09 abril 2014

Um conto de Albertina Martins Larinato

– Senhor Laureano! Senhor Laureano!
Socos aflitos subiam as escaleiras.
Era domingo. Muito perto das dez horas, Avó Ana, "Dona Reverendona"; atravessava o adro da igreja levando pela mão os três filhos mais novos, para ir ocupar o seu lugar à frente, à esquerda do altar. Avô Laureano levava os dois mais velhos consigo para o coro, destinado aos homens, que ainda tinham como alternativa o exclusivo privilégio de se postar directamente frente ao Altar. Depois, sim, só depois vinham as mulheres. A explicação do costume pode ficar para mais tarde, se não nunca mais daqui saímos. Concordas, Camélia-da-Minha-Saudade?
Agora, sentados à mesa, preparavam-se para jantar. Oliviana enchia e distribuía as tijelas. Avó Ana colocava na mesa uma terrina a transbordar de arroz de carne com tomate, cenoura e feijão vermelho. O avô partia pão, distribuía o vinho por hierarquias (Zefa e os dois menores bebiam água; só a partir dos doze anos os rapazes tinham direito a meio copo de vinho ao meio-dia e estávamos conversados. O mesmo se passava com o primeiro par de calças compridas) e abençoava os filhos à medida que cada um esvaziava a sua malga.
– Entre, quem é!
Dois homens assomaram à entrada, resolutos.
– Então, que é que há?
– Senhor Laureano, venha com nós... Depressa! A senhora queira desculpar entrarmos assim, mas aconteceu uma grande desgraça...
– Mas o que foi?
– O homem da Ti Teodora deu duas navalhadas no da Ti Luisa...
– Ele pode lá ser, homem de Deus!
– Pode, sim, Senhor Laureano. As mulheres estavam a discutir... eles chegaram e vai daí... já foram chamar a Guarda.
– Não estou a entender nada...
– Elas estavam a insultar-se. Os homens vieram e meteram-se ao barulho... e agora o da Ti Luisa está para lá cheio de sangue. Venha daí, Senhor Laureano!
– Eu vou, eu vou, deixai estar... – Avô Laureano levantava-se, passava os olhos pela mesa, à procura de solução – Então tu não comes mais nada, menino?
– É que eu já comi o caldo todo e o pai não disse bonito – Tomé fazia beicinho.
– Bonito, bonito, meu filho, cresceste um palmo – O avô despachava a fórmula consagrada e descia as escaleiras à frente dos outros. Havia razão para aquela pressa e perplexidade. As duas famílias eram comadres, sabe Deus desde quando e havia, inclusive, casamentos entre os rebentos mais novos. Caso sério, como estás a ver, minha Maçã-Coradinha.
– Não sei o que possa fazer – refletia o avô em voz alta.
– Ele sempre lhe há-de lembrar alguma coisa, Senhor Laureano.
O avô entrou, primeiro, na casa da vítima, cuja mulher vociferava ameaças.
– Ah, visto! Atacar assim o meu homem! Onde já se viu!... Mas há-de ir preso, ora se não há-de.
– O que estás para aí a dizer, mulher? O que foi que aconteceu?
– O que aconteceu! O que aconteceu foi que ela me insultou, a mim e à minha filha... e pensou que o meu homem se ficava... Era o ficavas... Não queria ela mais nada! A Guarda não tarda aí e vai ver!
Avô Laureano já corria a casa de Ti Teodora.
– Já sabe o que se passou, Senhor Laureano? – perguntou, chorosa.
– Já, já! Como é que isso foi acontecer, mulher?
Olhe que nem sei, nem sei... Eu só estava a defender a minha Rosa... Ela atirou-se a mim e vai daí o meu homem chegou-se... Então, ele veio de lá...
Havia um bom pedaço de tempo que o avô se esforçava por coordenar os factos e identificar mentalmente cada “ela” e cada “ele”.
– Olha lá, tu não tens nada? Nem um arranhão, sequer? – perguntou ao navalhante, até ali sumido num canto.
– Nada, não senhor...
–Tens a certeza? Enfia-te na cama depressa!
– Para quê? Se já lhe disse que não tenho nada!
– Não discutas, faz o que te digo. Mete-te na cama.
– Mete-te na cama, homem, mete! Faz o que te diz o Senhor Laureano.
Obrigado, o homem enfiou-se entre as mantas, macambúzio.
– Geme, ouviste? Geme bem alto, quando ouvires a Guarda.
– Mas se já lhe disse que não tenho nada!... – era por respeito que o homem se não insurgia com mais eloquência.
–  Geme, homem, geme, que agora também já tens. Geme!
Avô Laureano acabava de rasgar eficientemente a orelha do desgraçado. (Aqui não se reproduzem palavrões, sossega, minha Rosa-Pêssego).
A Guarda veio. Se um fora navalhado no braço, ao outro fora rasgada uma orelha. Ninguém cuidou de saber dos palavrões nem das causas. O que saltava bem à vista eram as consequências. A Guarda abarcou tudo de imediato. No ardor da refrega, nenhum deles havia tido muita consciência do que fizera. Era só isso, nada mais!   
Ti Luisa tratou de avaliar bem a sangria do homem da outra. Vai-se a ver, a desfeita era pouco mais ou menos a mesma... As coisas acontecem, vá-se lá saber porquê. Trate você do seu homem que eu vou tratar do meu... Isto de homens, já se sabe como é.

As mulheres descartavam a sua e exclusiva responsabilidade. Satisfeitas uma e outra com a equidade do sangue derramado em sua defesa, retornaram à sua vida. Mulheres! Mulheres! É tudo o que me diz, senhor meu avô?
Albertina Martins Larinato

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