06 maio 2014

OLHAR A ÁGUA, MEDIR A ALMA: CONSIDERAÇÕES EM REDOR DA ESCRITA SOBRE A NATUREZA[1],por ISABEL ALVES

À memória de Zé Nascimento, que partiu inesperadamente e sem que
tivéssemos conversado acerca deste assunto.

Na tradição anglo-saxónica, a escrita sobre a natureza realiza-se a partir de uma reflexão que o autor faz sobre o homem e sobre a linguagem, traduzindo em palavras o mundo natural que o rodeia, conferindo-lhe uma ordem e um sentido. Nesse sentido, a escrita sobre a natureza é um espaço literário onde se cruzam apontamentos sobre história natural e enunciados de cariz subjectivo.
O que aqui designamos por escrita sobre a natureza é, no domínio da crítica literária, passível de se encontrar sob outras designações; assim, a representação das relações entre o homem e o mundo natural constituem o âmago de textos cuja denominação pode surgir também como ‘estudos sobre a paisagem’, ‘natureza na literatura’, ‘pastoralismo’, ‘regionalismo’, ‘ecologia humana’. Os estudos que aliam ecologia e literatura só na década de noventa recebem um estatuto de escola crítica, surgindo então um novo território de crítica literária: a ecocrítica. Este tipo de análise literária privilegia não apenas a atitude do autor para com a natureza, mas ilumina o padrão de inter-relações entre o homem e o mundo não humano, postulando a ideia de que viver melhor passa também pelo modo como se olha o mundo natural e nele se habita.
 Se na tradição inglesa as primeiras obras se reportam aos séculos XVII e XVIII[2], é no século dezanove, sob a influência da estética romântica, que o amadurecimento deste tipo de escrita acontece. William Wordsworth (1770-1850), o poeta inglês para quem os fenómenos naturais eram dignos de figurar nos seus versos, influencia definitivamente o Romantismo, um movimento cultural, filosófico e literário que enaltece o contacto do ser humano com a natureza. Acrescentando que a natureza pode dar forma, beleza e paz ao nosso espírito mais íntimo e elevar alto os nossos pensamentos, este poeta acredita também que os sentimentos dos homens são passíveis de serem tornados mais sãos e puros através de um contato mais directo e intenso com a natureza. Claramente, Wordsworth educou o olhar humano, ensinando-o a olhar intensa e profundamente o mundo natural. Para além do exposto, acrescente-se que o século dezanove foi riquíssimo no que ao desenvolvimento da história natural diz respeito. Veja-se, por exemplo, o dinamismo da biologia e da geologia decorrentes da exploração de Alexander von Humboldt à América do Sul (1799-1804) e da publicação de A Origem das Espécies (1851) de Charles Darwin.
Na América, a tradição da escrita sobre a natureza está associada à curiosidade e ao interesse de naturalistas que, viajando pelos vastos e desconhecidos terrritórios, produziam mapas e faziam inventários das muitas e novas espécies do Novo Mundo[3]. Assim, neste país, o embrião da escrita sobre a natureza encontra-se, por um lado, ligado ao desejo de narrar uma realidade completamente nova e, por outro, à procura de palavras e perspectivas que efectivamente traduzissem essa nova circunstância do homem no Novo Mundo. Consequentemente, a natureza e a forma – paradoxal – como tem sido lida e interpretada constitui um elemento essencial da matriz cultural e literária norte-americana. Embora o século dezanove tivesse tido nomes de incontestável importância neste domínio, e refiram-se apenas os de Ralph Waldo Emerson (1803-1882) e Henry David Thoreau (1817-1862), a definição de escrita sobre a natureza não deixa de causar estranheza,como se depreende das palavras de James Fenimore Cooper que, ao elogiar a obra Rural Hours, publicada em 1850 pela sua filha, Susan Fenimore Cooper, não deixa de confessar que o mundo não saberá o que fazer com um livro como aquele: estruturado segundo o ciclo das estações do ano, e que se desenrola em redor de um olhar pessoal e feminino acerca da vida rural de Cooperstown, Nova Iorque. Porém, nos dias de hoje, a obra de Susan Fenimore Cooper é vista como um exemplo de ética ambiental, pois tem como central a ideia de que os americanos se tornam mais virtuosos se mantiverem uma relação estreita com o ambiente natural que os rodeia, exortando-os a olharem com atenção o mundo para além da porta: “um prado é um delicado bordado de cores que deve ser examinado atentamente a fim de compreender todo o seu valor; e quanto mais de perto, melhor”[4].
A relação particularmente intensa entre a escrita sobre a natureza e a América deve-se ao facto de esta ser uma nação cuja mitologia proclama a perpetuação da ideia da América--como-natureza e, consequentemente, um espaço de contínua reinvenção e renascimento. Aquando da chegada dos europeus à América, e graças à forma de vida equilibrada das tribos nativas, estes poderam usufruir, à luz matinal daquele novo continente, de visões primevas, “frente a frente, pela derradeira vez na história, com algo comensurável com a sua capacidade de assombro” (Fitzgerald, 177). Procurando-se narrar o que nunca tinha sido colocado em palavras – a paisagem americana ‒, os autores de uma escrita sobre a natureza criam um espaço literário híbrido, procurando palavras e perspectivas que efetivamente traduzissem essa nova circunstância do homem europeu no Novo Mundo.

A diversidade e o movimento estão na base deste género literário, e são estas as características que o tornam um género congenial ao modo de ser americano. A fim de olhar atentamente o fenómeno da natureza e assim caminhar no sentido de um maior conhecimento do eu, os autores que se dedicam à escrita sobre a natureza privilegiam o peripatetismo: na base das considerações que fazem sobre a natureza estão as caminhadas em redor de paisagens, lugares que definem como sendo de movimento, e que estão na base de associações imaginativas e processos alquímicos de transformação. Esses passeios decorrem maioritariamente em locais que o autor conhece bem, o que significa que atentar no meio natural é também celebrar o lugar e reconhecer o seu efeito sobre a existência humana. É também uma aprendizagem da humildade. Neste sentido, podemos afirmar que a escrita sobre natureza intensifica a curiosidade humana sobre o particular, dando a conhecer o que de surpreendente nos reserva um olhar atento sobre o que de antemão consideramos apenas próximo e familiar. A escrita sobre a natureza é um género cujos textos se caracterizam por uma estrutura narrativa aberta, valorizando-se sobretudo a vitalidade, o movimento e a imaginação, aspectos fulcrais uma vez que estes se encontram em sintonia com o facto de nesses textos se cultivar a ideia da interdependência ‒ dos organismos vivos com a vida humana.
Pilgrim at Tinter Creek, obra que em 1974 deu a Annie Dillard o Pulitzer, gira em torno da metáfora da visão: percorrendo a natureza circundante, e prestando atenção aos fenómenos que a constituem, Dillard quer ver o que de outro modo lhe passaria despercebido: “Saí; vejo qualquer coisa, um qualquer acontecimento que de outro modo se teria escapado, perdido completamente. Ou qualquer coisa me vê, um enorme poder varre-me com a sua asa perfeita, ressoando como um sino” (Dillard, 5)[5]. A natureza apresenta-se como um território de descoberta pessoal e ver significa apreender melhor um eu interior. Dillard, à semelhança de Henry David Thoreau, deseja escrever um diário meteorológico da mente: interligar as histórias e visões que nascem da observação dos vales, cursos de água e montanhas de Blue Ridge, Virginia, com o território desconhecido da mente humana. O olhar de Dillard fortalece a perspectiva de que escrever sobre a natureza é, tal como o indica a água sempre em movimento do ribeiro – Tinter creek –, tentar apreender o que se mostra inapreensível; o mundo oferece-se em constante mutação. Contrariamente a uma montanha, representante do mistério antigo e passivo, o ribeiro representa o mistério da criação contínua, o seu curso de água plasmando a incerteza, o terror das formas fixas, a dissolução do presente, a complexidade da beleza, a força da fecundidade, a ilusão das formas livres, a natureza nem sempre perfeita da perfeição (Dillard, 3).
Antes de Dillard, Emerson e Thoreau já haviam chamado à atenção para o património natural americano, esse que haveria de se constituir em voz singular da América. No texto fundacional, “Nature” (1836), diz Emerson: “Por que motivo não haveremos nós de desfrutar, também, de uma relação directa com a Natureza?” (Emerson, 13-14). Henry David Thoreau, por seu lado, experimentou, de forma direta, a natureza americana. É em redor de Concord, Massachusetts, que observa minuciosamente a natureza – identifica árvores, flores e gramíneas, anota o regresso das aves na primavera, mede o nível das águas dos rios, os anéis das árvores e o tamanho das sementes. Vivendo embora no século dezanove, ele é um precursor do moderno discurso ambientalista, pois reivindica a necessidade de conservar a natureza como um domínio de vitalidade e de diversidade. Balizado por um saber científico, Thoreau, no entanto, não descura a imaginação e dedica o seu tempo a observar e estudar a paisagem à sua volta. Partindo do particular, deseja alcançar os ritmos e os padrões universais, tendo sempre à mão uma linguagem poética: confessa ter grande fé numa semente; perante uma semente, prepara-se para esperar maravilhas.
[...]

In: A Terra de Duas Línguas II – Antologia de Autores Transmontanos




[1] Esta é uma versão atualizada do texto apresentado no “Congresso de Homenagem ao Douro/Duero e seus rios: memória, cultura e porvir”, Zamora, Abril 2006.

[2] Finch e Elder assinalam as obras de John Ray, The Wisdom of God Manifested in the Works of Creation (1691) e de Gilbert White A Natural History of Selborne (1789) como sendo aquelas que inauguram uma tradição de teologia natural: a natureza é um território onde a presença divina se faz sentir. Esta mesma tradição encontrará solo fértil também do outro lado do Atlântico.

[3] Sempre que no texto referimos “América”, “americanos” ou “Novo Mundo”, temos em mente o território e o povo dos Estados Unidos da América.

[4] No original: “a meadow is a delicate embroidery in colors, which you must examine closely to understand all its merits; the nearer you are, the better” (Cooper, 1998: 76). Nossa tradução.

[5] "I walk out; I see something, some event that would otherwise have been utterly missed or lost; or something sees me, some enormous power brushes me with its clean wing, and I resound like a beaten bell". Nossa tradução.

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