À memória de Zé Nascimento, que partiu
inesperadamente e sem que
tivéssemos conversado acerca deste assunto.
Na tradição
anglo-saxónica, a escrita sobre a natureza realiza-se a partir de uma reflexão
que o autor faz sobre o homem e sobre a linguagem, traduzindo em palavras o
mundo natural que o rodeia, conferindo-lhe uma ordem e um sentido. Nesse
sentido, a escrita sobre a natureza é um espaço literário onde se cruzam
apontamentos sobre história natural e enunciados de cariz subjectivo.
O que aqui designamos
por escrita sobre a natureza é, no domínio da crítica literária, passível de se
encontrar sob outras designações; assim, a representação das relações entre o
homem e o mundo natural constituem o âmago de textos cuja denominação pode
surgir também como ‘estudos sobre a paisagem’, ‘natureza na literatura’,
‘pastoralismo’, ‘regionalismo’, ‘ecologia humana’. Os estudos que aliam
ecologia e literatura só na década de noventa recebem um estatuto de escola
crítica, surgindo então um novo território de crítica literária: a ecocrítica.
Este tipo de análise literária privilegia não apenas a atitude do autor para
com a natureza, mas ilumina o padrão de inter-relações entre o homem e o mundo
não humano, postulando a ideia de que viver melhor passa também pelo modo como
se olha o mundo natural e nele se habita.
Se na tradição inglesa as primeiras obras se
reportam aos séculos XVII e XVIII[2],
é no século dezanove, sob a influência da estética romântica, que o
amadurecimento deste tipo de escrita acontece. William Wordsworth (1770-1850),
o poeta inglês para quem os fenómenos naturais eram dignos de figurar nos seus
versos, influencia definitivamente o Romantismo, um movimento cultural,
filosófico e literário que enaltece o contacto do ser humano com a natureza.
Acrescentando que a natureza pode dar forma, beleza e paz ao nosso espírito
mais íntimo e elevar alto os nossos pensamentos, este poeta acredita também que
os sentimentos dos homens são passíveis de serem tornados mais sãos e puros
através de um contato mais directo e intenso com a natureza. Claramente,
Wordsworth educou o olhar humano, ensinando-o a olhar intensa e profundamente o
mundo natural. Para além do exposto, acrescente-se que o século dezanove foi
riquíssimo no que ao desenvolvimento da história natural diz respeito. Veja-se,
por exemplo, o dinamismo da biologia e da geologia decorrentes da exploração de
Alexander von Humboldt à América do Sul (1799-1804) e da publicação de A
Origem das Espécies (1851) de Charles Darwin.
Na
América, a tradição da escrita sobre a natureza está associada à curiosidade e
ao interesse de naturalistas que, viajando pelos vastos e desconhecidos
terrritórios, produziam mapas e faziam inventários das muitas e novas espécies
do Novo Mundo[3].
Assim, neste país, o embrião da escrita sobre a natureza encontra-se, por um
lado, ligado ao desejo de narrar uma realidade completamente nova e, por outro,
à procura de palavras e perspectivas que efectivamente traduzissem essa nova
circunstância do homem no Novo Mundo. Consequentemente, a natureza e a forma –
paradoxal – como tem sido lida e interpretada constitui um elemento essencial
da matriz cultural e literária norte-americana. Embora o século dezanove
tivesse tido nomes de incontestável importância neste domínio, e refiram-se
apenas os de Ralph Waldo Emerson (1803-1882) e Henry David Thoreau (1817-1862),
a definição de escrita sobre a natureza não deixa de causar estranheza,como se
depreende das palavras de James Fenimore Cooper que, ao elogiar a obra Rural
Hours, publicada em 1850 pela sua filha, Susan Fenimore Cooper, não deixa
de confessar que o mundo não saberá o que fazer com um livro como aquele:
estruturado segundo o ciclo das estações do ano, e que se desenrola em redor de
um olhar pessoal e feminino acerca da vida rural de Cooperstown, Nova Iorque.
Porém, nos dias de hoje, a obra de Susan Fenimore Cooper é vista como um
exemplo de ética ambiental, pois tem como central a ideia de que os americanos
se tornam mais virtuosos se mantiverem uma relação estreita com o ambiente
natural que os rodeia, exortando-os a olharem com atenção o mundo para além da
porta: “um prado é um delicado bordado de cores que deve ser examinado
atentamente a fim de compreender todo o seu valor; e quanto mais de perto,
melhor”[4].
A
relação particularmente intensa entre a escrita sobre a natureza e a América
deve-se ao facto de esta ser uma nação cuja mitologia proclama a perpetuação da
ideia da América--como-natureza e, consequentemente, um espaço de contínua
reinvenção e renascimento. Aquando da chegada dos europeus à América, e graças
à forma de vida equilibrada das tribos nativas, estes poderam usufruir, à luz
matinal daquele novo continente, de visões primevas, “frente a frente, pela
derradeira vez na história, com algo comensurável com a sua capacidade de
assombro” (Fitzgerald, 177). Procurando-se narrar o que nunca tinha sido
colocado em palavras – a paisagem americana ‒, os autores de uma escrita sobre
a natureza criam um espaço literário híbrido, procurando palavras e
perspectivas que efetivamente traduzissem essa nova circunstância do homem
europeu no Novo Mundo.
A diversidade e o
movimento estão na base deste género literário, e são estas as características
que o tornam um género congenial ao modo de ser americano. A fim de olhar
atentamente o fenómeno da natureza e assim caminhar no sentido de um maior
conhecimento do eu, os autores que se dedicam à escrita sobre a natureza
privilegiam o peripatetismo: na base das considerações que fazem sobre a
natureza estão as caminhadas em redor de paisagens, lugares que definem como
sendo de movimento, e que estão na base de associações imaginativas e processos
alquímicos de transformação. Esses passeios decorrem maioritariamente em locais
que o autor conhece bem, o que significa que atentar no meio natural é também
celebrar o lugar e reconhecer o seu efeito sobre a existência humana. É também
uma aprendizagem da humildade. Neste sentido, podemos afirmar que a escrita
sobre natureza intensifica a curiosidade humana sobre o particular, dando a
conhecer o que de surpreendente nos reserva um olhar atento sobre o que de
antemão consideramos apenas próximo e familiar. A escrita sobre a natureza é um
género cujos textos se caracterizam por uma estrutura narrativa aberta,
valorizando-se sobretudo a vitalidade, o movimento e a imaginação, aspectos
fulcrais uma vez que estes se encontram em sintonia com o facto de nesses
textos se cultivar a ideia da interdependência ‒ dos organismos vivos com a
vida humana.
Pilgrim
at Tinter Creek,
obra que em 1974 deu a Annie Dillard o Pulitzer, gira em torno da metáfora da
visão: percorrendo a natureza circundante, e prestando atenção aos fenómenos
que a constituem, Dillard quer ver o que de outro modo lhe passaria
despercebido: “Saí; vejo qualquer coisa, um qualquer acontecimento que de outro
modo se teria escapado, perdido completamente. Ou qualquer coisa me vê, um
enorme poder varre-me com a sua asa perfeita, ressoando como um sino” (Dillard,
5)[5].
A natureza apresenta-se como um território de descoberta pessoal e ver
significa apreender melhor um eu interior. Dillard, à semelhança de Henry David
Thoreau, deseja escrever um diário meteorológico da mente: interligar as
histórias e visões que nascem da observação dos vales, cursos de água e
montanhas de Blue Ridge, Virginia, com o território desconhecido da mente
humana. O olhar de Dillard fortalece a perspectiva de que escrever sobre a
natureza é, tal como o indica a água sempre em movimento do ribeiro – Tinter
creek –, tentar apreender o que se mostra inapreensível; o mundo oferece-se em
constante mutação. Contrariamente a uma montanha, representante do mistério
antigo e passivo, o ribeiro representa o mistério da criação contínua, o seu
curso de água plasmando a incerteza, o terror das formas fixas, a dissolução do
presente, a complexidade da beleza, a força da fecundidade, a ilusão das formas
livres, a natureza nem sempre perfeita da perfeição (Dillard, 3).
Antes de Dillard, Emerson
e Thoreau já haviam chamado à atenção para o património natural americano, esse
que haveria de se constituir em voz singular da América. No texto fundacional,
“Nature” (1836), diz Emerson: “Por que motivo não haveremos nós de desfrutar,
também, de uma relação directa com a Natureza?” (Emerson, 13-14). Henry David
Thoreau, por seu lado, experimentou, de forma direta, a natureza americana. É
em redor de Concord, Massachusetts, que observa minuciosamente a natureza –
identifica árvores, flores e gramíneas, anota o regresso das aves na primavera,
mede o nível das águas dos rios, os anéis das árvores e o tamanho das sementes.
Vivendo embora no século dezanove, ele é um precursor do moderno discurso
ambientalista, pois reivindica a necessidade de conservar a natureza como um
domínio de vitalidade e de diversidade. Balizado por um saber científico,
Thoreau, no entanto, não descura a imaginação e dedica o seu tempo a observar e
estudar a paisagem à sua volta. Partindo do particular, deseja alcançar os
ritmos e os padrões universais, tendo sempre à mão uma linguagem poética:
confessa ter grande fé numa semente; perante uma semente, prepara-se para
esperar maravilhas.
[...]
In: A Terra de Duas Línguas II – Antologia de Autores Transmontanos
[1] Esta é uma
versão atualizada do texto apresentado no “Congresso de Homenagem ao
Douro/Duero e seus rios: memória, cultura e porvir”, Zamora, Abril 2006.
[2] Finch e Elder
assinalam as obras de John Ray, The Wisdom of God Manifested in the Works of
Creation (1691) e de Gilbert White A Natural History of Selborne (1789)
como sendo aquelas que inauguram uma tradição de teologia natural: a natureza é
um território onde a presença divina se faz sentir. Esta mesma tradição
encontrará solo fértil também do outro lado do Atlântico.
[3] Sempre que no
texto referimos “América”, “americanos” ou “Novo Mundo”, temos em mente o
território e o povo dos Estados Unidos da América.
[4] No
original: “a meadow is a delicate embroidery in colors, which you must examine
closely to understand all its merits; the nearer you are, the better” (Cooper,
1998: 76). Nossa tradução.
[5] "I walk out; I see something,
some event that would otherwise have been utterly missed or lost; or something
sees me, some enormous power brushes me with its clean wing, and I resound like
a beaten bell". Nossa tradução.
Sem comentários:
Enviar um comentário