Para ti não faço versos,
Ares da minha serra
Lendo
Sá Gué
Quem
percorre a primavera através de um ramo de amendoeira florida sabe que a vida é
frágil e conclui que essa fragilidade está em tudo o que desponta e se mostra.
Ainda assim é conveniente tratar das coisas para que elas nos pareçam mais
firmes porque mais conformes com o nosso destino ou pelo menos com um modo de
estar que assenta em boa parte numa herança cultural que, assimilada
lentamente, nos faz como somos, nos determina a essência. Educação, sim, mas
devagar. Tudo volta ao mesmo quando somos confrontados com paisagens interiores
que nos interpelam e de certa forma constituem um exterior, já que publicadas,
vindas a lume na cidade. A terra e o seu apelo nascem todos os dias aos pés de
quem foi criado em ambiente de aldeia e sabe que tem reserva natural nesses
poisos ainda que deles fuja, ou melhor, veja os seus afastarem-se sabe-se lá
porquê e ao certo em nome de quê. Voltar? Sim, mas como, se até a pedra tende a
volver tranquibérnia, a par da velha e ainda sã oliveira tanta vez deslocada do
seu lugar a fim de aí progredir o que é novo e assumindo outras qualidades?
Fechava-se em casa,
evitava sair para o campo, pois era como que o matassem ver o moitedo da altura
do plantio – antes preferia ver o diabo arrastar uma alma para o inferno. Tudo
lhe passava pela cabeça. Tornava-se-lhe insuportável saber que os seus de nada
queriam saber da terra. Se pudesse, voltaria atrás, gastaria tudo na taberna, e
pronto, acabavam-se os problemas.
Assumida
a linguagem composta de boas maneiras que se vão formando não sem que seja
preciso persistência e sem fazer de nós e em definitivo sujeitos agarrados pelo
jeito um tanto ultrapassado do idealista
e sequaz convicto de ideologias canhestras, abertos a pontos interessantes
ou que resultem de um peneirar a que a sociologia no seu geral não é estranha,
podemos ter chegado a ponto de admitir a vinda de mensageiros que traziam informes de outros povos, que semelhavam Homero,
a catalogar naus: os de Fornos diziam-se firmes como fragas, armados de fustes
e hastes, homiziados em palheiros, e mantendo piquetes de atalaia noite e dia;
os do Lagoaçal cavaram fossos, levantaram barricadas e, entrincheirados e de
escopetas assestadas, estavam preparados para o que desse e viesse; os de Rós
já contavam cinquenta peltastas de prol que, armados de chuços e lazarinas, acaudilhados por um sargento de
infantaria reformado, prometiam antes quebrar que torcer; os do Souto,
homiziados em valhacoutos de castanheiros, armados de estadulhos e virotes,
dali não arredavam pé, sem apitar o comboio, nem que caísse o Carmo e a Trindade;
os de Mós, de esculcas avançadas a espiar movimentos do inimigo, e de
manganelas e trabucos assestados, eram capazes de atirar pedradas a mais de trezentas
braças. Diziam-se a vanguarda daquela milícia popular e formidolosa.
De
sossego a aflição, aflição a sossego, contemplando, de certo modo e antes que
seja tudo bem diferente, amavios de
bezerra parida, que escoucinha, escoucinha com medo de perder a cria, uma
multiplicidade de hipóteses se nos apresenta, qual formigueiro multicolor como as penas de gaio, tornando-nos irrequietos como levandiscas, saltitantes
como cabritos e ridentes como gralha, ainda que tenhamos percorrido bastas
vezes um par de escadas curvadas que subiam ao primeiro piso como se fossem as
hastes de um bigode decaído.
O
para muitos incrível tempo do desinço dos
meloais e dos melanciais e de outros mabiscos de sazão era compatível com o
sair da procissão em que o Santo António
vai à frente, depois o Santo Estêvão. Vistas assim as coisas, de modo
alargado, ainda que balizadas por certa estreiteza, que mais dará, dar-lhe no toutiço ou no toutiço lhe dar? Em boa
verdade, em terreiro aberto e barulhento quanto mais não seja devido à acção de
uma senhora banda, não é fácil a concentração no principal, fazendo suspeitar se aquelas cândidas e sacras
figuras rezavam orações ou ciciavam censuras. Certamente que o demo não
andava por ali a atacar a figura da frente, a
coalhar-se-lhe na ideia, atazanar-lhe a alma e tirar-lhe o juízo, não
querendo semelhar fruta fendida, cujo
paladar se vai deteriorando à medida que a eiva vai alastrando e a vai
apodrecendo. Num contexto assim e um pouco lá para o meio se não mesmo bem
na rectaguarda, a linha dos cinco
clarinetes dir-se-ia uma galinha e respetivos pintainhos.
Houve
tempos em que as fúrias do Áfrico se
espelhavam desde o chão dando corpo a fantasmas
que pareciam colonizar a sua alma, retirando corpo ao castanheiro de longas torcidas ao dependuro como se uma gaivota que tentava pousar no tejadilho
assim improvisado se arvorasse a truanices
de serão, qual guarda-freio que assistisse à composição a enveredar por uma linha colateral e marginal sem ter a
certeza do que estava a fazer.
Chulipa
na massa do calabre é que não deve
ser, nem com o pé, até por que a passagem
de nível com guarda, que ia atravessar, estava cortada pela manifestação e
aí nem pé nem mão, enquanto algumas
carruagens deambulavam por uma linha religiosa, talvez cega, talvez perdida,
todos não pintainhos, todos muito
quentinhos em redor da fornalha do comboio protector. Dão-se nomes, mas que
importa? Aliás o nome geral é um nome em si, o senhor Sicrano, fundamentalmente renitente quando se põe a
hipótese de atravessar as carruagens,
subir à máquina, sim, ai daquele que
não cumprisse os deveres para com o Comboio.
No mais ermo dos locais à
superfície da terra não faltam formas de vida.
Onde se pensa que não há movimento,
afinal tudo mexe.
Tira partido do veneno que o
envolve.
Que nenhum livro fique por escrever.
Sim,
claro. Muitos impressionam pelo rigor, pela singeleza e todavia passam sem
deixarem grandes marcas. Basta pensar em contra-ciclos que alberguem,
paradoxalmente, o ramal do facilitismo
e, por outro lado ou talvez não, o Novo-Rico da Silva.
Finalmente Karl Marx! Finalmente
pão para todos!
É caso para escrever: “Abaixo a
superabundância!”
Porque em tais ambientes o
importante é camuflar a realidade. Fazer de conta, como as crianças.
Tudo
isto se dá sem recurso visível a um grande mestre-de-cerimónias
do Grande Circo Ocidental (…), sem palhaços, sem a ingenuidade das
crianças, sem malabaristas nem trapezistas que arriscassem a vida, sem crenças
num outro mundo. Só a jaula do homo pouco sapiens, encurralado e dominado por
ele próprio, ocupava a pista. Ocupava e ocupa. Em boa parte, o conhecimento, ou a falta dele, tornou-se
perigoso, será a conclusão deste ponto.
Ninguém é livre se estiver preso à
obediência a um professor, a um regime, a uma religião.
Estava aquela acácia, mesmo no meio
do caminho, para ser impossível passar sem ser vista.
Não
assestemos, por nossa parte, a crítica, porquanto não é isso que o autor faz,
antes sugere uma escola que diríamos nova se o conceito não fosse já ele mesmo
velho. Nesta escola os valores que contam
são imateriais: das alegorias, dos arquétipos, da simbologia, da história… A
simbologia?, perguntarão alguns. Sim, os símbolos, já esquecidos, que nos
guiaram no início do caminho, eles são como rochas que afloram nos montes, eles
trazem à superfície, ao consciente, os arquétipos comuns, eles dão-nos a noção do
caminho feito e a fazer, do ideal a perseguir (…), não haverá
condicionamentos, gurus ou pregadores. (…). O telhado deste caminho-escola é a sociedade.
Escuta o coração, não percas a
faculdade de pensar.
Carimbar a caderneta é também um
sinal de descanso.
Ao
serão fazíamos defumadouros de palha centeia para combater as frieiras e ainda
sem sabermos que milhares de peregrinos
afectados pelo “Fogo de Santo Antão”, uma enfermidade causada pela ingestão de
um fungo, o ergot, que cresce no centeio e provoca uma espécie de gangrena nas
extremidades do corpo e que essa palha, que por certo também conheceu
Cristo, era susceptível de albergar uma das variantes do Diabo. Não façamos
aqui a ponte, mantenhamos antes as margens cada uma no seu sítio, ainda que as
pontes sejam a centralidade de todo o
caminho. (…). As pontes são assim,
surgem-nos quando menos esperamos, surgem pelo trabalho, pelo silêncio, pela
descida em nós mesmos. É no silêncio que as ideias nascem, amadurecem e ganham
forma. É no silêncio que se talham pedras e se erguem catedrais.
Trabalho,
tripalium, lembra um inquirir. Façam um
pequeno esforço mental, imaginem o homem sem trabalho, talvez nos tempos que
correm não seja difícil, mas coloquem as coisas noutra dimensão.
Para
que o trabalho liberte é preciso gostar do que se faz, o que não inibe
necessariamente a presença de um transformador
de consciências, um torniquete benigno que não seja estranho ao efeito borboleta. Porém, as notícias importantes devem ser captadas
no vento. Sim! É ele que nos dá o verdadeiro sentido do caminho. Nunca procurem
esse sentido no bulício do dia.
O caminho descobre-se dentro de
nós, quer se faça de bicicleta, a pé ou a cavalo. Seja ele qual for, nenhum
caminho é iluminado na totalidade. A fórmula da sapiência é estar sempre em
movimento.
Se
na frescura das primeiras águas do
outono, inçavam sanchas, a vitela dos pinhais, disponíveis para um viajante de floresta não solitário (ainda que
em muitos pontos só), absorvendo o Tu,
que verdadeiramente nasces todos os dias, lá para os lados da Serra do
Reboredo, que ficava à sua mão esquerda,
vista dali mais parecia um simples monte. Prolongava-se longitudinalmente ao
olhar e acabava por não dar a noção do longo e robusto torso que possuía. Mais
parecia a imagem do Cabeço da Mua que ficava do outro lado e semelhava ser o
seu reflexo. Não sei se era o cabeço a querer agigantar-se se a serra a querer
amesquinhar-se.
Há muitas formas de escravidão. Até
escravo de si próprio se pode ser.
Foi aquele ladrão… não fui eu, foi
ele, só pode ter sido ele.
A
voz que assim fala tem atributos próprios e elegíveis para o rol dos autores,
já naquela época, admitindo-se que talvez
se possa dizer que ainda não conhecia a existência de mundos sobrepostos.
Ligados uns aos outros por elementos racionalmente incompreensíveis e uma
vez que, frequentemente, o debrum se
apresentava todo ele plasmado no gradeado
do castelo, figurando gente que
ali perto, por sua vez, esperava a
audiência de dissensão e de julgamento que em boa verdade não o é em face
da lhaneza das perguntas.
Que profissões conhecia? Pastor e
lavrador. Só conhecia duas, embora com variantes.
Nas vagas dos montes me enlevo/ Nas
fragas vejo justiça/ No pó dos caminhos me perco/ nos homens encontro cobiça (…)
Ó ladeiras, ó vales que daqui
abarco/ Ó ribeiras onde me acalmo./ Adeus! Nas costas do vento embarco.
A
tradição que persiste encarna num João
Caramês… cabeça descaída… permanente mudez… semblante… certa satisfação que ainda
assim e por uma razão maior se afasta ou distingue da chusma de labrostes que cobria o terreiro e que hoje já não cobre
mas pelas más razões, sim, que o estômago
pedia trabalho e houve que abalar para outras bandas.
O vento, em rajadas fortes,
fustigava ferozmente todos, sem exceção nem preconceitos, sem distinção de
classes nem religião
Todos os tilintares de espada,
vindos do fundo do seu ser, dir-se-ia que do ser da própria
espada, que o autor deixa sempre o caminho aberto para este tipo de
interpretação. Seres que estão em tudo o que nos cerca e não nos cerca,
formando páginas, o ábaco das suas
existências.
Já era noite quando entraram na
cidade. Os candeeiros de gás já tinham sido acesos.
Era um corrupio de gente esfomeada
para agarrar um codorno de pão empedernido ou uma escudela de caldo que mais
parecia vianda para porcos
Embutido num recanto da parede
ficava o balde das necessidades fisiológicas.
É
a guerra. A prisão. A ânsia de libertação. Estamos já muito para além da
liberdade. Ou esperando, sem pressas, esse momento redentor.
Sinto tanto frio, a escuridão é tão
solitária, libertem-me. Deixem-me regressar às minhas colinas tempestuosas.
Deixem-me lavar a alma nas águas límpidas dos ribeiros. Deixem-me refrescar o
fogo da minha existência à sombra dos choupos. Libertem-me! Matem-me!
Não
deixa de ser curiosos que haja como que uma premonição de interesse geral: também ele, preso n.º 44 (editado em abril de 2013). Claro que
não há ninguém que não pense tolices e
tenha tendência a reformular o mapa da
cidade desconhecida/ frágil madrugada de mim.
Incubus
Succubus
O velho castanheiro não lhe trazia
nenhuma proteção.
Sempre
se precisará de ajuda, quanto mais não seja da medicina, ainda que por vezes
nos queira aliviar, nunca saberemos bem e completamente o quê, a partir de um tom cruel e caridoso que ficará sempre
reverberando nas mentes daqueles
desafortunados, vítimas, a arder em febre, em que habitavam ogres gigantes, viscosas serpentes que não havia meio de
dispersarem a ponto de se poderem considerar ausentes perante um teatro bem
mobilado, aparentemente, por artefactos
de cirurgia, a semelhar uma oficina de carpintaria, com nomes e
principiando em cabos que davam bem a dimensão
da dor e do sofrimento.
Já ninguém o reconhecia pelo
próprio nome, desde esse tempo passou a ser alcunhado (…).
Ele não se importava, quando ouvia esse apodo assomava-lhe um sorriso aos lábios
e desaparecia na esquina do edifício da Cruz Vermelha, onde agora recuperava.
Viver nesse mundo, por momentos,
pareceu-lhe ser a terra do arco-íris, a terra da felicidade.
Sonhar
(é) procurar a substância do ser.
Segue pela Avenida dos
Despreocupados, a Estrada dos Crentes, mas não desenterres as frustrações, as
incompreensões de ti e dos outros, os sonhos impossíveis, não exumes os cacos
frios do passado.
Esperou encontrar uma gota de água
naquele mundo que lhe parecia seco mas coerente. Uma gota de orvalho que fosse.
O
autor ergue-se a partir de um peso que carrega, pode ser lã, pode ser chumbo,
considerando volume equiparável.
Sinto
que não tenho/ nada para dizer…
Lá,
onde a razão não impera. Lá, onde o desgaste físico dá lugar à consciência da
inconsciência. Lá, onde o desgaste psicológico dá lugar à loucura saborosa. Lá,
onde os sonhos são nuvens, que se tocam e derrubam paredes.
Creio
que posso afirmar que desconheço o ócio, até mesmo nos momentos de recolhimento.
Falemos
por ele e através dele, sem ofensa para ninguém, nem para a turbamulta ou o que
lhe possamos chamar. Diga-se que fugiu da
terra natal para ficar em linha, mas nunca ficou. Nunca encontrou esse
alinhamento. Nunca o encontrou porque o único alinhamento que encontrava era o
alinhamento de humanos em torno de chefes sem ideias, sem conceitos
sustentáveis. É grave. Gravidade essa
que nos leva ao nosso abismo, como se fosse uma atracção perigosa, mas que se
ambiciona conhecer e da qual não se consegue sair.
Às vezes procurava os nós, os
atilhos daquela embalagem, e apenas encontrava resquícios de o grande Nó Górdio
que o Tempo atou, que nenhuma espada e nenhum Alexandre consegue cortar.
Provido
do saco das palavras que levava a
tiracolo e onde, de vez em quando, metia a mão para as libertar, sair (sem
querer?) do imenso túnel de palavras a
fim de alcançar (abraçar?) as pessoas, conhecê-las, saltar a aporia, resolver a
equação nem que tenha de pedir ajuda.
As pessoas que não conheço são
sempre simpáticas comigo. (…) Aliás, todos são simpáticos,
conhecidos e não conhecidos, mas não me ouvem e, depois, ainda para complicar
mais, tudo o que dizem não me interessa.
As areias do tempo são finas –
respondeu ele, virando-lhe as costas
Estava a apontar-lhe a Rua do
Torno. Aquela que tudo molda à sua imagem e semelhança.
Riu-se quando a viu. Nem queria
acreditar. A noite do outro dia.
A realidade não é tangível.
Caminhou cinquenta anos apenas numa
noite
A odisseia continua pela caverna
subterrânea, por veredas
por precipícios
por escuridões
por tempestades
De mãos e pés nus
Como quem segue a linha branca que
delimita a estrada em dia de nevoeiro
Havia
uma estrada. Há um caminho. O tempo era
cada vez mais lento na estrada. Paradoxalmente? Sim. No centro do vórtice foi-se desenhando uma figura mítica, sem pai nem
mãe.
A
escrita deste autor surpreende-nos no seu todo. Muitos dirão que está
profundamente marcada pelas vivências de um interior a que ninguém liga e que, por
outro lado, já muitos escavaram, escavaram sem irem além de propostas no alto
balizadas por um Aquilino Ribeiro (que mandou fazer umas botas novas para
melhor fugir da aldeia por causa da perseguição que a cidade de aldeões a dada
altura lhe movera) ou por um Miguel Torga (que sempre se quis cobrir de manto
telúrico afinal tão frágil e condizente com a sua condição de poeta). E todavia
não é bem assim, porquanto cada um, se quer ser além, abarcar em si um universo
sem o pretender transaccionar (no que ao essencial diz respeito) faz de si um
ponto de partida e, sem o saber ou querer saber, um ponto de chegada.
Partir
para outra etapa. Chegar-se para o mesmo campo desenhado pelas estações do ano,
sim, mas principalmente pelo dia e pela noite que em nós aportam. Um campo
aberto. Um campo fechado. Para uns e para outros e outras que o possam ou
queiram atingir, sem o ferir, ferindo-se, porventura, suturando, dando uma
volta sem capa e muito menos de cara tapada. Está vento, é desagradável? Pois
bem, cubramo-nos. Trata-se de movimentar o que estava por de mais parado.
CARLOS SAMBADE