Prefácio
Como se de uma oração se tratasse
Este texto – Em Busca do Ser – afigura-se como um
momento de atenção, uma espécie de oração num mundo cada vez mais inquieto e
rumoroso. Tal como uma oração, este é um texto que pretende levar o leitor de
um pensamento a outro, do ruído ao silêncio interior; tal como numa oração, assiste-se
a um diálogo: um “eu” conversa com um “tu” (aqui, 3 vozes distintas), com o
objectivo de compreender mistério da vida.
A sua estrutura híbrida – alternam textos em prosa e em
verso – ilustra e reforça a ideia de movimento que percorre toda a obra. O
movimento aqui é o do pensamento. A linguagem – simples, pautada aqui e além
pela sobriedade da erudição – intensifica o conteúdo e clarifica a forma:
perante a fragmentação, busca-se a totalidade. Os poemas, síntese e essência de
todo o texto, sublinham os tópicos centrais – a demanda de sentido, a luta com
as palavras e com as trevas, o desejo de infinito –, ilustrando, como se disse,
a linha dorsal de toda a obra: a deslocação do pensamento, da imaginação e do
entendimento.
A viagem inscrita nesta obra de António Sá Gué não se
realiza através da geografia; antes, é uma viagem toda ela feita de visitação
ao interior do ser, aos cantos mais recônditos da alma de um sujeito que clama
pela luz.
Poucas são as indicações geográficas – apenas se fala de
uma ponte e do sentido de a atravessar, sabendo-se que do outro lado existem
“as terras da liberdade”. Mas a passagem oferece-se, como refere o sujeito,
apenas como “possibilidade de fuga ao absurdo de mim” (22). Sempre, esta é uma
viagem que resulta num ponto centrípto, é sempre um “caminhar para dentro”
(34), uma “descida ao centro de si” (17).
O movimento descendente é importante, pois ele desenha a
catábase ao mundo subterrâneo, ao inferno que o próprio indíviduo alimenta em
si mesmo. Por vezes, a este processo chama-se loucura, outras vezes, um
movimento que descreve a busca da leveza numa paisagem caracterizada pela
tristeza. Essa via descendente pode também configurar a busca, no reino das
sombras, da luz mais fulgurante, um modo de vida que alinhe “poeira e vento”
(42), ou seja, as antíteses que o ser humano carrega nos ombros de uma
existência sempre frágil e conturbada.
Este é um livro que não apresenta, por isso, um caminho
fácil ou plano. É, antes, um caminho estreito e tortuoso que exprime a sede de
infinito, a eterna busca da beleza, a união total que Fernando Pessoa refere em
“A Chuva Oblíqua.” Mas que, tal como no poema pessoano, se torna inalcansável;
pelo contrário, é algo fugidio, inacessível: “A bola rola pelo despenhadeiro
dos meus sonhos interrompidos.” Também em Em Busca do Ser se despenham
em abismos insondáveis o sonho, a realidade, a idealidade.
Quando escolhemos pensar neste texto como uma oração,
quisemos sublinhar a sua vertente espiritual, pois vemos nele um diálogo entre
o humano e o divino, uma conversa com Algo que está fora do mundo, mas que
representa a única via para a sobrevivência. Como um inquieto Job, o autor
escolhe os caminhos da mitologia clássica para dar ao leitor ecos de uma
inquietação metafísica. E assim, para a eterna sede e a fome sempre
insatisfeita, António Sá Gué escolhe Tântalo, figura que espelha a dor de viver
e o encontro repetidamente adiado entre o desejo e a realidade. Mesmo que o
sujeito de Em Busca do Ser esteja na posse do fio de Ariadne – aquele
que permite a Teseu encontrar a saída do labirinto – este não conhece as
vitórias de Teseu. Antes, permanece Sísifo, ou seja, a imagem daquele que está
condenado a viver com a consciência de que a procura de si mesmo é uma tarefa
interminável.
Claro que na busca de si o narrador/poeta enuncia também
a procura das palavras para falar de si e do seu diálogo com o mundo. E por
isso se encontram no texto referentes literários e filosóficos que bordejam o
caminho do ‘eu’ – Dante, Dostoiewski, Kafka e Jack Kerouac, Erasmo, Platão,
Freud – nomes que lhe permitem revisitar a memória do mundo. Numa luta sempre
constante pela busca de sentido – das palavras, da vida – o narrador não se
quer sozinho e por isso procura companhia que sustente a sua viagem, que o
ajude à compreensão do real. Embora fugidio, é a esse real que ele tem de se
agarrar para regressar do reino das sombras. Sim, porque este sujeito
“aprisionado pelo universo do verbo,” perdido e “pendurado no princípio do
tempo” (11), quer “sair daquele poço”, quer “subir ao sol” (58). Tal como
Prometeu, espera-se a libertação – aqui entendida como a compreensão da
natureza das coisas, a “linguagem da origem do mundo” (109). Para isso, há que
“caminhar descalço, tropeçar nas pedras, pisar a neve, mas caminhar sempre,
mesmo que a alma já esteja desnuda e em carne viva” (16). Só assim se percebe a
força das palavras de Dostoiewski escolhidas para epígrafe de Em Busca do
Ser – o Homem é um mistério; só caminhando, só buscando, só insistindo com
o mundo não se desiste do mundo.
Este parece-nos ser o mérito de António Sá Gué – não
desisitir de se entender. Ao procurar-se a si é a todos que busca compreender;
na medida em que não quer abdicar do mistério da sua alma, aprisionada em
contrários insolúveis, persiste na luta com as trevas e com a linguagem, numa
tentativa de “encontrar vida em si” (116), de encontrar vida em nós, seus
companheiros de viagem.
“Já é tarde”, diz-se; mas também se escreve: “nunca é
tarde” (128). Cabe-nos a nós, leitores, escolher a fórmula de salvação.
Isabel Alves
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