígado. Solo assi
nun se puode bibir sin eilha. Solo assi aparece ne ls suonhos, inda que nun
quérgamos. Ũa lhéngua que nun fala ne ls suonhos, nun bai longe.
Hai palabras que, quando las dezimos, mos fáien quedar cun piel de pita,
mas solo nós damos por esso; hai sonidos que mos ambuolben cumo ũa óndia de
calor, mas solo nós sentimos l cúscaro que a las bezes traiemos andrento a
derretir; hai antrejeitos de la lhéngua andrento la boca, falando, que fázen
cuçquinhas que naide mais sinte; hai ditos que nun ténen outra maneira de se
dezir i naide antende quando nun somos capazes de ls traduzir; hai cousas que,
quando ousamos outra lhéngua pa las dezir, sónan cumo stranhas i, na fin,
quedamos cul’eideia de que nun fumos capazes de las dezir. Hai palabras,
sonidos, ditos, cousas, que drumírun tanto tiempo cun nós, que ganhórun cama
par’aquel lhado i quando nun mos deitamos para esse lhado ye cumo drumir anriba
ũa piedra.
An Lisboua hai un jardin zoológico cun animales doutras tierras ó que yá
zaparecírun de l termo. Quien fala mirandés, puode ser cumo esses animales
ralos: to la giente gusta de ls oubir i acha-le grácia a la sue lhéngua. Stá a
benir un tiempo an que quien fala mirandés puode star cumo nun jardin
zoológico, bicho ralo a quien las pessonas áchan grácia i por quien ténen
curjidade. Pássan-se cousas que mos dében de dar que pensar: hai grupos,
associaçones i até partidos pa defender todo l que steia a zaparecer.
Defénden-se ls páixaros, ls burros, ciertas arbles. L goberno até dá denheiro
para esso. Por mi, até acho que stá bien. Porque será que cul mirandés, ũa
lhéngua que stá a zaparcer, nun acuntece nada desso?
Ls mirandeses solo púoden agabar-se dũa cousa: la sue lhéngua. Correi l
mundo i nun achareis nada armano. Nun ye melhor que las outras, mas ye la
nuossa, única ne l mundo. Porque las lhénguas son cumo las pessonas, cada
pessona: por bien aparecidas que séian, son todas defrentes. Quando ũa se
muorre, ye algo que se perde para siempre.
Hai mil anhos, dízen, yá se falaba mirandés. Poderie ser algo defrente,
mas era mirandés. Ũa lhéngua q’ateimou an quedar nũa pequeinha ilha, arrodiada
pul mar que ye l pertués i l castelhano, debe-mos dar que pensar. Se se morrir,
cun eilha morreran-se outra beç to las pessonas que nestes mais de mil anhos la
falórun. Quedamos assi c’un porblema mui grande: nien an to la Tierra de Miranda
hai campo para anterrar tanta giente. Por esso, cumo almas penadas, quedaremos
cundanados a star siempre a sbarrar culs scaletos de la lhéngua que se morriu:
ũa palabra eiqui, ũa letra acolhá, un dito mais alantre. I quando, pul
eimbierno, l fumo de ls chupones se fur spargindo cul aire por essas ourrietas,
cabeços i canhadas, ls scaletos de la lhéngua han-de benir a calcer-se na boca
dalgun bielho sentado al lhume culs nietos ne ls zinolhos. Mas, de tan
angaranhidas, las letras, las palabras, nun seran capazes de s’ajuntar pa
formar cuontas ó cantigas.
Cuncordareis cumigo que naide gusta de bibir nun semitério ó caminar por
un campo de batailha adonde solo quedórun cadabres, cheiro a pólbara i, passado
un tiempo, a chicha pocha. Un campo assi, solo puode ser buono pa ls cuorbos
que, arrodiando l cielo, beneran abaixando culs bicos prontos a fartá-se. I
solo quien stá ciego nun bei ls cuorbos que yá ándan por ende. You nun tengo
nada contra ls cuorbos, mas essa nun puode ser la mission de ls mirandeses.
Passou a andar por ende a arar, a segar, a scabar, a bendimar, a regar, a
tomilhos, a azeitunas, a lheinha, a caminos, culas mulas, culas bacas. Siempre
de cabeça alhebantada, mesmo cun friu i cun fame, cansada, cun suonho. Fui
lhéngua de rábia, mas tamien d’arrolhar; lhéngua deste einfierno de mete pie
saca pie i lhéngua de sonhar cun bidas melhores; lhéngua de renher i lhéngua de
torna geira ó torna l burro; lhéngua de chorar i lhéngua de fiestas i beilar;
lhéngua de se morrer i lhéngua de nacer. Anquanto andaba por ende, paraba nas
fraugas a calcé-se i salie dalhá feita reilhas, sachos, guinchas, machadas,
calagouças i barandas; chubie-se al campanairo i tanto repicaba a casamentos i
batizados cumo chamaba a missa, boltiando, ó a rebate quando ls miedos éran tan
fuortes que oubrigában a ajuntar to la giente; era lhéngua de bumbeiros an
carreiras de baldos sin fin; als demingos a la tarde andaba pul sagrado,
pimpona, ó corrie las rues a dar bibas a la mocidade; quando tenie sede,
abaixaba-se a buer de boca ne ls rigueiros ó agarraba-se a la ciguonha, al para
baixo i al parriba, sin parar; quando tenie fame, iba pulas Arribas i Prainada
i, cula rábia feita sacho, fierro ó çada, ponie las peinhas a dar ubas,
azeitunas ó centeno.
A las bezes quedaba an casa a la spera, que nun la deixában ir pa
l’Argentina, l Brasil, Sebilha, Lisboua, la Fráncia i outros mundos de Dius.
Tamien nunca fui a la guerra, mas quanta beç se morriu por alhá.
Era ũa lhéngua de bida. Bida defícele, mas bida. Era ũa lhéngua de raça
armana a la giente que la fala: giente argulhosa, que nunca dejiste nien
s’aquemoda cul que ten ó ye; giente que chora cun rábia i, na zgrácia ó
necidade, ye capaç de s’ounir cumo se fura un solo; giente q’a la fuorça de
passar la bida a chubir lhadeiras daprendiu a mirar parriba; giente q’a cada
sachada, a cada suco, a cada baldo d’auga, bai sumbrando i regando suonhos de
feturo i ye capaç de todo - só eilha i Dius sáben quanto! -, pa tener la proua
de parir filhos que téngan ũa bida melhor; giente que ateimou an la falar i
siempre se dou bien cun eilha.
Ls anhos fúrun passando, giraçones ũas atrás las outras. I la lhéngua fui
quedando siempre, cumo ũa ardança. Las cuontas que fazie, naide las screbiu.
Hoije, quien las puode cuntar? Adonde haberie mimória tan grande q’alhá
coubíran todas? Por esso, quedórun por ende: ũas anterradas i yá se çfazírun an
tierra, outras bolórun cul fumo de ls chupones nas nuites d’eimbirno,
abrigando-se ambaixo ls lhapos, metendo-se ne ls machinales de ls paredones,
scundendo-se de die quando ls rugidos nun la déixan oubir. A la tardica,
s’andubirdes pulas Arribas, sentai-bos nũa piedra, deixai que l sol se çponga i
ls páixaros s’arrecuolhan, naqueilha hora an que s’oube l silenço a passar por
antre ls niebros i a agarrá-se a las peinhas cumo un bafo. Asperai un cachico,
até que s’alhebante un airico i scuitai: las bozes ampéçan a salir, formando
stórias que l luçque-fusque deixa adebinar ne ls búltios de ls paredones i de
las oulibeiras. Apuis, botai-bos carreiron arriba sentindo ls passos de las
cuontas q’ándan a ber s’áchan quien las cunte.
Por ende quatrecientos ó quenhientos anhos andubo la lhéngua nesta bida.
Yá se habie afeito al pertués i iba-se squecendo de l castelhano. Anton,
ampeçou-le a pedir palabras amprestadas al pertués, cada beç mais. Siempre que
l pertués aparecie cun ũa palabra nuoba, até le achaba grácia i lhebaba-la para
casa cumo se fura sue. Mas fui-se aguantando i nunca deixou de ser quien era.
Cul tiempo, passou a cumbibir cul pertués andrento cada pessona solo
s’astrebindo a salir quando esta la deixaba.
Nesse antretiempo, dízen que ls de Miranda deixórun de falar mirandés.
Scamugírun la lhéngua pa ls pobicos al redror. I l mirandés sentiu-se tan bien
antre essa giente que nunca mais tornou a la cidade. An cada pobico, la lhéngua
creciu culas sues çfréncias, l sou son, mas sien deixar de ser quien era.
Apagar essas çfréncias ó fazer de cunta que nun eisísten, serie quedar mais
probe i, se calha, morré-se de beç. Pertencer al mirandés, cumo ũa lhéngua
sola, ye ũa cousa de que mos debemos argulhar. Mas nun mos debemos argulhar
menos de las çfréncias que se fúrun acamando sabe-se alhá zde quando, i que yá
ls nuossos abós ardórun de ls abós deilhes. Esso, nun hai nanhue lei que lo
puoda altarar. Mas la lhéngua ye ũa sola, l mirandés. Todos juntos inda mos
podemos fazer oubir. Debedidos, nun balemos nada i nun faltará por ende quien
steia a la spera desso para fazer caçuada de nós. Juntos podemos defendé-la
melhor, ansiná-la, screbí-la i cuntinar a falá-la.
Que çtino queremos pa l mirandés?
Ye mui defícele respunder: la lhéngua está tan mala q’inda nun se çcubriu
remédio que la salbe. Purmeiro, fizo ũa raia cul pertués i deixou-se quedar
solo nua parte de la Tierra de Miranda; apuis, tornou-se amiga de l pertués i
fui-le pedindo palabras amprestadas cumo se fúran deilha. Quando, nesse
antretiempo, la scamugírun de l’Eigreija, fui cumo recebir ũa facada que nunca
deixou de botar sangre i, cul tiempo, bolbiu-se an cáncaro. Quien conhece la
cura pa l cáncaro? Assi i todo, nun hai que zistir nunca ou dar se por bencido.
L pior ye que ls mirandeses nien se dórun de cuonta. Stá mala, bielha i
cansada, cun poucas fuorças pa rejistir. I solo hai ũa maneira de ls bielhos
bibíren: por bias de ls filhos. L mirandés ten que deixar filhos que téngan
proua neilha i nun arrenéguen ls pais.
Ne ls redadeiros trinta anhos, la Tierra de Miranda anchiu-se de
doutores, de jornales, de rádios, de telbisones. Mas nun hai doutores an
mirandés, jornales que lo scríban, rádios que lo fálen, telbisones adonde se
beia. L mirandés ye probe i nun tenerá denheiro pa telbisones, se calha nien
para rádios. Mas puode tener doutores. I puode tener un jornalico, bien
pequeinho que seia, que báia por esse mundo adonde haba un mirandés cula
lhéngua amarfanhada andrento por muitos anhos i cun gana de la botar acá para
fuora. Nun será assi que la Tierra de Miranda puode amostrar que ye grande?
Qual ye l mirandés que nun darie dues crouas para ajudas a un jornalico que
biba ũa beç por més, ó cada trés meses que seia?
Ne ls redadeiros trinta anhos, muita cousa que falában mirandés fúrun
zaparcendo, muortas ó scundidas adonde naide las beia: arados, reilhas,
charruas, carros de mulas i de bacas, albardas, melenas, jugos, setas de la
palha, biendas i biendos, trilhos, fouces, ciguonhas, calagouças, asnales,
cestos sterqueiros, cilhas, cargas i arrochos, cabeçadas, maços, colmeiros,
fraugas, fornos, eiras i tanta, tanta cousa. Mas la bida nun parou,
demudando-se l mundo a cada die. Bamos a deixar que la lhéngua se muorra
agarrada a essas cousas que se morrírun, an beç de la fazer bibir agarrada a
las pessonas que la fálan, demudando i quedando cun eilhas, indo cun eilhas pa
to ls lhados?
Ne ls redadeiros trinta anhos, la lhéngua fui sendo scamugida de las
casas: las cuntas yá nun chúben puls chupones, yá nun come a la mesa, yá nun
drume na cama. Na rue, quando adrega a passar, yá hai quien la mire de lhado. A
cuntinar assi, sin eira nien beira, há-de-se morrer cul friu, nũa nuite
d’eimbirno, ambaixo algun cabanhal adonde, por smola, la deixórun drumir. Nun
haberá na Tierra de Miranda ũa casa pa la lhéngua, que seia solo sue i adonde
entre quien la querga falar, quien la querga daprender ó, al menos, botá-le ũa
mano? Ũa casa que, sin ser scuola, sirba para ansinar quien quejir daprender? I
adonde se guárden lhibros que fálen deilha i por eilha? Nun será assi que la
Tierra de Miranda amostra que ye grande?
Bou-me a quedar porqui. Mas inda bos quiero fazer un zafio, a bós
mirandeses que, cumo you, daprendistes a falar l mirandés anquanto mamábades, i
tamien a bós que nun lo cheguestes a daprender bien, mas inda stais a tiempo
puis solo por eilha podeis lhembrar buossos abós, i a todos bós que, séiades
mirandeses ó nó, solo agora lo çcubris i tamien lo quereis meter andrento.
Mirai par’andrento de bós, bien ne l fondo, i respundei, un por un, uolhos ne
ls uolhos: quereis ser ls anterradores de la lhéngua q’ardestes? Quereis deixar
que se muorra l’única cousa que ye solo buossa i, cumo nanhue outra, bos
çtingue? Se quereis, anton ye tiempo de cumprar l queixon i purparar l
antierro. Se nun quereis, anton spabilai-bos porque l tiempo ye scasso par’inda
fazer algo.
Quien stubo a ler, yá bai farto i cun rezon. Por mi, podie cuntinar. Cul
coraçon na punta de ls dedos, to la nuite fui screbindo, sin suonho, cumo quien
queda a belar para nun se morrer. Lisboua anteira, alredror, deixa-me a falar
solico. La Tierra de Miranda, a quenhientos kilómetros deiqui, cheira-me a
bendímia i a sementeira.
Lisboua, ua lharga nuite de setembre de 1999.
Fracisco Niebro
2 comentários:
Tocante, este apelo tão sentido do Francisco Niebro. Eu, se fosse mirandês e tivesse mamado de leite a língua mirandesa, não a renegaria, estou certo. Pois se gosto tanto dos meus regionalismos, e de os usar nos meus escritos...E não são nada, ao pe do mirandês.A cidade de Miranda tem que aprender a pensar, a sonhar e a rezar em mirandês. Deve um "mea culpa" e uma mudança de atitude a esse marco miliário da sua cultura. Deixo aqui um abraço solidário ao Francisco Niebro, e a todos os que com ele se empenham nesta cruzada em defesa do farol principal da Cultura Mirandesa, a sua Lhéngua.
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