24 março 2014

Silhades,por António Sá Gué,

SILHADES.
Quando cheguei a Silhades, a primeira sensação foi de isolamento. A descida abrupta da estrada transportou-me para os meus cantos sinuosos de silêncio. A tranquilidade experimentada na Nossa Senhora da Assunção, lugar de cota bem mais elevada (mas também ele grandioso), a luz amarelenta de fim de tarde, os montes altos a envolverem o rio, tudo isso me obrigou a entrar dentro de mim, a olhar ao meu redor e a cair na fonte de chafurco que sou e onde gosto de me banhar. Brotam em mim silêncios de pequenez perante a grandiosidade dos montes, perante a sua vetustez, perante as águas selvagens que o rio transporta. Sinto-
-me especial, não por aquilo que sou, ou que deixo de ser, mas por aquilo que sou capaz de sentir em locais ermos, no meio dos montes desabridos, perante a pobreza da terra. Eu sou daqui! Sou feito destas giestas que afago com ternura quase libidinosa, sou feito destas fragas sedosas, recantos de mulher, onde me deito e descanso, sou feito desta água barrenta que corre em vales escavados por sentimentos e emoções tumultuosas, sou feito de caminhos poeirentos e dos muros que os delimitam. Eu sou feito desta terra xistosa que se parte em placas, tal como eu quebro perante a grandiosidade da arte e das pessoas que a concebem, que a estudam e que reconheço como almas gémeas, desses amantes do belo, do provocante, que me obrigam a parar, a questionar-me e, tantas vezes, a render-me às evidências mais comezinhas que me enformam. Sou desse sentir terrificamente doce, deste sentir de homens e mulheres que olham para dentro deles à procura da grandeza, da elevação, da assunção da alma humana aos céus!
Atravessa-se o rio e os casebres de pedra solta obrigam-nos a repensar a caminhada da humanidade. Sente-se o peso da história e da pré-história e sente-se a vida de quem ali se abrigou, de quem ali amou, de quem ali pariu vidas que partiram, de quem ali sofreu a agonia da morte, de quem ali viveu uma vida também ela feita de silêncios meditativos do entardecer, como aquele que agora sou, tantas vezes encapsulados na busca do divino que a pequeníssima capela de S. Lourenço me recorda. Recorda-me esse lado contemplativo da alma humana e recorda-me a lenda, a lenda do pastor Ildefonso, que foi santo porque atravessava as águas, para assistir à missa, sobre a manta feita barco. Vou mais fundo no tempo e, com esta alma mediúnica, entro no reino do deus Denso que vejo surgir no alto do Castelinho envolto em sombras longínquas. Ignorado pelo deus Homem, sinto o seu pesar. Brotam-lhe sentimentos outoniços pela face, lágrimas humanas alagam-lhe o corpo franzino, sinto compaixão pela sua breve existência, entendo a humanidade dos deuses, percebo que também eles têm pés de barro. Jaz perante mim.
Acordo.
Esse lado místico da alma humana recorda-me que brevemente ficará submerso, deixará de existir, e nunca mais o poderei sentir como o hoje o senti. Restará em mim esta memória temporária. Temporária porque também eu, em breve, ficarei submerso pelas águas do Letes, o rio do esquecimento, porque também eu, em breve, voltarei a ser esta terra que me pariu e voltarei à inorganidade merecida, eterna, voltarei a ser átomos e moléculas deste céu azul que me cobre, desta luz que se adensa em mim e que paradoxalmente me entenebrece.
Finalmente... voltarei a mim.
In Quadros da Transmontaneidade de António Sá Gué
Ver:http://antoniosague.blogspot.pt/

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