Poesia da vida
Por Norberto Francisco Machado da Veiga[1]
O poeta é
aquele que escolheu ter um ser através da sua linguagem. Isso pressupõe que a
linguagem possa dizer o ser. Por essência a poesia nunca duvidou disso, ou
duvidou
afirmando-se
através dessa dúvida.
Eduardo Lourenço, Pessoa
Revisitado, Gradiva,
2.ª Ed.ª, 2003, p. 23
Começo por convocar, em minha defesa,
as palavras de Eduardo Lourenço: «O crítico é o leitor que se crê autorizado a
decidir por imaginar ter descoberto os critérios, os pontos de referência, o
sistema capazes de introduzir uma ordem no caos da criação»[2]. E, ainda,
as palavras de Gastão Cruz: «O discurso
crítico perseguirá o poema sem nunca alcançar o que ele é, porventura,
inalcançável, ou melhor, o que nele não é explicável, nem parafraseável, nem
redutível a uma segunda linguagem»[3] É,
pois, adotando estas duas atitudes que escrevo o presente texto.
I – Temas e motivos da poética de Francisco Lopes
Na Epístola aos Pisões do poeta latino Horácio que, anos
mais tarde, Quintiliano apelidaria de «Ars Poetica» ou «De Arte Poetica Liber»
encontra-se o seguinte preceito: «No arranjo das palavras deverás também ser
subtil e cauteloso e magnificamente dirás se,
por engenhosa combinação, transformares em novidades as palavras mais correntes.»[4].
Creio poder asseverar, sem cometer um crime de lesa-majestade, que Francisco
Lopes, ao longo da sua atividade literária, seguiu este preceito à letra. O
mesmo se encontra patente nos seus vários livros de poesia e, de forma mais
acutilante, nos dois derradeiros, onde, sem qualquer dissídio, a sua ars,
atinge uma tal depuração que corrobora a citação do grande poeta latino. Ora
esta capacidade de traduzir o mundo através das palavras foi uma decisão
prematura que o poeta abraçou desde tenra idade, quando despontou para o mundo
da escrita e da poesia. Com o tempo apreendeu um outro ensinamento de Horário
que se traduz na comparação do ofício cantante, isto é, da arte poética com a
arte do marceneiro no apurado e demorado trabalho da lima que, em termos
poéticos, nada mais significa do que muita emenda e aperfeiçoamento dos versos
que enformam o poema. Esta qualidade não deixa de ser percetível ao leitor que
se entregue à tarefa de ler os restantes três livros de poesia, a seguir
mencionados, que o autor já publicou e encontra-se, de forma cristalizada, em Percursos.
Outra qualidade da escrita poética de Francisco Lopes é a
vis, isto é, a força que imprime às suas palavras, ou seja, o objetivo
com que escreve e a aspiração de transformar o mundo através da sua palavra
poética. Pois, como assevera Vítor Aguiar e Silva, na obra Teoria da
Literatura: «O escritor, ao emitir o seu texto não só transfigura o real
nomeado ou aludido, mas reinventa e instaura o próprio real, o real absoluto,
com a urdidura encantatória do seu discurso»[5]. Esta atitude do poeta de Percursos
assenta nas virtualidades cognitivas que o mito de Orfeu oferece à poesia e,
por extensão metafórica, a toda a comunicação literária. Porém, segundo creio,
o mito que mais enforma a produção poética de Francisco Lopes é o mito de
Prometeu que, como é do conhecimento geral, simboliza a capacidade de a
comunicação literária, e em especial do texto poético, contribuir para
transformar o real, o real antropológico e o real histórico-social. Recordo que
esta conceção prometaica da comunicação, que se desenvolveu na teoria e na
práxis desde o romantismo, associada à expansão do livro e dos leitores, foi
progressivamente adquirindo terreno com as literaturas da vanguarda e, em
Portugal, atingiu o seu auge com o movimento da poesia e da escrita
neorrealista. Joaquim Magalhães corrobora esta ideia ao afirmar que: «O que
somos hoje em escrita tudo começa nos finais do século XVIII. (...) É, também,
com o romantismo que se dá atenção à realidade e à idealidade do mundo
pessoal.»[6]. O
labor poético de Francisco Lopes cedo se enraizou nesse prometaico arrojo
tentando, contra tudo e contra todos, sem truísmos e ambages, reinventar e instaurar
o real, de que falava Aguiar e Silva. Assim, esta poesia convoca o leitor à
praxis, à semelhança do que acontece no teatro épico de Bertold Brecht, com o
objetivo último de acordar os seus concidadãos da longa e inconsciente letargia
em que persistem. Desenvolvendo, um pouco mais, a analogia do labor poético do
autor de Percursos com o teatro épico, direi que ambos pretendem
despertar a consciência do público/leitor e «obrigá-lo» a uma reflexão contínua
e persistente sobre o presente, que, de forma inequívoca, se ambiciona alterar.
Outra característica que atravessa a
obra poética do autor é a da utilização de uma só estrofe no poema,
independentemente do número de versos que a composição poética tenha. Uma vez
que o mais curto «quando a morte nos une», apresenta, apenas, seis versos e o
mais extenso «E partiu a
correr», é composto por oitenta e três versos. Advirto, desde já, que o
objetivo do poeta é, sobretudo, comunicar a «mensagem» através do poema sem
preocupações de qualquer índole com a estrutura externa do mesmo e demais
artifícios retóricos e estilísticos. Não se pense, no entanto, que não há
mestria e trabalho apurado, que resulta em beleza e em poemas curtos e
incisivos que cristalizam a mensagem poética. Esta propensão, do poema com
apenas uma estrofe, vai progredindo ao longo das obras do autor e atinge a
plenitude nesta obra, onde sessenta, dos setenta e quatro poemas que compõem o
livro, são formados por uma só estrofe. Quando opta pela divisão estrófica,
recorre, sobretudo, à quadra. Este facto, segundo penso, tem ressonâncias na
tradição popular e na poesia do cancioneiro tradicional, que o autor conhece
bem. Outra razão pela qual recorre à quadra, julgo, prende-se com a balada
coimbrã, que o poeta se habituou a ouvir e a cantar. Ao contrário do que
acontecia no tópico anterior, a tendência para usar a quadra manifesta-se mais
nas primeiras obras do poeta, o que está associado, segundo creio, ao cariz
mais interventivo e denotativo da poesia de Francisco Lopes, pois em Percursos
apenas três poemas se apresentam em quadra: «Coisas da vida», «Tenho o mar aqui
inteiro» que são compostos por duas quadras e o poema «Na outra margem» que é
composto por quatro quadras divididas por uma sextilha. Este facto patenteia o
grau de depuração que a poesia de Francisco Lopes alcançou nesta obra.
A musicalidade constitui outro motivo de interesse, na
poesia do poeta, que se poderá relacionar com a faceta interventiva do autor,
presente em vários poemas. Nomeio, a título de exemplo, o poema «O que mais falta
acontecer» do livro No Tempo das Palavras (p. 66), que nos recorda as
letras e os ritmos das canções e nos transporta para o património universal e
imaterial do mítico José Afonso. O ritmo interno do poema, que atravessa toda a
poesia de Francisco Lopes, atenua a falta de outros recursos, tais como a
métrica e a rima, que não sobram, como já referi acima.
Outro motivo que ressalta ao olhar de
um leitor mais atento da poesia do autor é a missão do poeta. Embora o poeta
nunca negue a sua missão nos dois primeiros livros, é no poema «A minha sina é esta», do livro No
Tempo das Palavras (p. 88), que afirma, sem evasões, que o seu fado se cumpre no escrever, para alertar o outro. Recordo, uma
vez mais, a faceta prometaica da poesia do autor, que está umbilicalmente
ligada à missão/compromisso que o poeta adota para si mesmo, em especial nas
três primeiras obras, porque em Percursos a voz do poeta, devido à
evolução e ao depuramento que a sua poesia atingiu, emerge quase impercetível.
Por último, apresento o tema mais transversal da poética
do autor que se cumpre na escrita de poemas sobre Abril/liberdade. De novo,
lembro os cantores de intervenção da segunda metade do século passado e todos
os poetas de Abril, onde incluo Francisco Lopes, que ontem como hoje continuam
a sua missão de alertar o próximo para os perigos que os esperam. Muitos são os
poemas que abordam esta temática, dou apenas dois exemplos para não ser
fastidioso, o poema «Abril de novo e maio florido» do livro No Tempo das
Palavras (p. 90) e os poemas que ostentam no título a palavra abril, da
terceira parte de Percursos.
II – Itinerário poético do autor.
Passarei, ato contínuo, a referir as anteriores obras de
poesia, publicadas pelo poeta Francisco José Lopes, com o propósito de mostrar
a evolução da poesia do autor, que se vai sentindo de obra para obra, não só a
nível das temáticas escalpelizadas nas mesmas, mas também, e sobretudo, da sua
arte poética, que, como já afirmei, é percetível, de forma mais nítida, no
presente livro.
Em 1999, publicou o seu primeiro
livro de poemas, a que deu o título No Tempo das Musas. Como veremos, o
«redondo vocábulo» Tempo manter-se-á nos próximos dois livros de poesia,
publicados pelo autor, encerrando a trilogia dos poemas, que na minha análise,
ficaram, pelas suas vivências e pelos combates travados pelo autor, mais
datados, embora a sua mensagem continue a ser atual e o incentivo e a vis
que deles irrompe possam encorajar o leitor hodierno.
A obra, quanto à sua estrutura interna, encontra-se
dividida em cinco capítulos que comportam quarenta e dois poemas. Trata-se, sem
ambages, de uma obra da «infância» do poeta, onde já se encontram, embora de
forma latente, alguns dos temas que mais tarde enformarão a poética do autor.
Na leitura da maioria dos poemas de No Tempo das Musas pode observar-se,
por vezes de forma velada, a angústia do jovem poeta perante a imensidão da
«folha branca». Mas apesar das contrariedades o vate não desiste, e ainda bem,
de tentar dar-nos a sua visão do mundo, através da palavra poética. Quero
salientar que o poeta tem essa consciência e por isso afirma no poema «O que
fica por dizer»: «Eu gostava de ser poeta / daqueles que escrevem / o nome com
letra maiúscula / e fazem das palavras uma sinfonia / que vence os limites do
tempo. // Eu gostava de conseguir /
escrever para além de mim / e do meu sentimento / e chegar mais longe, / à
multidão anónima / que se delicia / com os verdadeiros artistas da poesia.» (p.
45). Que direi deste compromisso, que lembra o dos cantores e poetas de
intervenção dos anos sessenta e setenta do século anterior, antes da Revolução
dos Cravos. Apenas, e só, um truísmo que os próximos livros do poeta corroboram
de forma inequívoca e que se traduz na constatação de que nas duas últimas
obras, o poeta cumpre, na totalidade, a ambição manifestada nos versos citados.
Corria o ano de 2001, quando o segundo livro de poemas,
subordinado ao título Memórias do Tempo, viu a luz. Esta obra composta
por cinquenta e quatro poemas, apresenta-se-nos dividida em quatro partes: o
«Livro do Sonho», o «Livro do Desejo», o «Livro das Memórias» e o «Livro das
Palavras». Começo por referir que os títulos desta tetralogia são, só por si,
significativos e partem do abstrato para o concreto, ou, dito de outra forma,
do geral para o particular, isto é, para a unidade mínima que tem o poder de
nomear e reinventar o mundo ou os referentes enunciados nas outras partes, «a
palavra», respondendo ao desejo prometaico da escrita do poeta, referido acima.
Constato, assim, que, nesta obra, o autor já atribuía um papel de relevo à
palavra, que provinha da obra anterior, e às suas infinitas possibilidades de reinventar
o tempo presente e projetá-lo no futuro. Embora o autor afirme,
antiteticamente, no poema «A palavra já não basta», que: «A palavra já não
basta / e destoa / magoa / os ouvintes / que
nunca ouviram // A letra também não / porque ironizo / com o sorriso / de
quantos / já nem leem». (2001, 73,
sublinhado meu). Uma pequena nota para realçar a pouca recetividade do
leitor/ouvinte às palavras do aedo, por um lado, e constatar que, apesar de
tudo, o poeta não desanima, embora, por vezes, o canto seja amargo, como
assegura no poema com o mesmo nome, da obra No Tempo das Musas (p. 50),
e continua, abnegadamente, a espicaçar os leitores, por outro. Outro argumento
a favor desta tese, se necessário fosse, pode o leitor encontrá-lo no poema
«Mas eu não vou» da mesma obra. (p. 74) Este poema é, segundo creio, o
compromisso do poeta consigo mesmo e com o seu povo, aqui no sentido
denotativo, ou seja, Alfândega da Fé, e, por extensão, o Nordeste Transmontano,
do qual o poeta, como já afirmei, jamais desistirá. Por fim, tenho de nomear,
pela beleza, perfeição formal e pela depuração da linguagem poética, o único
soneto que o autor publicou que apresenta o título «Utopias» e que serve de
epígrafe à presente obra. Tenho-me interrogado, não raras vezes, por que razão Francisco
Lopes não cultiva a mais nobre composição poética, do valioso espólio da Língua
Portuguesa, e a minha inquietação cresce ao intuir que não é por falta de
mestria, mas por opção estética, como fica patenteado no poema «Utopias».
A tríade das anteriores publicações poéticas de Francisco
Lopes fica completa com a obra No Tempo das Palavras, que apareceu nos
escaparates em 2003. A obra é composta por trinta e cinco poemas agrupados em
três partes. A primeira parte apresenta o título denotativo «Pela Nossa Terra»,
que contém cinco poemas sobre a Vila e as gentes de Alfândega da Fé. A segunda,
que ostenta o nome que acaba por dar o título ao livro No Tempo das Palavras,
inclui catorze poemas. Por último, a terceira, e mais extensa, dezasseis
poemas, responde pelo nome de «Filosofias e Heresias». Permitam-me dois
pequenos apontamentos. O primeiro para notar que é a primeira vez que o autor
intitula a obra com o mesmo título de uma das suas partes; o segundo cumpre-se
na constatação do facto de que esta obra, no que respeita à arquitetura
interna, e a próxima Percursos assentam numa divisão triádica, com todas
as implicações simbólicas e intertextuais que, a partir desse facto, se possam
estabelecer.
A primeira impressão do leitor, que conheça toda a produção
poética do autor de Percursos, é a de que, na minha análise, o
despojamento e a depuração do ofício cantante do poeta se acentuam de forma
significativa, para desabrochar, por completo, nesta obra. Outro aspeto
relevante refere-se ao facto de a tríade inicial do autor apresentar no título
de cada obra a palavra «Tempo» o que, de certa forma, lhe confere uma ligação e
uma continuação das marcas que o «Tempo», ou dito de outra forma, as
cicatrizes, as angústias e os penares que as vivências, desse «Tempo», pessoais
e coletivas foram marcando a pele do poeta e, consecutivamente, a carne do
poema. O tempo e as suas circunstâncias estão, de forma inequívoca,
plasmados nos poemas do autor, mas como o próprio refere, no prefácio da obra O
Tempo das Palavras: «A poesia é muito mais do que isso, o que a torna numa
forma de escrita rica de sentimentos, de imagens e de utopias e um fator de
comunicação acerca do entendimento que temos do mundo». Estas palavras, para
além de constituírem uma bela definição de poesia, servem, igualmente, para
corroborar a faceta prometaica da poesia do autor já referida e, também,
presente nestes versos do poeta, que nos trazem à memória as trovas e os poemas
de O Canto e as Armas de Manuel Alegre: «As palavras / lançam / sementes
de esperança / na brisa que há de chegar.», do poema «Sementes de Esperança»
(1991, 42).
III – Percursos a mais recente ilha do arquipélago
poético de Francisco Lopes.
Começo por realçar que o lapso temporal que separa esta
obra das restantes é significativo, visto que decorreram dez anos desde a
publicação do último título de poesia de Francisco Lopes o qual, como já
referi, apresentava uma organização e uma problematização sobre a linguagem e
as suas possibilidades que deixava antever os frutos que com Percursos acabaram
por amadurecer. Noto que o autor publicou as outras obras com um intervalo de
dois anos, No Tempo das Musas em 1999, Memória do Tempo em 2001 e
No Tempo das Palavras em 2003. Nestas obras, quiçá pela urgência da
mensagem poética, o autor não conseguiu diluir a fronteira entre o real social
e a palavra poética que nomeia esse real, como lembra Aguiar e Silva (Ibidem).
Por outro lado, nesta obra o poeta observou o preceito horaciano da limae
labor et mora (Idem, 97), visto que, como já asseverei, os poemas de
Percursos patenteiam a reflexão contínua do autor em especial sobre a
sua ars que atingiu um grau de depuração assinalável nesta obra.
A arquitetura interna de Percursos apresenta-nos
uma tríade em crescendo, como os subtítulos das partes deixam antever. O livro
é constituído por setenta e quatro poemas, um número que possibilita múltiplas
inferências. A obra abre com o soneto «Utopias», pertencente ao livro Memórias
do Tempo, que lhe serve de epígrafe. A primeira parte de Percursos é
composta por vinte e quatro poemas e subordinada ao sugestivo título
«Utopia-Surrealismo-Onirismo». Esta parte inicia-se com a composição poética
que responde pelo título de «A saudade não se tem». Parece-me haver aqui uma
certa contradição, uma vez que o poeta afirma categoricamente que «A
saudade não se tem / sente-se.» Mas esse paradoxo é mera ilusão, pois o que o
escritor nos quer dizer é que os poemas de Percursos são apenas, e só, a
sua forma de sentir a Vida e o Tempo. E, desfazendo qualquer equívoco, o poeta,
no poema seguinte que tem por título «Apenas eu», afirma: «Hoje sou apenas eu /
e a minha dúvida / contra o mundo todo / que não percebo.» As meditações do poeta
prosseguem, culminando nas reflexões sobre a vida nos três últimos poemas da
primeira parte. Esta encerra com um pequeno, mas penetrante poema, sobre a
morte, fim e princípio de tudo, que aqui transcrevo: «Quando a morte nos
une / é porque a vida vale a pena. / A quem parte / cumpre deixar a vida / a
quem fica / cumpre honrar a morte».
O segundo
andamento da obra apresenta a «Poesia da vida» expressa no subtítulo «Percursos
e outros sonhos», que dá título ao livro, embora na sua forma abreviada, é
composto por vinte e cinco poemas, focados, segundo creio, na atualidade.
Agora, a voz que nos chega deixa transparecer a desilusão, a angústia e o
sofrimento que o ser humano, em geral, e o homem português, em particular, têm
suportado nestes primeiros anos do século XXI. «Somos o pão da guerra», poema
que abre esta parte, comprova esta afirmação. É possível, também, descortinar,
nesta parte, um movimento interno que parte do geral para o particular, porque
se num primeiro momento encontramos reflexões sobre o ser humano em geral, de
seguida, a pena do poeta cinge-se à sua realidade geográfica e grafa
lancinantes alertas aos seus conterrâneos, no sentido de os alertar para que
não baixem, ainda mais, os braços. Poemas como «Quem conhece a minha terra»,
«Ao entardecer», «Anda alguém na minha rua» e «Deambulando nos cubos de
granito», onde se descortinam ressonâncias de Cesário Verde, são exemplos do
que afirmei atrás. Esta parte termina de forma enigmática materializada nos
poemas «Chegou a hora de partir» e «Síntese», onde o poeta reafirma que estará
atento e «que o regresso nunca tem tempo nem destino!». No entanto, o vate
jamais abdica da sua função interventiva e insubmissa, como lemos, no
derradeiro poema desta parte intitulado «Síntese»: «Apenas o sopro / no som do
silêncio / leve e doloroso / a matar-me com a espada / da desobediência.» Estes
versos recuperam a faceta prometaica da poesia de Francisco Lopes, já explanada
acima, e confirmam, de certa forma, que os poetas são seres que obedecem a
outros manes.
O último quadro do tríptico, que apresenta o sugestivo
mas denotativo título «Poemas em Abril», é, também, composto por vinte e cinco
poemas. O movimento circular desta parte torna-se evidente, ao confrontar o
primeiro e os últimos textos. A temática aflorada, nestes poemas, é o movimento
de Abril e as esperanças a ele associadas, que passadas quatro décadas, ainda
não se concretizaram. O poema de abertura, com o título «Portugal a preto e
branco», avisa, desde logo, o leitor mais desprevenido, de que assunto se vai
tratar, ao elencar um rol de promessas não cumpridas e de realidades sociais
que nada dignificam o País e os seus habitantes atuais. É significativo, neste
contexto, o adjetivo «triste» que o poeta usa para qualificar o País,
atualmente, como lemos nos últimos versos do poema: «para quem nunca deu valor
/ ao facto de apesar de tudo / ainda sermos todos juntos este triste PAÍS».
Esta temática é explanada e particularizada
nos poemas «Abril é um mito», «Não pintem Abril de morte» e «Depois de Abril
morrer». Mas perante as dificuldades e os constrangimentos, o poeta não se dá
por vencido e continua a convocar os seus concidadãos para a liça,
prometendo-lhes uma outra revolução, isto é, uma nova «utopia». É com
este repto que termina o poema «Depois de Abril morrer», que passo a citar:
«Sustém a memória / na tua mão / e guarda o vigor / no sangue a correr / por
entre a raiva e a desilusão. / Depois de Abril morrer / haverá sempre outra
revolução». A reflexão sobre Portugal atinge o clímax em poemas como «Penso o
país em que nasci», «Este é o país onde vivo», «Não sinto mas pressinto» e «Não
vou por aí», este último com inequívoco eco regiano. Transcrevo, em jeito de
síntese, o poema «Penso o País em que nasci».
Penso o País em
que nasci
e já não o tenho.
Penso nas
pessoas que conheci
e já não
conheço.
E penso no medo
em que vivi
... e volto a
viver
e na raiva que
senti
e volta a
crescer.
Após a «tuba canora e belicosa», o
livro termina recuperando o tom mais intimista, mas não pessimista, das outras
partes, interpelando o leitor à reflexão, em especial, no poema «Infinitos»,
onde o poeta pede ao leitor que procure novos horizontes e novas índias por
achar, não obstante, no passado e no presente forças invisíveis tenham
dificultado essa tarefa. Porém, essa prece é seguida de um apelo à nossa
realidade/limitação humana, presente no poema «Vidas suspensas», onde se lê:
«Somos apenas / uma parte do que desejamos ser. / A outra parte não é nossa. / É da vida / ou de quem a queira merecer.» A obra termina com o poema
«Hoje não escrevo» que, em minha opinião, pode ser entendido como um
autorretrato poético do autor. Primeiro, porque elege os verbos «escrever» e
«dizer» como forma privilegiada da comunicação poética. Segundo, porque o poeta
comunga da filosofia de vida do velho Santiago da obra O Velho e o
Mar de Ernest Hemingway que afirma: «Um
homem pode ser destruído, mas não derrotado»[7]. Assim, por mais abatido que esteja, nunca abdica do
seu ofício/missão que passa por inquietar o «Povo» através da sua palavra
poética. Esta postura é corroborada pela leitura dos versos: «Hoje não escrevo
/ mas prometo que amanhã / (...) tecerei o manto da dignidade. / E voltarei a escrever», do mesmo poema.
Termino com uma constatação que foi adquirindo
visibilidade à medida que lia e relia os poemas de Percursos. A
conclusão a que cheguei foi a de que a cada parte da obra se pode associar um
Tempo. Assim, a primeira representa o passado; a segunda corresponde ao
presente e, por fim, a terceira remete para o futuro. Outra associação que a
leitura global de Percursos permite é a de considerar que a primeira
parte pode representar o nascimento, infância e adolescência do ser humano; a
segunda expõe a juventude e a vida adulta e laboral do homem e a terceira exibe
a morte que já comporta em si o gérmen de uma nova vida. Estamos, pois, perante
uma obra circular que abarca as três idades do ciclo da vida humana.
Concluindo, parece-me que não pode existir poesia sem reflexão,
latente ou patente, sobre a vida, a sua essência e a sua técnica. E «Poesia da
vida» é o que encontramos em Percursos de Francisco Lopes.
Bragança, 14 de abril de 2014
[1]Doutorado em
Literatura Portuguesa, poesia contemporânea, pela Universidade de Salamanca,
homologado pela Universidade do Minho.
[2] LOURENÇO,
Eduardo, O Canto do Signo Existência e Literatura, Editorial Presença,
Lisboa, 1994, p. 21.
[3] CRUZ, Gastão, A
Vida da Poesia Textos Críticos Reunidos (1964-2008), Assírio & Alvim,
Lisboa, 2008, p. 19.
[4] FERNANDES, R. M. Rosado, Horácio. Arte
Poética, Introdução, Tradução e Comentário, Editorial Inquérito, Lisboa,
1990, 2.ª Ed.ª, p. 59.
[5]AGUIAR E SILVA,
Vítor Manuel, Teoria da Literatura, Livraria Almedina, Coimbra, 1988,
8.ª Ed.ª, p. 334.
[6] MAGALHÃES,
Joaquim Manuel, Rima Pobre Poesia Portuguesa de Agora, Editorial
Presença, Lisboa, 1999, p. 20.
[7]HEMINGWAY,
Ernest, O Velho e o Mar, Tradução de Jorge de Sena, Livros do Brasil,
Lisboa, S. d., p. 109.
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