Hercília Agarez e Júlia Ribeiro no "artes e livros" |
Para quem a
não conhece, diremos que nasceu em Torre de Moncorvo, se licenciou em Filologia
Germânica em Coimbra, é mestre em Ciências da Educação e exerceu importantes cargos no âmbito do
ensino, tendo sido leitora na Universidade de Leipzig.
Para o que
aqui nos interessa, diga-se que foi autora de vários livros cujas datas de
publicação desconhecemos. É para falar da última obra que estamos aqui, embora
pouco tenhamos a acrescentar ao que constitui a sua matéria introdutória. Na
verdade, após um prefácio escrito por mão segura e conhecedora dos meandros da
cultura popular transmontana em que são realçados os aspectos mais relevantes
do livro aos níveis do conteúdo e da forma, temos dois testemunhos sobre o
mesmo e a introdução da responsabilidade da própria autora. Não temos,
portanto, muito a acrescentar, com a desvantagem (ou vantagem?) de
desconhecermos Júlia Ribeiro.
Lemos o seu
livro na totalidade, embora não profundamente por falta de disponibilidade.
Assim, passaremos à sua apreciação, resultante da nossa sensibilidade enquanto
leitores.
Parece ser
timbre dos transmontanos o seu apego às raízes. Nascidos em terras desfavorecidas
e vítimas de uma interioridade madrasta, tiveram, aqueles a quem estavam
reservados mais altos voos, de se deslocar para meios académicos. Outros, para
quem o amor soou mais alto, seguiram o seu destino familiar a arrastá-los para
longes terras. Seja como for, raramente renegaram o berço, tantas vezes
humilde, onde abriram os olhos para um mundo de pureza e de silêncio. E ei-los,
sempre que possível, em busca de sítios e gentes da sua infância, a segregarem
baba, como o cão de Pavlov, à simples ideia de irem saborear aquele fumeiro
inconfundível, a tenrura de uma boa posta, o sabor das couves num caldo bem
regado com azeite da região e migado com a broa que conseguiu escapar à
modernidade.
De olhos
cansados de ausências, agora enxutos, fazem percursos de reconhecimento,
interiorizam partidas irreversíveis, dão-se conta de todas as transformações
ditadas pelo progresso, lamentam o desaparecimento de quanto, gravado na
memória, faz parte do seu património afectivo, material e imaterial.
De ano para
ano encontram as aldeias mais desertas, mais transfigurada a paisagem, mais
urbanizados os habitantes. Vão-se apercebendo do encerramento dos Fornos do
Povo, da raridade das Vezeiras, do arremedo grotesco das Chegas de Bois, do fim
de tradições ancestrais de que se salvaram, por exemplo, os Caretos.
Repetimos:
os transmontanos são ciosos da sua identidade, da sua cultura, da sua
ruralidade sã e espontânea. Mas, como acontece um pouco por toda a parte,
parece haver um antagonismo entre o autêntico e o artificial, entre a
agricultura e a indústria, entre as histórias contadas à lareira ou ao luar e
as telenovelas.
Se o nosso
passado, antropológica, monumental e etnograficamente de extrema riqueza chegou
à era do novo-riquismo globalizado, onde o materialismo impera como rei
absoluto, tal fica a dever-se ao interesse por ele manifestado por estudiosos
portugueses e estrangeiros que foram capazes de captar a sua essência
identitária e sobre ela trabalhar como tem acontecido, por exemplo, com
arqueólogos e epigrafistas, com etnomusicólogos do gabarito de Michel
Giacometti, com teimosos defensores e incentivadores dos jogos populares, como
foi António Cabral, com apaixonados pelos registos orais do povo, cheios de
pitoresco e de riqueza de linguagem regional de que é justo referir o trabalho
de campo empreendido, entre outros, por Alexandre Perafita. Sem esquecer o
apaixonado e profícuo trabalho dedicado à divulgação de rituais profanos
ligados à máscara levado a cabo por Pinela Tiza. E, claro está, graças aos
inúmeros escritores que fazem gala em cultivar um tipo de literatura
erradamente qualificada de regionalista.
Feita esta
introdução, entremos no livro. O título e a capa são esclarecedores e
remetem-nos para um espaço rural e para um tempo longe onde se contavam
histórias ao ar livre, aproveitando a luz poética do luar de Agosto, assistente
mudo do que se passava lá em baixo. Quer isto dizer que a autora, cuja infância
foi passada numa aldeia do Concelho de Moncorvo, foi armazenando na sua memória
os enredos tantas vezes rocambolescos narrados por contadoras e contadores,
quase todos gente do povo, iletrada, transmissores em segunda ou terceira
geração daquilo a que Pires Cabral chama contas
nesse livro muito apreciado que se chama O Diabo Veio ao Enterro.
A autora dá
a voz a esses agentes transmissores de histórias que oscilam entre o picaresco,
o fantástico, o sobrenatural, o lendário e o trágico. Serve-se dos resquícios
da memória e aviva-as, muitas vezes aproveitando-as como ponto de partida para
a efabulação, donde a aliança do real com o imaginado. Nesta primeira parte do
livro há que realçar três tipos de registos: simples narrativas, a que
poderemos chamar, como Rogério Rodrigues, short
storys, condensadas em pouco mais de uma página, episódios e contos
propriamente ditos onde a acção assume um desenvolvimento onde cabem descrições
e um emaranhado de peripécias criador de ambiente de expectativa.
São
inúmeros, como ficou dito, os contadores, quase todos, assim como algumas
personagens, com nomes e alcunhas bem típicas das aldeias. Exemplificando:
Alfredo Bota-e-Meia, Tia Olinda Falinhas, Tia Noventa, Teresa Gata, Manelzão,
Tia Catalona, Tio António Calvo, Deolinda Rola. Para dar verosimilhança à
ruralidade dos narradores, é natural que a autora, a exemplo de grandes
contistas transmontano-durienses como Trindade Coelho, Bento da Cruz, Pires
Cabral, Torga, João de Araújo Correia e outros, recorra a regionalismos como
esboucenada, mandastros, casquinar, lessos, alanzoar, incoirachas,
fraca-chichas e muitos mais, e a expressões com sabor a provérbio facilmente
descodificados pelo contexto.
Além dos
aspectos apontados, importa realçar o valor documental destas narrativas pelo
que elas encerram de elementos históricos, sociais, económicos, antropológicos,
geográficos, políticos. São elas fixação perene de realidades devidamente
enquadradas num espaço real –o bairro da Corredoura – e num tempo em que a
maioria das casas aldeãs não tinham água canalizada, o que levava a entrarem em
acção cântaros a caminho da fonte, em que o meio de transporte mais usado era a
família dos equídeos, em que a roupa era lavada, também na fonte, com sabão e
cloreto. Tempos sem televisão nem centros culturais, falhas que não invalidavam
a distracção dos camponeses, fiéis assistentes de um espectáculo ao vivo a
funcionar, sempre, como estreia.
Nesta
primeira parte do livro à autora cabem apenas (e nem sempre) palavras
introdutórias quando se impõem informações importantes para a compreensão das
histórias. Logo passa a palavra a quem as sabe contar com toda a ingenuidade e
realismo, num colorido pitoresco, com pausas nos momentos próprios, como
profissionais que sabem, tecnicamente, como manter o clima de suspense, como
não deixar adormecer os adultos, já que a miunçalha, apesar da curiosidade,
acabava por adormecer no fresco do terreiro, em cima de mantas.
De registar
a vivacidade conferida ao desenrolar da acção. Garantem-na os actores
secundários, ou seja, aqueles que interrompem o contador para fazer
comentários, pedidos, reclamações e aclamações. A autora preocupou-se com
pormenores como o uso de expressões exclamativas bem ao gosto da religiosidade
popular como por exemplo “Santo nome de Deus! Livrai-nos de todo o mal!”, “Vai
para o quinto dos Infernos!”, “Deus nos livre dos maus pensamentos e das tentações
do demónio”, “Que Nosso Senhor nos acuda!”, “Santíssima Trindade!”, “Credo!
Abrenúncio”. E já que falamos neste traço da psicologia das gentes simples e
que nunca largaram as berças, acrescentemos a sua credulidade, a sua fé em
rezas, benzeduras e esconjuros, o medo do fim do mundo, o ódio aos judeus, a
confiança no efeito de remédios caseiros, as bruxarias, as visões, o gosto pelo
fantástico, a tendência para misturar o divino com o profano, o desempenho das
carpideiras, a defesa da justiça popular, etc.
De entre os
contos, e por razões tão diversas como a técnica narrativa e a matéria narrada,
saliento, no primeiro caso, “O Vagabundo dos Olhos Claros”. O estatuto da
narradora, a pessoa então mais respeitada na aldeia a seguir ao padre, confere
um ambiente mais formal à assistência e é garante de seriedade, de ausência de
brejeirice em que os narradores machos eram peritos. A narração, bem diferente,
em vários aspectos, das restantes, não tem interrupções e é evidente a sua
densidade, traduzida na quase total ausência de parágrafos a fazer lembrar José
Saramago. Os presentes mantinham a expectativa devido às capacidades
histriónicas da D. Luzia, a professora primária. Pensamos que os leitores,
desta vez graças à mestria da autora, também não abandonarão a leitura a meio.
Se, por uma
razão ou por outra, todos os textos encerram os seus atractivos de conteúdo e
nos ajudam a melhor compreender a realidade rural transmontana de meados do
século passado, a sua identidade, qual espécie em vias de extinção, escolhemos
os que despertaram em nós maior interesse e que são: “Mesmo depois de Morto”,
pelo insólito do desenlace, “As Gémeas”, pela crença em Nossa Senhora, “As Mãos
Postas”, pelo domínio do fantástico, “A Dentada” pelo espírito de vingança em questões
de honra feminina, “Ó Ri-Có-Có” pelo realismo descritivo, sem falsos pudores, e
pela violência exercida por um homem num casamento comprado, “O Vestido Lilás”,
pela mentalidade, pelo sofrimento infligido a uma miúda por uma crendice
maquiavélica.
Como nos
comediógrafos Aristófanes e Gil Vicente, como nas fábulas de Esopo e de La
Fontaine, também a função morigeradora está presente, implícita ou
explicitamente, nestas narrativas em geral baseadas em factos reais e a que a
autora dá forma escrita que enriquece com o aproveitamento ficcional. Significa
isto que o povo, divertido ou comovido, está, sem disso se dar conta, a ser
edificado.
Sobre esta
primeira parte do livro resta tecer um comentário: se a acção das histórias se
localiza num espaço real do nordeste transmontano, as personagens nelas
envolvidas viviam, pensavam e agiam como quaisquer outras na mesma época, mas
noutros locais do país, tinham hábitos idênticos, regiam-se pelos mesmos
princípios morais, seguiam a mesma religião, tinham vícios e virtudes
semelhantes. Era o povo no seu melhor e no seu pior, a gente genuína que
cultivava as leiras, que guardava o gado, que cozia o pão, que matava o porco.
Eram os cesteiros, os ferreiros, os latoeiros, os ferradores, os marceneiros,
os mordomos das festas, os homens que se excediam na pinga em dias de romaria,
que mimavam as conversadas, que não deixavam a defesa da honra por mãos
alheias.
Passando à
segunda parte da obra (lembre-se ser ela o resultado da junção de três obras
anteriormente publicadas), preparemo-nos para leituras outras. A autora assume
o papel de narradora o que altera, desde logo, o registo da escrita. Da ficção
passamos para a realidade, para o relato de histórias verídicas, também elas
antigas, remontando até ao último quartel do século XIX com a sua instabilidade
política entre progressistas e regeneradores e indo até á década de cinquenta
do século XX. Agora o recurso à imaginação e o esforço da memória dão lugar à
atitude de responsabilidade de quem se propõe registar factos ocorridos na zona
de Moncorvo e que carecem de consulta de fontes orais e escritas, trabalho
aturado exigido pelo rigor histórico.
Com a
narradora fazemos uma viagem ao passado com os seus costumes – “A prisão do Sr.
Abade” - , as representações teatrais de carácter religioso –,“ Vai em Paz” - ,
a educação das raparigas – ,“A Marquinhas dos Remédios” - , a confecção do
fumeiro –, “A Esmola” - , a Segunda Grande guerra e o mercado negro –,“O
Horácio Espalha” - , a emigração –, “O Teodorico Carteiro” - , a sabedoria
popular – “Os três Grãos de Cevada” - , a crença em milagres –, “Fablina” - , o
quotidiano de uma pensão urbana e outros relatos alheios à Corredoura – ,“A
Benção”, “Trocadilhos”, etc.
Pelo facto
de neles estar ausente a ficção, estes episódios revestem-se de interesse para
o leitor, não apenas como documentos de uma época, mas pela vivacidade que a
autora lhes empresta.
Sem grandes
preocupações estilísticas, nem obsessão de burilar as frases, antes numa
linguagem desenxovalhada e impressionista, num ritmo narrativo fluido, Júlia
Ribeiro dá provas da sua apetência pela escrita, da sua habilidade em transitar
bruscamente do discurso directo para o indirecto, de adaptar a cada personagem
a maneira de falar que ajuda a torná-la verosímil, do seu entusiasmo ao reviver
um passado que também lhe pertenceu e que teima em não deixar morrer para o bem
de quantos se orgulham de uma cultura ancestral que a modernidade teima em
tornar obsoleta.
A nomes mais
sonantes da literatura transmontano-duriense como Miguel Torga, Trindade
Coelho, João de Araújo Correia, Pires Cabral, Bento da Cruz, têm vindo a
juntar-se, no registo de uma transmontaneidade de antanho, escritores
teimosamente residentes na região e outros a trabalhar fora do país, como
Isabel Mateus. Júlia Ribeiro vive na cidade do Lis, mas a sua terra de origem
mantém na sua memória a nitidez de outrora e a evocação dos tempos nela
passados como criança e adolescente trar-lhe-á uma saudável saudade misturada com a satisfação de
um dever cumprido enquanto agente literário de preservação de usos, costumes e
tradições que a voragem do tempo irreversivelmente engoliu.
M.
Hercília Agarez
Vila
Real, 13 de Junho de 2014-06-07
Bragança,
14 de Junho de 2014
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