Apresentação da obra Percursos do poeta Francisco José Lopes
Por
Norberto Francisco Machado da Veiga
I – Breve resenha biobibliográfica
do autor
Francisco
José Lopes nasceu em 1955, em Alfândega da Fé, onde reside. Licenciou-se em
História, pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto e é professor do
quadro no Agrupamento de Escolas de Alfândega da Fé, onde desempenha,
atualmente, as funções de Diretor. A sua atividade profissional tem-se
desenvolvido essencialmente no campo da educação, do ensino, da cultura e da
comunicação autárquica.
Tem
vários textos publicados na imprensa regional (Quanza-Sul, Angola, O Elvense,
de Elvas, Maré Viva, de Espinho, Fonte Nova, de Portalegre, Terra Quente, de Mirandela e A Voz do Nordeste, de Bragança). Foi, também,
coordenador do Boletim Municipal da
Câmara Municipal de Alfândega da Fé desde o seu primeiro número, saído em 1990,
até praticamente à sua extinção.
Prefaciou várias obras de diversos autores,
dos quais menciono: Fernando Pereira, Modesto Navarro, Virgílio Tavares, Regina
Gouveia, Hélder Rodrigues e Aida Borges e apresentou, igualmente, muitos desses
trabalhos. Além disso, é o autor do texto «Alfândega da Fé», inserido no Dicionário dos mais ilustres Transmontanos e
Alto Durienses. O autor está representado em Entre o Sono e o Sonho, Antologia
da Poesia Contemporânea, Vol. V, publicada pela Chiado Editora, em março de
2014.
Da sua publicação literária saliento:
"O Arquivo Histórico Municipal de Alfândega
da Fé", edição da CMAF, em 1994; No
tempo das musas, poesia, edição de autor, em 1999 (2.ª edição, da CMAF,
2001); Memórias do tempo, poesia, edição
de autor, em 2001; No tempo das palavras,
poesia, edição da CMAF, em 2003, e Alfândega
da Fé – Registos de um Percurso Histórico, vol. I, edição da CMAF, em 2006.
Termino
este sucinto percurso de vida com uma afirmação suscetível de causar alguma
celeuma, mas aceite pela maioria dos Alfandeguenses, Francisco José Lopes foi e
continua a ser o principal dinamizador cultural de Alfândega da Fé, desde a
década de oitenta do século passado até ao presente.
II –
Uma possível porta de entrada para o “lago
escuro” da obra Percursos do poeta
Francisco José Lopes.
“Quantos ledores, tantas as sentenças” Sá de
Miranda
Escreveu
Alexandre O´Neill: “A poesia é a vida? Pois
claro! / (…) Embora custe caro, muito caro, / e a morte se meta de permeio.”
Camões
na última estância da décima Canção, mais conhecida pelo incipit “Vinde cá, meu tão certo secretário” escreve: “Nem eu delicadezas vou cantando / co gosto
do louvor, mas explicando / puras verdades já por mim passadas. / Oxalá foram
fábulas sonhadas!”
A
poética de Francisco Lopes, já nas três obras publicadas entre 1999 e 2003, mas
sobretudo na última, que agora apresentamos, pode sintetizar-se nestas duas epígrafes,
uma vez que a sua poesia é enformada pela dureza da vida e, por isso, ao poeta
não resta outra alternativa a não ser explicar puras verdades que o leitor, seguramente, reconhecerá nos poemas de
Percursos.
Henri
Morier, no Dicionário de Poética e de Retórica,
elenca diversos tipos de poesia: poesia abstrata, poesia pura, poesia pura
comunicável e, por fim, poesia pura que procede da alma.
Detenho-me
nos dois últimos.
A poesia pura é comunicável.
Estranharão, porventura, a minha ousadia em qualificar os poemas de Percursos como poesia pura, mas
estranhem, seu truísmos e ambages, porque depois de estranhar entranhar-se-ão, por
certo, uma vez que dificilmente ficarão indiferentes a alguns poemas de Percursos. Leio, a título de exemplo, o
poema “Quando a morte nos une”, que
concentra a mensagem poética, apenas, numa sextilha, presente na página 52.
Quando a morte nos une
é porque a vida vale a pena.
A quem parte
cumpre deixar a vida
a quem fica
cumpre
honrar a morte.
Seguindo
na esteira do crítico helvético, quero contextualizar a sua afirmação “a poesia
pura procede da alma”. Quem lê os poemas de Percursos
não identifica neles uma poesia da alma. Reconhece, sim, uma poesia da
“Vontade”, no sentido saramaguiano do termo, porque o poeta, à semelhança da
personagem mítica e simbólica, Blimunda, que o nobel português imortalizou, é o
ser que consegue ver para além dos limites do racional. Por essa circunstância,
apresenta-nos uma realidade incoerente e absurda, num primeiro momento, com o singular
objetivo de nos pôr a cogitar, como asseguro no prefácio da obra, e de nos
convocar à liça e à práxis para que, em conjunto, lutemos por um mundo mais
justo e consentâneo com a condição e a dignidade humanas. O poema “Apenas eu”, da página 26, corrobora esta
temática.
Hoje sou apenas eu
e a minha dúvida
contra o mundo todo
que não percebo.
Hoje sou apenas a mágoa
que me consome
num grito sem eco nem espaço
sou apenas a desilusão
do pensamento
a tentar perceber finalmente
se vale a pena
aquilo que faço
se tudo isto não é uma ilusão
de ótica ou do real
e cada passo uma aproximação
de
outro abismo afinal!
Outro
motivo de interesse da poesia de Francisco Lopes, que, em meu juízo, valoriza e
engrandece os textos de Percursos é a
noção de contaminatio, como é
apresentada por Séneca, na octogésima quarta carta a Lucílio. O filósofo
recorre à metáfora da abelha, que para fazer o mel tem de retirar o pólen de
várias plantas. Do mesmo modo, o poeta deve beber e imitar os outros escritores.
Assim, procede Francisco Lopes que lê e apreende os textos dos outros poetas
para reescrever e reatualizar as suas mensagens, que continuam atuais. Assim
sendo, o vate cumpre a faceta prometaica da poesia, como também sublinho na
introdução da obra, com o propósito de transformar o mundo. Neste sentido, não
é de estranhar o diálogo incessante da poesia de Francisco Lopes com os poetas
que o precederam. Nomeio a título de exemplo: Cesário Verde presente nos últimos
poemas da segunda parte: “Ao entardecer” (P. 79), “Anda alguém na minha rua”
(P. 80) e “Deambulando nos cubos de granito” (P. 81); António Nobre, no longo
poema narrativo que abre a terceira parte, intitulado “Portugal a preto e branco”
(P. 89), onde são por demais evidentes as ressonâncias dos poemas: “Carta a
Manuel” e “Lusitânia no Bairro Latino”, do autor de Só; José Régio, na composição onde a intertextualidade aparece, de
forma denotativa, no próprio título do poema “Não, não vou por aí” (P. 97); A
voz torguiana, também, retumba em Percursos,
em especial na faceta inconformada que Francisco Lopes partilha com o autor de
“Orfeu Rebelde”, presente no poema “Grito de alerta” (P. 71). Termino, não
querendo ser exaustivo, com a leitura do poema “Sentir o fim”, presente na página 39, onde são detetáveis
reminiscências de Eugénio de Andrade, Carlos de Oliveira e Manuel Alegre, pois
todos eles problematizam sobre a própria matéria da poesia, ou seja, as
palavras.
As palavras
tomaram de assalto o pensamento,
queimaram as trancas da solidão
e lançaram o sonho ao firmamento.
As palavras
são assim, exigentes,
reconstroem a vida em pedaços
mas não sabem o que é sentir o fim.
Na
carta centésima oitava, Sénica, recordando o mestre Átalo, relembra os seus
ensinamentos: “O docente e o discente devem-se unir num propósito comum: o
primeiro ser útil ao discípulo, o segundo, tirar benefício do convívio com o
mestre. De facto, quem convive diariamente com um filósofo ou um poeta obtém
sempre algum benefício”.
Que
mais-valia é esta?
Que
pode acrescentar a leitura da poesia nos dias que correm?
Deixo-vos
com estas interpelações, na expectativa de que possais encontrar nos poemas de Percursos, não uma resposta, mas, antes
pelo contrário, mais dúvidas. Porque, como é do senso comum, só conhecendo as
nossas limitações é que poderemos ajudar a transformar o mundo. O mesmo
defendia Sócrates no seu aforismo “Gnoti seauton / Conhece-te a ti mesmo” que
se encontrava gravado no pórtico do templo de Apolo, em Delfos, para que
pudesse ser contemplado e praticado por todo o ser humano.
Nem
outra incumbência, na minha ótica, pode ser cometida ao poeta e, por extensão
metafórica, à poesia, a não ser provocar a reflexão do homem e levá-lo à
autognose, de que falava Sócrates. Assim, conhecedor dos seus limites, e,
sobretudo, das suas potencialidades, o ser humano pode aspirar a transformar o
mundo. Ora, se a poesia de Francisco Lopes, outro préstimo não tivesse, este
seria, por si só, mais do que suficiente para despertar o nosso interesse pela
sua leitura.
Deste
modo, nas páginas de Percursos, o
leitor descobrirá, sem dúvida, motivo de reflexão sobre várias temáticas, que
se encontram escalpelizadas na introdução da obra. Encontrará, também, revolta,
angústia, solidão e sofrimento. Todavia, o ledor deve ser persistente e
continuar a leitura e surpreendentemente deparar-se-á com a alegria, a
camaradagem, a solidariedade e a identificação, na senda de Cesário Verde, com os
humildes deste mundo. Sintetizando, em Percursos,
o lente encontrará apenas e só, a poesia da Vida, ou, dito de outro modo, a
vida transmutada em poesia.
Isto
só é possível porque Francisco Lopes consegue, nesta obra, através do
distanciamento do sentimento e da personalidade, escapar ao esmagamento da
identidade, que se iniciou com o romantismo. Deste modo, os poemas de Francisco
Lopes ao serem sobre si, leia-se o autor, são-no, também, de forma inequívoca,
sobre o outro, ou seja, o homem hodierno, onde o leitor se revê. Esta poesia
que dá atenção à realidade, questionado permanentemente o leitor, contribui, de
forma inequívoca, para a idealidade do mundo pessoal do leitor. Pois, como diz
Marguerite Yourcenar, na obra “Memórias de Adriano”: “Um homem que lê, ou que
pensa, ou que calcula, pertence à espécie e não ao sexo; nos seus melhores
momentos escapa mesmo ao humano.” Vejamos o que o poeta nos
diz no texto “É urgente sermos nós”. (P. 105)
É urgente dizer a verdade
chamar o nome às coisas
pelo nome que as coisas têm
voltar de novo à palavra
contra medos e silêncios.
É urgente ser veloz
nos caminhos por percorrer
erguer o hino e a bandeira
o pau ou o estadulho
o sombreiro e o cajado
o grito e a moleta.
É
urgente sermos nós.
Sobre este assunto, Eduardo Lourenço,
no livro Poesia e Metafísica, diz-nos
que: “Os Lusíadas não nos remetem
senão para o seu autor”. Da mesma forma, os poemas de Francisco Lopes exigem,
para uma cabal descodificação, o conhecimento do percurso de vida do autor que
os assina. Resumindo, o que o crítico quis sublinhar é que, em termos poéticos,
se torna impossível dissociar a Vida da Escrita. Em síntese, a poesia não é
mais do que o produto final da transformação alquímica das sensações, emoções e
vivências do poeta em palavras.
Termino
com a expectativa de que este meu texto, sobre os poemas de Percursos, não falhe o seu objetivo, que
é, segundo Gastão Cruz: “o de entrar no
«lago escuro», não para o iluminar, mas para lhe conhecer a escuridão”.
Bragança,
Centro Cultural Municipal Adriano Moreira, 11 de junho de 2014
Academia de
Letras de Trás-os-Montes
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