Começamos
por justificar o acento colocado na palavra poéta. É dele responsável o
escultor Martins Correia, amigo de Natália e autor de um busto seu em que
perpetua a imagem da beleza sensual de uma mulher no auge do seu esplendor. Na
base da obra plástica está inscrita a forma acentuada, como que a dar maior
ênfase à condição daquela que, embora autora de quatro romances, de cinco peças
de teatro e de inúmeros ensaios, ganhou notoriedade como cultora de poesia lírica
e satírica, tendo publicado, em quarenta e três anos, treze colectâneas de
versos.
Como
escreve Clara Rocha em “Sobre Poesia Completa de Natália Correia”, estudo
inserido em O Cachimbo
de António Nobre e Outros Ensaios, a produção poética da escritora açoriana
encerra “matrizes estético-literárias tão díspares como o Barroco, o Romantismo
e o Surrealismo”, caracterizando-se, também, por “uma pluralidade de um rosto
que proteicamente se diz em figurações várias, na alternância entre o frívolo e
o sério, o riso e as lágrimas, a alegria e a mágoa…”, por um “constante
movimento de temas e de tons”.
Na
primeira badana de O Sol nas Noites e o Luar nos Dias pode ler-se: “ (…) é
sobretudo na poesia que o seu talento de escritora vanguardista e independente
de quaisquer agrupamentos poéticos ganha plena expressão, assegurando-lhe um
lugar de destaque entre os grandes vultos da literatura contemporânea”.
Se
lhe reconhecemos mestria no domínio da lírica, patente, sobretudo, nos sonetos,
consideramos que a força indomável da sua inspiração fulgura predominantemente
quando, na senda da nossa melhor tradição maledicente iniciada na Sátira
Trovadoresca medieval com as Cantigas de Escárnio e Maldizer, desfere as suas
afiadas farpas em pessoas e acontecimentos do Portugal político pós 25 de
Abril.
Eleita
deputada à Assembleia da República pelo partido de Sá Carneiro (a quem
apresentou Snu Abecassis) em 1979,
a sua voz incómoda e sem peias abalou as estruturas do
Parlamento, quebrou a sisudez composta do hemiciclo, atreveu-se a ridicularizar
políticos de vários quadrantes, incluindo o seu, num pluripartidarismo lúcido e
imparcial. Parodiou decisões governamentais, ridicularizou ministros,
dirigentes, deputados, candidatos a cargos políticos, como foi o caso de
Marcelo Rebelo de Sousa aquando da sua campanha eleitoral autárquica da
Coligação por Lisboa. A ele dedicou o “Cancioneiro Joco-Marcelino”, constituído
por oito poemas de que apresento o seguinte:
O FADO DO
COVEIRO
Das artes
mágicas campeão audaz
tira Marcelo da
manga outra faceta:
por sua dama Lisboa, o Galaaz
faz-se à viela e
ginga à lisboeta.
Calça à boca de
sino e cachené
ao marialva senil metendo inveja,
fidalgo edil que canta para a ralé
o faduncho
finório gargareja.
Estremece Aníbal
com o pardal fadista
que aquilo é treino para o último
regalo:
escaqueirar o reinado cavaquista
e sobre a tumba,
por fim, cantar de galo.
Entre 1979 e 1991 Natália Correia escreve CANTIGAS DE RISADILHA, designação de uma das espécies das Cantigas de Maldizer, aquelas em que os trovadores, sem qualquer ambiguidade ou subtileza, achincalhavam pessoas identificadas de forma directa e chistosa. A autora esclarece, assim, os leitores:
Não se apure
nestas sátiras, só algumas entre as que perdi, qualquer intento malévolo contra
instituições democráticas que mesmo abaladas pela célere erosão do sistema
político-partidário são o que há onde o que deve haver terá de ser fruto de uma
ideologia ainda adiada cujo irromper se impõe. Tomem-se, por conseguinte, estes
versos parodísticos como desenfados quase todos parlamentares, outros visando a
política partidária em geral, instantemente reclamados pelo duende do meu
justiceiro humor, tiranete a que não resisto pelo sortilégio da homofonia
HUMOR-AMOR.
Registe-se,
a propósito, a militância da poeta na resistência ao fascismo, a sua
participação na campanha de Humberto Delgado, a perseguição de que foi alvo
traduzida na apreensão de livros, no impedimento de serem levadas à cena peças
da sua autoria.
Como
se vê, encarou a política com seriedade e, quando a parodiou, teria em mente a
função morigeradora da crítica social, segundo o axioma Ridendo castigat
mores, presente na dramaturgia desde a Antiguidade Greco-Latina e que
encontra expressão na nossa literatura, como acontece, por exemplo, com os
comediógrafos quinhentistas Gil Vicente e Camões.
Para
evidenciar as qualidades humorísticas da autora de Mátria, nada melhor
do que proporcionar ao leitor dois textos, o primeiro dos quais provocou a
hilaridade de quantos, no dia 5 de Abril de 1982, leram o Diário de Lisboa e
que foi inspirado na afirmação de João Morgado: O acto sexual é para fazer
filhos”.
Na
introdução a este capítulo do livro, a autora esclarece que não era sua
intenção publicar as sátiras em que “aliviava de alguns pesadumes
parlamentares”. Aconteceu que um companheiro de bancada lhe pediu para ler o
texto que fotocopiou e distribuiu, traiçoeiramente mas com boas intenções a
deputados e jornalistas.
Já que o coito - diz Morgado –
tem como fim
cristalino,
preciso e
imaculado
fazer menina ou menino;
e cada vez que o
varão
sexual petisco manduca,
temos na
procriação
prova de que houve truca-truca.
Sendo pai de um
só rebento,
Lógica é a
conclusão
de que o viril instrumento
só usou - parca
ração! –
uma vez. E se a função
faz o órgão -
diz o ditado –
consumada essa
excepção,
ficou capado o
Morgado.
DURANTE O DEBATE
DA LEI CONTRA O ALCOOLISMO
Num país de
beberrões
Em que reina o
velho Baco
Se nos tiram os
canjirões
Ficamos feitos
num caco.
E querem os
deputados
Com um ar de
beatério
Que fiquemos
desmamados
Quais anjos num
baptistério.
Se o verde e o
tinto são
As cores da
nossa bandeira,
Ai, lá se vai a
nação
Se acabar a
bebedeira.
De abstemia não
se faça
A lex neste
plenário
Que o direito à
vinhaça
Esse é
consuetudinário.
Bibliografia: NATÁLIA CORREIA, O Sol nas
Noites e o Luar nos Dias II, Círculo De Leitores, Maio de 1983
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