03 junho 2014

A FILANDORRA,por António Tiza


Era o fim de um chuvoso domingo de Outubro. A rapaziada fazia a sua ronda pelas adegas. Não que fosse muito habitual, mas, havendo assuntos a tratar, aproveitavam a ocasião. Bebiam do vinho novo, meio turvo e ainda um meio adocicado; o velho, esse já havia muito que se enxugara nas pipas. Emborcavam todos do mesmo copo, do pipo ou da bota, consoante as posses de cada anfitrião. E roíam umas castanhas, coisa que não faltava em Varge, terra fria, de corpulentos castanheiros, como gigantes. Assim enganavam o estômago e sempre podiam dar mais umas goladas que, nesse tempo, a rapaziada era numerosa e nenhuma adega podia ficar sem a devida visita.
Por via de regra, os mordomos dos rapazes eram escolhidos entre os mais experientes. Não foi o caso nesse ano. Tendo sido “eleitos” no Santo Estêvão do ano anterior, como sempre se procedia, Joaquim da Frairenga e Manuel João eram dois novatos; Dera-se o caso que os “velhos”, combinados entre si, quiseram pregar-lhes a partida ou, por assim dizer, tomar-lhes o pulso. Como mandam as regras, no fim do almoço, deram duas voltas por trás da mesa, um por cada lado, deixando cair, à vez, os seus enfeitados chapéus de mordomos nas cabeças de todos. Contudo, não chegaram a fazer duas passagens. Queriam fazer a surpresa. Inesperadamente (havia sempre uns mais velhos que já contavam com o ovo no cu da galinha), os chapéus permaneceram pousados na cabeça do Joaquim e do Manuel João. Só passados alguns momentos é que o pessoal se deu conta do que havia acontecido: tinham sido eles os “eleitos”. Não obstante, houve aplausos entusiásticos e a algazarra foi geral. Tinham para o ano mordomos verdadeiramente “novos”. Eles saberiam dar conta do recado.
Joaquim era um rapaz sossegado, um “paz d’alma” que se dava bem com todos e estava sempre pronto a dar uma mão. Tinha feito a quarta classe, mas dali, como a grande maioria, dali não tinha passado. Queda para os estudos, isso tinha ele, mas as leiras da família e os cinco irmãos mais novos que havia para criar não davam para o pôr a estudar na cidade. Cedo, com os seus onze anos, já andava agarrado à rabiça do arado, atrás da junta de vacas. Agora, com dezasseis anos feitos, era mordomo da festa dos rapazes.
O seu companheiro de funções, o Manuel João, na casa dos dezoito, não era mau diabo, mas tinha lá o seu feitio; “mau génio”, dizia o povo. Na hora da eleição, tinha ficado todo emproado e não cabia em si de contente. Joaquim conhecia-o bem: na escola tinha havido umas disputas por dá-cá-aquela-palha, mas as coisas ficaram por ali porque o Joaquim não queria problemas com ninguém, muito menos com ele. Raramente se encontravam; evitavam-se, sem deixarem de se falar. Mas na hora da sua escolha para mordomos, ambos se tinham esquecido das rixas do passado. E abraçaram-se como grandes amigos.
Chegado o mês de outubro, a prova de fogo dos mordomos ia começar. Era agora. Sim, porque outras tarefas haviam sido realizadas já durante o verão, mas nada que se assemelhasse à lenha dos Santos; tinham feito umas quantas jeiras para lavradores carenciados de mão-de-obra, executadas pela “sociedade” dos rapazes, para angariação de fundos para a festa. Peditórios, nada; só para os santos, que uma festa pagã não gozava de estatuto que lhos permitisse fazer. Até mesmo a arrematação da lenha dos Santos se destinava, na quase totalidade, para o sufrágio das almas. 
Os Santos estavam mesmo à porta. No fim da ronda das adegas, Joaquim lança então o aviso, tomando a palavra com a autoridade de que estava revestido:
− Rapazes, no domingo que vem, é preciso arrancar as cepas. Este ano vamos à Pena Veladeira, bem sabeis, os tratores da floresta já lá andaram a romper o mato, está tudo revolcado e temos lá coisa que chegue e sobre para uma boa carrada. 
Ficou, pois, assim decidido. Aquele lugar ficava a mais de duas léguas da aldeia, a raiar o termo de Rio de Onor. Mas, enfim, trocavam um mais longo carrego do carro pelo trabalho facilitado da arranca das cepas, num terreno já completamente desbravado. Bem mais duro seria arrancá-las num qualquer matagal onde até os javardos entrariam com muito custo.
Na verdade, nos princípios dos anos sessenta, as máquinas dos Serviços Florestais já haviam ocupado quase todos os baldios cultivados, plantados agora com pinhos ou em vias disso. Uma boa parte da mocidade por lá trabalhava, sempre era uma boa ajuda para o sustento da casa. Só os mais abastados dispensavam essas magras jeiras; nem tempo para isso tinham, ocupados que andavam no amanho das terras. Era uma canseira todo o ano. Como tal, Vale de Espinheiros, as Rachas ou a Pena Veladeira, em qualquer um destes lugares tinham o trabalho bastante facilitado. Mas, é claro, a distância era consideravelmente maior do que o habitual. Ainda assim, optaram por esta solução, com algumas vozes discordantes e resmungonas, poucas.
Nesse domingo, bem cedo, lá foram. Apesar de algumas faltas, formara-se um grupo numeroso. Fizeram todo o caminho a pé. Ainda assim, chegaram à Pena Veladeira com tempo de sobra para arrancarem um castelo de cepas. A meio da manhã começou a cair uma chuva miudinha, de molha-tolos, e que aos poucos foi engrossando. Sem se importarem com o contratempo ou sem darem por isso, continuaram o trabalho: cravar o enxadão bem fundo na terra meio esfarelada pelas máquinas, sacar as cepas das urzes, em jeito de pé-de-cabra, e sacudi-las até ficarem limpas dos torrões. Mesmo com a terra amolecida, sempre era um trabalho árduo: cepas grandes, com raízes profundas, que haviam de dar para uma boa arrematação.
Chegou a hora da merenda. Havia ali uma fraga de enormes proporções e em forma de gruta. E lá se abrigaram todos. E mais que viessem. Lá se viam ainda os restos das paredes que um antigo pastor de cabras construíra, havia muitos anos. Pastor-ermitão, dela fizera a sua casa, por lá passara os seus dias. Cada vez que baixava ao povoado, diziam os antigos, era para fazer um filho.

A dada altura, começaram a ouvir vozes que se tornavam mais percetíveis à medida que se acercavam. Certamente, buscavam o mesmo abrigo.
− São os de Rei D’nor – adiantou Chico Tonho. Só poderia ser, naquele monte, domingo e àquela hora, alguém que andasse ao mesmo que eles. Quando os avistaram, Manuel João, tendo confirmado de quem se tratava, lança o convite: “Vinde p’ra aqui, cabemos cá todos”.
Couberam, sem dificuldade. Sacaram as merendas, pão, toucinho, uns nacos de presunto (só para os mais abastados) e vinho. Alheias e chouriças frescas, vinham mesmo a calhar, para assar em brasas de estevas. Mas quê, as matanças tardariam mais um mês. O isco que levaram já tinha ranço de um ano. E o que havia, partilhado foi por todos.
Conversavam animadamente; os de Varge sentiam-se emproados por receberem os vizinhos em sua “casa”. Sim, porque a dita fraga se situava dentro seu termo. Inesperadamente, um de Varge, o Rogério, lança uma provocação, virando-se para os de Rio de Onor, alto e bom som para que todos ouvissem:
− Qual é o maricas que este ano vai de Filandorra?
− Vê lá como é que falas! – responde o mordomo da festa dos Reis. Ato contínuo, um dos outros avança em direção a Rogério, com a navalha em riste. A confusão estava prestes a rebentar. Alberto Lameira, o outro mordomo, segura-o pelas costas para evitar o que já parecia inevitável:
− Vá, vá! Tem calma – ordenou, como que a dizer que era ele quem impunha ordem na sua rapaziada – não queremos cá confusões.
Calaram-se todos, olhando uns para os outros sem saber como reagir. E a coisa ficou assim meio suspensa, na expetativa de ver como aquilo ia acabar.
Rogério Cabeço era o único que conhecia bem a festa dos reis de Rio de Onor. Seu pai era guarda-fiscal, tinha sido colocado lá no posto e ele por lá tinha sido criado até ao fim da primária. Nessa altura, o pai fora promovido a cabo e chefiava agora o posto de Aveleda. E ele, querendo mostrar que sabia daquilo e sentindo as costas quentes pelo estatuto do pai, tinha feito aquela provocação irrefletida. Mesmo tendo saído de lá havia oito anos, lembrava-se bem da Filandorra, essa figura feminina representada por um dos rapazes, que acompanhava os mordomos pela aldeia no peditório.
− Desculpai, rapazes, não será por causa deste desbocado que vamos estragar a merenda – pediu Joaquim da Frairenga, levantando os braços em sinal de paz.
− Está. Mas deixa que te apanhe. Vais pagá-las – ameaçou o outro.
Era Manolito, nome que lhe vinha do pai que era de Arriba, o que naquele ano ia fazer de Filandorra. Fora, por isso, atingido em cheio na sua masculinidade e, sem querer, havia-se denunciado. Nestas condições, tal provocação poderia ter um desfecho desagradável. Mas, por agora, nada, tudo acalmou e logo voltaram ao trabalho das cepas, cada grupo para o seu terreno.
António Tiza


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