14 abril 2014

Tempo e Memória,por António Chaves

Dizem os que queimaram pestanas a ler documentos antigos que a ignorância das letras foi uma constante em Barroso, durante os últimos séculos; a lendária ignorância desta boa gente foi já assinalada por Frei Bartolomeu dos Mártires, Bispo Primaz de Braga, quando da sua visita pastoral à região, em 1564, onde se demorou cerca de quatro meses, a percorrer todas as paróquias, em contato com o povo.
Nascido do desdobramento do concelho de Montalegre em 1836, o concelho de Boticas na data da sua criação não dispunha de qualquer estabelecimento de ensino público. A primeira escola pública só começou a funcionar ali em 1838; o edifício construído para esse fim foi concluído apenas em Outubro de 1871, graças a um valioso donativo de 144 contos  para 120 escolas, por parte do Conde de Ferreira em 1866,  um emigrado que enriqueceu no Brasil e Angola, sensibilizado com a falta de instrução dos portugueses emigrantes.
Em reunião de Câmara de 20 de Maio de 1875 foi evocada a necessidade de abrir na sede do concelho uma biblioteca pública, aspiração que veio a ser concretizada apenas em 1 de Junho do ano 2000, isto é, 125 anos mais tarde.
Conquanto no início do século XX a Inglaterra tivesse apenas 3% de analfabetos, essa pavorosa praga atingia ainda, nessa altura, 78% da população portuguesa, o que levara Eça de Queiroz, anos  antes, a lançar este grito angustiado: «os que sabem dar a verdade à sua pátria não a adulam, não a iludem, não lhe dizem que é grande, porque tomou Calecute; dizem-lhe que é pequena porque não tem escolas. Gritam-lhe sem cessar a verdade rude e brutal. Gritam-lhe: tu és pobre, trabalha! Tu és ignorante, estuda! Tu és fraca, arma-te!».
Decorrido mais de um século sobre esta proclamação, chegamos à atualidade com algumas povoações do concelho de Montalegre a registar ainda taxas de analfabetismo superiores a 40%. Se isto não é atraso civilizacional, como devemos qualificá-lo?


Genericamente, não só estas pessoas não tiveram escolaridade adequada, como as comunidades locais lhe não reconheceram, por vezes, a utilidade; é de resto difícil reconhecer a falta daquilo que se desconhece. Bento da Cruz retrata exemplarmente essa realidade, a propósito da sua entrada para instrução primária:  «meu pai incorreu na censura dos vizinhos por me ter mandado à escola oficial.
- Andas para aí desgraçado, sem ninguém que te deite a mão a nada, e trazes o rapaz na vadiagem. Sujeita-o contigo! Sempre te vai  fazendo companhia e ajudando a qualquer coisa.»
 O depoimento é esclarecedor quanto à forma de pensar do mundo rural dos anos trinta do século passado, duas décadas antes da abertura do Colégio de Montalegre.
A frequência do ensino primário tornou-se obrigatória por lei, em Portugal, desde os primeiros anos do século XX; mesmo assim, nos anos cinquenta, nas aldeias, era frequente  as pessoas irem à escola pedir a dispensa do filho ou filha para  o pastoreio de vacas, do rebanho ou de outras atividades da vida familiar. Recorremos mais uma vez a uma citação de Eça de Queiroz sobre o ensino na segunda parte do século XIX,  para situar o papel da criança na vida rural de então,  o que aos mais novos ou menos familiarizados com a vida dos campos até meados do século XX pode parecer chocante, ou mesmo incompreensível: «a criança de sete a dez anos já conduz os bois, guarda o gado, apanha a lenha, acarreta, sacha, ajuda na lavoura. Tem a altura de uma enxada e a utilidade de um homem. Sai de madrugada, recolhe às trindades»3.
Perante esta dura realidade, Eça defendeu o ensino noturno, como forma do campo restituir a criança à escola, tentativa que falhou frequentemente, na prática.
Apesar disso, a  matriz deste processo seguia de par com algumas iniciativas auspiciosas em certas comunidades locais. Nalgumas aldeias de Barroso a população mobilizou-se e construiu a sua própria escola. Em Negrões, por exemplo, a aldeia construiu um edifício com dois pisos, sendo o rés do chão destinado à residência da professora (com quarto, sala de estar e ligação a uma cozinha anexa) e o primeiro piso a sala de aula. As famílias com mais posses forneceram a pedra, a madeira e o transporte e as restantes ajudaram com mão de obra. O Estado começou, também a edificar escolas públicas em lugares de maior concentração populacional, mas a um ritmo insuficiente. Outras aldeias atraíram algum forasteiro que ali aceitasse viver, com instrução suficiente para ensinar  as crianças a ler e a escrever. Porém a prioridade a dar à instrução foi muito lentamente assimilada, em especial no que se refere à aprendizagem da população feminina.
À margem do ensino público existiram, nos séculos XVIII e XIX  vários centros de ensino civil e eclesiástico em locais como Sapiãos, Couto Dornelas, Eiró, Gralhas além de outros. Os párocos das freguesias dedicaram-se frequentemente ao ensino das crianças da paróquia, durante o período de Outubro a Março, quando as exigências da lavoura eram menores. Noutros locais, de uma maneira informal, pessoas que sabiam ler e escrever improvisavam serões noturnos, na época de inverno, numa cozinha ou sobrado e aí se aprendia a assinar o nome, a fazer contas e, se possível, a ler e escrever uma carta.
A segunda guerra mundial desencadeou uma forte procura de volfrâmio para o fabrico de munições e outros equipamentos da poderosa maquinaria de guerra. A exploração do minério deu origem a muitas centenas de explorações artesanais por todo o Barroso e a um exército de apanhistas, dentro e fora do Couto Mineiro da Borralha; milhares de mineiros assalariados trabalharam no interior das minas da Borralha, onde laborava a todo o vapor, a segunda maior exploração de volfrâmio do país.
Respirava-se ali um ambiente análogo ao do faroeste americano na corrida ao ouro, só que agora tratava-se de ouro negro, pela sua escassez e elevado preço. Bento da Cruz descreve em A Fárria o ambiente local de então: «por aqueles outeiros e quebradas, um mar de gente de ambos os sexos e todas as idades, que eu, de longe, como estivéssemos em Maio e as cortes varridas, supus de enxada na mão a cortar e recolher o mato, e, de mais perto, identifiquei como sendo pesquisadores de minério. […] Por entre eles fui descendo até à margem direita do rio, no leito do qual, uma chusma de mulheres, de pés na água, remexiam areia em tabuleiros de pau. Surpreso com tudo isto, passei à margem esquerda por uma ponte de madeira, fui engolido por uma multidão e compreendi que tinha entrado num mundo diferente do meu.  […]Eu nunca tinha visto tanto povo junto. […]Passei por um grupo de cento e muitos. Os mais  novos ainda riam e galhofavam uns com os outros. Os mais velhos iam silenciosos e taciturnos. Todos de tamancos, fatos de cotim a desfazerem-se de coçados e sujos, capacetes na cabeça, gasómetro numa das mãos e saquitela ou marmita na outra. Quedei a olhar para eles e vi-os subir uma rampa e desaparecer num boqueirão da montanha. Dir-se-ia que o Inferno os havia tragado.
-Mineiros?
-Acertou.
[…] Atraído por aquele fio melódico [de uma concertina] apressei o passo. Um cauteleiro quis impingir-me a sorte grande, um fotógrafo à minuta, um retrato, uma cigana a ‘buena-dicha’. Um tipo de toalha na curva do braço esquerdo e pincel em riste na mão direita, convidava os transeuntes a cortar cabelo e barba. Outro, de bata branca muito sórdida, arengava junto de uma cadeira de pinho encostada a uma esquina: “arrancam-se dentes e raízes a três mil reis cada. Sem qualquer dor. Aproveitem. Não sofram mais. Sem dor. A três mil reis. Aproveitem.”
[…] Fui ver. Uma família de saltimbancos a exibir habilidades para um numeroso círculo de basbaques de todas as idades e categorias. Do outro lado, acompanhada à guitarra por um “ceguinho”, uma fadista de viela regougava a “estória  do nefando e ‘horrible’ crime”. Versava ela o assassinato do Capelo, de Salto, pelo Zacarias, de Juguelhe, ocorrido há mais de vinte anos, mas cuja dramatização continuava a interessar o público. De todos os lados os mendigos me estendiam a mão, uns em silêncio, outros com apelos patéticos ao amor de Deus e das alminhas.»
Para além deste poviléu sem eira nem beira, existiam também os administradores, engenheiros, responsáveis pelo pessoal, pelas tarefas administrativas e pelos trabalhos no interior da mina, além de outros serviços, como por exemplo o pessoal dos correios e respetivas famílias, que procuravam proporcionar ensino conveniente aos  filhos.  Assim, nasceu a Escola Profissional da Borralha na década de cinquenta, por iniciativa do pároco local.              
Também a produção intensiva de batata de semente originou outro novo frenesim nas áreas acima dos 600 metros de altitude, pondo termo ao tradicional sistema agro-pastoril, criando neste sector, uma frenética  economia de mercado. O sistema de entreajuda e de troca de mercadorias deu lugar à produção de batata de semente, em regime de quase exclusividade, opção que mais tarde se revelou bastante negativa para a região, pelos desequilíbrios sociais e económicos surgidos, após esse pico de produção.
Nesses anos de euforia, a paisagem transformou-se. As aldeias de Barroso, de casas colmadas de palha de centeio, cosidas com a paisagem, cederam lugar aos coloridos telhados de telha marselhesa.
 O Colégio de Montalegre, situado na sede do concelho, iniciou a sua atividade escolar no ano de  1953, meio século depois da abertura do Liceu em Chaves. O Colégio  da vila Boticas abriu em 1960.
O ensino secundário tardio em Barroso, fica mais expressivo, quando cotejado com o verificado em Chaves, que dispôs de um Liceu desde 1903, ano em que se registou o primeiro voo aéreo da história da humanidade, pela iniciativa dos irmãos Wright. A entrada em funcionamento desta unidade de ensino precedeu mesmo a primeira linha telefónica entre Lisboa e Porto, posta a funcionar no ano seguinte, ou o início  da distribuição de  luz elétrica aos particulares, em Lisboa.
O nascimento do Liceu de Chaves esteve envolto numa circunstância curiosa: a autorização da abertura de liceus estava então consignada exclusivamente às capitais de Distrito. Dois ministros do governo de então, naturais de Chaves, aproveitaram a oportunidade de um deles ficar a substituir o chefe do governo e, por proposta de um e despacho favorável do outro, o Liceu Nacional de Chaves iniciou as aulas no dia 6 de Outubro de 1903, com instalações na  Rua do Poço, onde se inscreveram 42 rapazes e oito raparigas, sendo as despesas de funcionamento suportadas pelo Município; faltava então, ainda um ano, para a constituição do Clube Sport Lisboa e Benfica e para a inauguração do Salão Ideal, primeiro animatógrafo da cidade de Lisboa. No decorrer de 1904 foram ainda atribuídos 400 contos para a construção da linha férrea Régua/Chaves, por influência do Conselheiro Eduardo José Coelho, natural de Redial, concelho de Chaves.
O Colégio de Montalegre aproximou o mundo local de  vila e aldeias e toda uma geração de jovens, não apenas em termos de convivência mas também de identidade. Essa nova geração teve a oportunidade de seguir localmente os estudos secundários até ao então designado 5º ano do liceu. Os alunos eram preparados no Colégio de Montalegre e levados a prestar provas no Liceu Nacional de Chaves.
Para trás ficou a pequena escola de instrução primária, enquanto meta do horizonte educativo, a nível local. Até ali, a generalidade dos jovens da aldeia e da vila não passavam além da pequena sala de instrução primária, composta de filas de carteiras duplas em madeira, orifício ao centro, no tampo, para um tinteiro branco, e um entalhe lateral para os lápis de lousa ou de papel e uma pena de aparo para as cópias a tinta. No topo da sala, a secretária da professora, com a clássica braseira aos pés na maior parte do ano. Nas paredes, um ou outro mapa suspenso, por regra, em mau estado. Suspensas da parede, a ladear a secretária da professora,  as fotografias de dois cavalheiros de ar sisudo, dentro de caixilhos de madeira escurecida. Ao centro, uma imagem de Cristo na Cruz.  Era tudo!
Ali se lecionavam, em simultâneo, os quatro níveis de ensino primário. Por vezes a aula acolhia também alunos de aldeias próximas onde não havia escola, situadas a dois ou três quilómetros de distância e às vezes mais. As crianças a partir dos sete anos tinham de palmilhar diariamente aqueles caminhos, atravessando trilhos de lobos, ao calor, ao frio, à chuva e à neve; no bornal uma côdea de pão, nem sempre acompanhada de um presigo e sacola a tiracolo, com livros, cadernos e lousa .
Quando as chuvas alagavam as margens de corgos e riachos, impedindo a passagem, as famílias onde se situava a escola abrigavam essas crianças em suas casas, dando-lhes de comer e cama para passarem a noite. Não havia telefone nem forma de avisar os pais de que elas estavam abrigados e em segurança. Por vezes  resvalavam na passagem dos regatos, ou eram surpreendidos pela chuva, no caminho. Ficavam encharcados dos pés à cabeça e continuavam assim, caminho fora  até à escola, onde enxugavam  a roupa  ao calor da braseira da professora, ou aguentavam a frialdade até ela secar, com a quentura do corpo.
O prolongamento dos estudos gerou uma nova animação nas ruas da vila de Montalegre, além de um aumento de receita no comércio e nas casas de famílias que hospedavam os estudantes de fora.
Até  aos anos cinquenta, o comércio da vila fornecia a crédito os seus fregueses rurais, saldando estes as contas, por norma, uma vez ao ano, ou quando vendiam vaca, vitela ou junta de bois, numa das duas feiras mensais, realizadas na vila.
Foi uma alma nova para Montalegre. O crescimento de residentes na vila foi significativo, em particular no setor juvenil, contribuindo para uma renovada dinâmica social. Constituiu também um auspicioso desafio para muitos quadros da administração local que assumiram o encargo de lecionar as respetivas matérias,  uma vez que o isolamento geográfico e as dificuldades de transporte obrigavam o Colégio a recrutar localmente todo o quadro de professores. Foi, também por isso, um combate que dinamizou  vários setores da  comunidade.
O Colégio de Montalegre abriu as  portas em 1953, criando um horizonte de esperança para muitos que de outra forma não teriam tido acesso aos estudos secundários, nem a oportunidade de participar na mudança de mentalidade,  em fase de acelerada transformação.
Os alunos mais antigos ainda se recordam dos beirais de colmo das habitações, mesmo nas barbas da vila, dos ranchos  das segadas e o pipo a passar de mão em mão, a apagar o fogo nos lábios sedentos sob o sol escaldante; dos malhadores a correr o eirado, soltando em batida hercúlea, da espiga o grão, depois armazenado na tulha, depois de limpo; dos fornos comunitários de granito ainda em plena laboração, dos fenos calcados nos palheiros pela rapaziada, do canto dolente dos carros de bois, dos gadanheiros em lameiros de feno, dos rituais comunitários, do gaudio do trabalho coletivo, da folgança em festas e arraiais - comovente memória de uma ruralidade perdida.
Diminuíram as diferenças entre os filhos da vila e os das aldeias, bem notórias até aí, quer nas referências do viver quer na natureza dos recursos, patentes até na própria maneira de vestir e de andar pelas ruas. Os alunos oriundos da vila provinham em regra, de famílias de funcionários da administração pública local, dos profissionais liberais e das famílias ligadas ao comércio. Os das aldeias saíam de casas de lavradores médios ou pouco mais além disso. A condição de referência das casas de lavoura estava então não apenas na imagem de um Portugal antigo, rural, interior, pobre, sofrido, mas no facto de se sentirem pertencer ao limiar inferior da pirâmide social, tanto por falta de instrução como por estreiteza de horizontes alternativos à sua condição de vida.
O colégio de Montalegre foi por isso, antes de tudo, um processo de nivelamento social entre as aldeias e a vila e, de um modo mais geral, entre o mundo do campo e a vida na cidade, em particular para a nova geração.
O acesso aos estudos secundários  proporcionou aos jovens a entrada num mundo novo de experiências únicas, descobertas mágicas, aventuras, arrebatamentos. Nas aulas e fora delas. Um verdadeiro banquete de vida pulsante a deambular  pelas ruas de Montalegre.
Só muito mais tarde tivemos consciência do mundo simples que ficou para trás: andar todo o dia ao ar livre; correr o campo, subir às árvores e às montanhas, dormir com a porta aberta nas noites de Verão, conviver com a retidão de caráter - pessoas de cara lavada e olhar límpido, sem medo de coisa nenhuma, nem de ninguém.
Quando uma ou outra vez a vida se sente agora vazia é reconfortante saber que um dia a sua terra natal lhe serviu de guia. Era então primavera e sente-se agora o vento frio do Outono. Quanto vale a memória daquilo que não foi dito, dos dezoito anos em que qualquer dia era Verão, do azul dourado de Abril, dos olhares e sorrisos felizes, de estudantes em correrias a sorver o ar puro até à embriaguez,  do coração cheio de promessas e  mente aberta, que tudo queria  devorar .
Hoje só em silêncio o apreciamos, em plenitude. Este reencontro de memórias de companheiros separados pelos afazeres da vida, mas unidos pelo vínculo indestrutível da amizade de infância, em dimensões descobertas, às vezes, tarde demais - um rio de memórias, frágil e límpido que  a mais pura inocência soube alimentar. Assim, ainda acordamos  agora, atentos aos sons da terra, ao colorido da paisagem,  ao pulsar da fauna, ao empedrado das ruas, ao sino da igreja, ao relógio de sol , aos movimentos nos currais, ao traçado austero das casas de granito e dos palheiros, à frescura  das fontes.
Não sei se o casal Dr.ª Margarida e Dr. Américo Canedo incluíram tão diversos propósitos no cadinho de sonhos donde brotou o Colégio de Montalegre. Sei, isso sim que uma semente pode transformar-se numa árvore frondosa, gigantesca ou  ficar-se pelo tamanho de um bonsai. Tudo depende das condições envolventes, favoráveis ou contrárias ao seu pleno desenvolvimento.
O potencial do homem de Barroso esteve sempre lá, em sua essência; apenas variaram as circunstâncias, mais favoráveis em certos períodos, menos noutras alturas, por entraves de vária natureza, ou dormente, por falta de estímulos. Enquanto região distante de tudo, assente numa economia de subsistência de base agro-pastoril, os estímulos foram preferentemente dirigidos para o desempenho braçal no cultivo dos campos, para a resistência frente ao clima agreste e para a  entreajuda, como é próprio das comunidades de montanha.
Aqueles que não conseguiram realizar aqui, a nível espiritual ou material as suas aspirações, tendo em conta as condições concretas locais, deixaram a terra e partiram  por esse mundo  fora, com seu punhado de sonhos. Como alguém já referiu, o  homem de Barroso teve,  em sua terra, dois grandes desígnios: até aos trinta, ser valente;  e depois dos trinta ser honrado. Dito de outra forma, foi chamado a desenvolver aptidões  físicas ligadas ao trabalho braçal e espirituais direcionadas para a retidão de carater, para o amor ao próximo, a solidariedade fraterna e o convívio harmonioso com a natureza.
A formação escolar abriu espaço a novas dimensões do ser, colocou novas alternativas ao crescimento do indivíduo; permitiu e valorizou novas atitudes e aspirações, adormecidas no mundo rural antigo. Ente tantas outras saídas, proporcionou-lhe desenvolver faculdades e opções novas, com mais alternativas e menos grilhetas físicas, psicológicas e sociais mas, simultaneamente tornou-o mais responsável pelo seu percurso de vida. É-lhe dado interrogar-se e decidir o seu futuro sem precisar de ninguém a dizer se está certo ou está errado. De um lado, a falta de novos horizontes  justificava uma forma de determinismo à nascença, que o povo designou sabiamente  por destino. Do outro, as novas alternativas fazem dele um homem só, responsável pelos seus atos e atitudes, mas um ser solitário nas horas de decidir. Mais que isso, o seu percurso é  em grande medida, a consequência das suas decisões.
 Os resultados  estão aí, patentes no desempenho da nossa gente, nos mais diferentes domínios de atividade, tanto em Portugal, como no estrangeiro. A semente que se desprendeu do  mesmo tronco de árvore produziu diferentes resultados face ao novo meio envolvente e às novas  condições que valorizaram  outras dimensões do seu  potencial.
Abriu-se assim um novo horizonte relacional, espiritual, intuitivo, emocional, percetivo, imaginativo – um novo prodígio  que extravasou o cadinho do sonho dos seus obreiros, furor espontâneo a compor os sons  de uma palavra simples: gratidão.
Aos  patronos e a todos os que no projeto se empenharam é justo referir o que o grande poeta visionário escreveu na “Mensagem”, quando sentado à mesa de um café de Lisboa: “Da obra ousada foi ‘deles’ a parte feita”…
Não frequentei fisicamente o Colégio de Montalegre. Fui diretamente para o Liceu de Chaves, por ligações familiares; de fato preto, como vestiam todos os que dali saíram antes, para o seminário. Dei-me conta de como era diferente, pela forma como vestia, pelo modo como olhava para as coisas. Os meus condiscípulos também o notaram e passei a ser conhecido, entre eles, pelo barrosão, renome um tanto equívoco pelas conotações diversas em que o utilizaram, mas com qual sempre me identifiquei. Era o único aluno conhecido como sendo de Barroso, uma espécie rara, que resvalou das terras altas, até à veiga de Chaves. Na verdade não fui o único aluno originário de Barroso, mas o qualitativo estava posto e ficou. Havia pelo menos mais duas alunas de Barroso no mesmo ano escolar e o bom companheiro de turma, Rogério Palma Rodrigues, hoje um distinto médico, em Setúbal. Mas só o pai era de Barroso. Não sei se por essa razão me reconheceram mais legitimidade para porta- estandarte.

No período de férias convivi intensamente com os amigos que frequentavam o seminário de Vila Real e o Colégio de Montalegre. Fiquei a saber  tanta coisa do que se passou num e no outro lugar que parece ter gasto os fundilhos, nas mesmas carteiras. Neste sentido, se não me senti com total legitimidade para aceitar o amável convite de partilhar o meu testemunho, foi na qualidade de filho de Barroso, entrado no liceu, também em 1953, que me vejo  parceiro da mesma alvorada da instrução, que animou os jovens do pós- guerra do nosso torrão natal.

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