28 novembro 2011

Texto de António Pinelo Tiza no lançamento de Ls Quatro Eibangeilhos


LS QUATRO EIBANGEILHOS
Tradução de Amadeu Ferreira
Apresentação

                Foi-me dada a distinta honra de apresentar em Bragança esta obra que é a tradução para a língua mirandesa dos Quatro Evangelhos – Ls Quatro Eibangeilhos – que é, como sabemos, o livro sagrado basilar do Cristianismo. Um trabalho com a assinatura de Amadeu Ferreira que me convidou para dizer estas duas palavras de apresentação que, embora indigno, aceitei com todo o gosto e agradeço. Digo indigno sem falsa modéstia porque, na verdade, não sendo oriundo das Terras de Miranda, não conheço a língua mirandesa com a profundidade que se exige para o efeito. Estou convencido que foi a amizade que nos une desde os primeiros tempos do seminário, que em conjunto frequentámos, até à faculdade onde nos licenciámos em Filosofia. Haveria, mesmo aqui em Bragança, outras pessoas mais bem qualificadas para fazer esta apresentação. Por isso, meu caro Amadeu, muito obrigado por esta honra que me concedeste.
            Amadeu Ferreira dispensa apresentações, aqui em Bragança como em qualquer parte do País, pela obra que tem vindo a realizar em prol da sua língua materna que, em boa verdade, é o Mirandês e não o Português. E não só (veja-se a orelha da contra-capa).
            Quando digo que não conheço o Mirandês estou a lembrar-me da expressão que os mirandeses usam: o mirandês tem que se mamar, o que não aconteceu comigo, salvo algumas palavras que se usavam e usam pelo povo rural em toda esta região do Nordeste. José Leite de Vasconcelos, esse grande vulto da Filologia Mirandesa e Portuguesa, refere, a este propósito: “Toda a fronteira de Trás-os-Montes oferece ao exame do investigador uma notável série de linguagens, que em muitos casos se relacionam umas com as outras por quase insensíveis pontos de transição” (Estudos de Filologia Mirandesa). Parece que esses vocábulos populares nada mais são do que resquícios do antigo Leonês que, tal como o próprio Mirandês, continuam em uso nestas terras de fronteira. Mas isso não é suficiente para que possamos dizer que também aqui se fala este idioma. Bem pelo contrário. Nos nossos tempos de jovens estudantes do seminário, fui uma vez passar uns dias a casa do Amadeu em Sendim. E a verdade é que aquela forma de falar me soava a algo muito estranho. Lembro-me, por exemplo, de sua mãe lhe dizer para se “peinar” (pentear), “que íbamos a cenar”, os “caminos” e tantas outras…
            Mas não será pelo facto de o Português ser para os mirandeses a sua segunda língua que o Amadeu não fez a tradução dos Quatro Evangelhos a partir do Português; ou não fosse o Português, tal como para Fernando Pessoa e para todos nós, a sua Pátria. Disso podem estar seguros. Estou seguro de que ele ama tanto a língua portuguesa quanto a portuguesa. Não foi ele que traduziu a nossa maior obra poética – Os Lusíadas? E haverá obra mais difícil de traduzir do que esta? Sabemo-lo bem desde os tempos em que tínhamos que a interpretar. Mais ainda: escreveu obras em ambas as línguas, como Tempo de Fogo, aliás, La Bouba de la Tenerie, que são uma e a mesma obra, um romance, que não propriamente a tradução do Português para o Mirandês, ou vice-versa. São a mesma obra escrita nas duas línguas. Ou ainda Stória dua Lhéngua i dun Pobo, igualmente nas duas línguas. Haverá no mundo algum outro autor que tenha escrito as suas obras em duas línguas? Talvez haja, mas contar-se-ão pelos dedos e eu não conheço nenhum.
Amadeu traduziu os Evangelhos a partir do Latim – a Vulgata de São Jerónimo – a primeira tradução do Grego (língua em que foram escritos) para a língua franca daquele tempo, a língua do Império Romano a que todos os povos do Mediterrâneo, e não só, pertenciam. A edição é a chamada Nova Vulgata, ratificada pelo Concílio Ecuménico do Vaticano II, reconhecida pelo Papa Paulo VI e promulgada por João Paulo II. Não é, portanto, uma qualquer edição mas sim aquela que está oficialmente reconhecida pela Igreja Católica. Todos estes detalhes de procedimento (que não são detalhes), suponho que nos levam a considerar que Amadeu se recusou categoricamente a ser um tradutor-traidor (il tradutore è un traditore). Suponho, repito, a forma mais adequada de não trair o pensamento dos autores, pensamento que é tão somente a base da doutrina cristã, era ir às fontes mais recuadas e acessíveis e, ao mesmo tempo, reconhecidas – a versão latina, já que a grega não estaria ali à mão de semear. Além disso, ambos nós estudámos Latim e Grego. De Latim foram uns oito anos, de grego, três. Deste, do Grego, pelo menos em mim pouco resta (já passaram 40 anos). Dos oito anos de Latim, bastante mais ficou. Está aqui patente a prova do que afirmo. O Amadeu tem melhor memória e, por isso, tem bem presente o seu conhecimento. Se assim não fosse, não estaríamos agora aqui a apresentar a versão mirandesa dos Quatro Evangelhos. Ou estaríamos – uma tradução a partir do Português – correndo o risco de termos, perante nós, um traidor do pensamento dos quatro evangelistas.
Não basta ter conhecimento da língua para se ser um bom tradutor. É necessário saber da matéria, do objecto intrínseco da obra, que é como quem diz, da sua correcta interpretação. Só então se está preparado para escolher as palavras, as expressões adequadas. Que o pensamento do autor seja devidamente expresso. Ora, o Amadeu sabe da matéria em questão. Ambos estudámos os Evangelhos, numa cadeira designada Sagrada Escritura que, por ser o que mais interessava, incidia fundamentalmente no Novo Testamento. Já nessa altura, escrevíamos artigos numa revista, que era dos alunos, intitulada RADAR (cuja colecção pretendemos agora recuperar, mas só conseguimos ainda um número), sobre esta e outras disciplinas teológicas. Posso dizer que, nos estudos que publicávamos, exprimíamos ideias novas e avançados, que vinham na sequência da abertura levada a cabo pelo Concílio do Vaticano II.
Voltando ao Mirandês, convém acrescentar que, mantendo esta língua em uso palavras ditas “antigas”, está mais próxima do Latim do que o Português. Cito Leite de Vasconcelos: “Dizia ele [o seu amigo Branco de Castro]: - “Isto é uma gíria de pastores, uma fala charra, não tem regras, nem normas!”. Mas, quando eu lhe mostrava que as correspondências dela com o Latim eram certas, que a conjugação seguia com ordem, - ele pasmava, e admirava-se que entre os cabanhaes de Genísio, e em meio dos hortos de Ifanes se pudesse ter feito cousa tão regular como era a língua que os velhos cabreiros lhe haviam ensinado em pequeno. E também se entusiasmava, e começava comigo a venerar esta deserdada e perdida filha do Latim” (p. 5).
A título exemplificativo, vejamos então uma passagem do Evangelho de João.
             1 Iesus ergo ante sex dies Paschae venit Bethaniam, ubi erat Lazarus, quem suscitavit a mortuis Iesus. 2 Fecerunt ergo ei cenam ibi, et Martha ministrabat, Lazarus vero unus erat ex discumbentibus cum eo.
3 Maria ergo accepit libram unguenti nardi puri, pretiosi, et unxit pedes Iesu et extersit capillis suis pedes eius; domus autem impleta est ex odore unguenti.
4 Dixit autem Iudas Iscariotes, unus ex discipulis eius, qui erat eum traditurus:
5 “ Quare hoc unguentum non veniit trecentis denariis et datum est egenis? ”.
6 Dixit autem hoc, non quia de egenis pertinebat ad eum, sed quia fur erat et, loculos habens, ea, quae mittebantur, portabat.
7 Dixit ergo Iesus: “Sine illam, ut in diem sepulturae meae servet illud.
8 Pauperes enim semper habetis vobiscum, me autem non semper habetis ”.
(João, 12, 1-8).
            1 Seis dias antes da Páscoa, Jesus foi a Betânia, onde estava Lázaro, o que falecera e a quem Jesus ressuscitara dos mortos. 2 Ofereceram-lhe uma ceia. Marta servia e Lázaro era um dos que estavam à mesa com Ele. 3 Então Maria, tomando uma libra de perfume de nardo puro, de alto preço, ungiu os pés de Jesus, e enxugou-os com os cabelos; e a casa encheu-se com o cheiro do perfume. 4 Então um dos Seus discípulos, Judas Escariotes, filho de Simão, aquele que O havia de entregar, disse: 5 “Porque não se vendeu este perfume por trezentos denários e não se deu aos pobres”? 6 Disse isto, não pelo cuidado que tivesse dos pobres, mas porque era ladrão e, como tinha a bolsa, tirava o que nela se metia. 7 Respondeu Jesus: “Deixai-a, ela tinha-o guardado para o dia da Minha sepultura. 8 Pobres, sempre os tereis convosco; mas a Mim, nem sempre Me tereis”.
            1 Seis dies antes la Páscoa, Jasus fui-se até Betánia, adonde moraba Lházaro a quien el rucecitara de ls muortos. 2 Ende ouferecírun-le de cenar. Marta andaba a servir a la mesa i Lházaro era un de ls que stában a la mesa a par de Jasus. 3 Ende Marie, agarrando un arrate de ounguiento de nardo puro, mui caro, ountou-le la pies a Jasus i anxugou-se-los cul pelo deilha. La casa quedou chena cul oulor de l ounguiento. 4 Judas Simon Scariotes, un de ls sous deciplos, aquel que l habie de atraiçonar, dixo: 5 “Porque nun se bendiu este ounguiento por trezientos denheiros i se dou als probes?” 6 El falou assi nó por s’amportar culs probes, mas porque era lhadron. Cumo era el que andaba cula bolsa, roubaba l que se botaba alhá. 7 Dixo-le, anton, Jasus: “Deixa-la an paç, puis l guardou pa l die de l miu antierro. 8 Als probes siempre ls heis de tener cun bós, mas a mi nun me heis de tener siempre”.
Dies (dies)
Cena (cena)
Paç (pax, pacem); cruç (crux, crucem);
Stában (stábat); andaba; roubaba; botaba; ministrabat; había (habebat)…
Dixo (dixit) - disse
Seia (seat) - seja
Eilha (illa) - ela
Cun bós (vobiscum) – convosco
Ámades (ametis, diligatis)
An mi (in me) – comigo
Ámades (ametis, diligatis)
Lhuç – “Caminai anquanto teneis lhuç, para que la scuridon nun bos agarre, puis quien anda a las scuras nun sabe para adonde bai” (João, 12, 35). Sobressai bem nesta citação a abrangência da expressão: nun bos agarre, bem mais próxima do Latim, non vos comprehendat, traduzida em Português “não vos surpreendam”. Agarrar quer dizer envolver, possuir

            Outra citação do Evangelho de João, capítulo 15, esta já em si mesma carregada de uma rara beleza literária e não só – é a elevação do princípio formulado por Jesus ao mais alto grau do humanismo e que deveria estar presente em todas as religiões, para que elas pudessem cumprir o desígnio que lhes cabe e nem sempre acontece. Mas dito em Mirandês parece soar ainda mais íntimo, afectuoso, mais humano.
 

9 Sicut dilexit me Pater, et ego dilexi vos; manete in dilectione mea.
10 Si praecepta mea servaveritis, manebitis in dilectione mea, sicut ego Patris mei praecepta servavi et maneo in eius dilectione.
12 Hoc est praeceptum meum, ut diligatis invicem, sicut dilexi vos;
15 Iam non dico vos servos, quia servus nescit quid facit dominus eius; vos autem dixi amicos, quia omnia, quae audivi a Patre meo, nota feci vobis.
17 Haec mando vobis, ut diligatis invicem.

            9 Tal i cumo l miu Pai me amou, tamien you bos amei a bós; deixai-bos star ne l mil amor. 10 Se guardardes ls mius mandamientos, quedareis ne l mil amor; tal i cumo you guardo ls mandamientos de mil pai i me mantengo ne l amor del. 12 L mil mandamiento ye este, que bos ámades uns als outros, tal i cumo you bos amei. 15 Yá nun bos chamo criados, porque l criado nun sabe l que faç l amo del; mas tengo-bos chamado amigos, porque bos tengo dado a saber todo l que oubi de miu Pai. (…) L que bos mando ye que bos ámades uns als outros”.
                Não se diz que o Mirandês é a língua dos afectos ou, como refere Leite de Vasconcelos, “a língua do lar, do campo e do amor”? (p. 12). Pois bem. É esta a sensação que nos fica ao lermos ou ouvirmos ler (para os que não a sabemos falar como deve ser) este basilar mandamento de Cristo e do Cristianismo.
            Suponho que estas duas citações serão suficientes para compreendemos o alcance deste trabalho de tradução dos Quatro Evangelhos – o livro sagrado por excelência do Cristianismo.

Para uma tradução isenta, em relação ao autor, e compreensível para os leitores ou ouvintes, para além das citadas exigências (conhecimentos das línguas e das temáticas em questão), é imprescindível conhecer em profundidade o povo que fala a língua e adoptar as expressões mais adequadas a cada contexto em concreto; apenas dois ou três exemplos:
            “Yá nun bos chamo criados” (João 15, 15). Criados e não servos. O primeiro vocábulo é o mais aceitável em Mirandês e não servos, como aparece na tradução portuguesa. No povo mirandês não se praticava a escravatura para a qual nos remete o termo servo; isso era coisa dos nobres. Este será, portanto, um exemplo de como não basta conhecer a língua e a matéria em causa (a que se traduz), mas também o povo a que se destina, que o Amadeu conhece como ninguém. Por isso, aplica exactamente a terminologia mais compreensível e adequada.
            “Habeis de chorar i quedareis penerosos…” (João, 16, 20), frase traduzida em Português: “Chorareis e lamentar-vos-eis”. “Quedar penerosos”, cheios de pena, provavelmente terá, no povo mirandês, mais intensidade do que o verbo lamentar, usado na tradução portuguesa.
            Outro exemplo: “Tubírun-me senreira sien rezon” (João, 15, 25) – “Odiaram-me sem motivo”. O Amadeu sabe porque usou a palavra senreira em vez de ódio; o mesmo poderemos dizer de rezon, em vez de motivo. Talvez porque aquelas (senreira e rezon) têm mais força, acentuam mais o sentimento e a ideia que se pretendem expressar e, portanto, são as que mais se coadunam a este contexto.
            Outro ainda: “Darei porrada ne l pastor i las canhonas de l ganado ban-se a scapar cada una para sou lhado” (Mateus, 26, 31) – “Ferirei o pastor e as ovelhas do rebanho dispersar-se-ão”. Qual destas duas formas terá mais força, qual será mais incisiva na ideia que se pretende transmitir?

            E por falar em língua de afectos, é gratificante constatar o uso frequente de diminutivos no Mirandês, como forma de expressar a afectividade. Se o Português é muito rico neste recurso linguístico, o Mirandês ainda é muito mais rico. Atendamos a esta citação do Evangelho de João, 16, 16-20:
            16 “Mais un pouquito i nun me bereis; i inda mais outro pouquito i tornareis-me a ber, porque you bou pa l Pai.”
            17 Ende, alguns de ls sous deciplos dezírun uns pa ls outros: “Que quiren dezir estas palabras” “Un pouquito i nun me bereis”; i “inda mais outro pouquito i tornareis-me a ber”; i tamien “porque me bou pa l Pai?” 18 Dezien assi: “L que quier dezir “un pouquito”? Nun sabemos l que stá a decir.”
            19 Jasus dou-se de cuonta que le querien preguntar algo i dixo-le: Preguntais-bos uns als outros subre l que you dixe: Un pouquito i nun me bereis i inda mais outro pouquito i tornareis-me a ber? 20 Lhembrai-bos bien de l que bos digo: Habeis de chorar i quedareis penerosos (…)”
            Toda esta ambiência está carregada de afectividade: Jesus que anuncia que vai para junto de seu Pai, a quem ama, os discípulos que ficaram apreensivos por se darem conta que iriam ficar sem ele, esta forma de não compreenderem ou não quererem compreender, por ser tão doloroso… É a nossa saudade.
             
            A terminar, a questão das traduções anteriores dos Evangelhos, um tema que Amadeu desenvolveu muito bem na sua intervenção em Lisboa, no acto de apresentação desta mesma obra (Blog Studos Mirandeses). Por isso me dispenso de aprofundar a questão e limitar-me-ei a umas breves referências, só mesmo para concluir.
            José Leite de Vasconcelos na obra Estudos de Filologia Mirandesa, refere a tradução feita por Bernardo Fernandes Monteiro, em finais do século XIX, de alguns capítulos do Evangelho de São Lucas e a Primeira Epístola de São Paulo aos Coríntios. Estes textos foram publicados na Revista de Educação e Ensino. Mais tarde, o mesmo Bernardo Monteiro acabou por traduzir os Quatro Evangelhos, que se encontram manuscritos. Desta tradução foram publicados, em 1897, apenas alguns trechos, pela mão de Trindade Coelho (outro amante da língua mirandesa), ao tempo considerada um dialecto, no jornal O Repórter.
            António Maria Mourinho, sacerdote, historiador e mirandês, já nos anos 80 do século passado, traduziu para Mirandês e publicou no Mensageiro de Bragança alguns trechos dos Evangelhos, com objectivos litúrgicos, segundo o próprio Amadeu Ferreira. Ficamos sem saber se chegou a utilizá-los em alguma cerimónia litúrgica. Se o foi, talvez alguém se lembre disso. Seria interessante investigar no terreno, isto é, nas paróquias por onde ele passou.
            Não sei qual teria sido a fonte que serviu de base a estas traduções, se foi o Latim (a Vulgata) ou o Português. O que sabemos é que a Convenção Ortográfica da Língua Mirandesa não tinha sido assinada, o que só veio a acontecer em 1999, um facto decisivo para a sua afirmação e reconhecimento como língua – a nossa segunda língua oficial. Um facto que outras línguas minoritárias invejam por não o terem conseguido, apesar dos esforços que os povos seus falantes têm desenvolvido. Agora, esta obra que hoje aqui nos é apresentada por Amadeu Ferreira tem a garantia de um estudioso competente de ambas as línguas, da fonte fidedigna na qual se fundamentou, da matéria em questão e do conhecimento profundo dos seus principais destinatários – o povo mirandês, ao qual ele pertence.
            Já depois da Convenção, Amadeu Ferreira começa traduzir e publicar trechos dos Evangelhos no Mensageiro de Bragança. Desta feita, sabemos que este trabalho foi realizado com base no texto latino da Vulgata e, obviamente, observando as normas da Convenção, em cuja feitura ele próprio participou.
            Prosseguiu o trabalho iniciado em 2002, para agora o terminar e no-lo apresentar. Pelo meio, como sabemos, escreveu e traduziu as obras de que temos conhecimento. Desde as primeiras traduções, foi preciso esperar mais de um século até que pudéssemos dispor desta obra em Mirandês – o livro sagrado da doutrina cristã.
            É minha convicção de que, assim como a tradução de Os Lusíadas deu um impulso decisivo para a afirmação do Mirandês como língua oficial em Portugal, também a tradução dos Quatro Evangelhos dará o mesmo contributo perante a Igreja e os fiéis católicos mirandeses e portugueses em geral.
            Termino formulando dois votos.
            O primeiro é um repto ao Amadeu – a tradução de todo o Novo Testamento. Digamos que o mais difícil está feito. Agora faltam “apenas” os Actos dos Apóstolos, as cartas às muitas comunidades de cristãos de Paulo, João e Judas (que não o Escariotes, mas o santo) e o Apocalipse de João, esse belíssimo e esotérico livro final.
            O segundo voto. Sendo o Mirandês língua oficial e sendo o Evangelho a Palavra de Deus, pois que passe esta palavra a ser proclamada nesta língua nos actos litúrgicos. O momento parece-me o mais oportuno: um bispo jovem e aberto à modernidade, natural da diocese e, portanto, sensível às idiossincrasias culturais do rebanho que apascenta. Necessitaremos de sacerdotes sabedores desta língua? Por certo. Os que são oriundos das Terras de Miranda, mais ou menos jovens, hão-de dominá-la porque de crianças a aprenderam, mesmo que a não tenham estudado, como agora acontece. Aos restantes, nada mais que pedir-lhes este esforço apostólico.
            Ao Amadeu Ferreira, as minhas homenagens, em meu nome pessoal e, se me é permitido, em nome também da Academia de Letras de Trás-os-Montes.
            Bem hajam.
António A. Pinelo Tiza




21 novembro 2011

Tertúlia Literária


"Escritoras Transmontanas – Luísa Dacosta"


1ª Parte - Animação dramático/poética sobre a autora,
pelo Grupo de Teatro da Associação Bragança Histórica.

2ª Parte -  Vida e obra de Luísa Dacosta, por Maria Hercília Agarez

Biblioteca Municipal de Bragança - 24 de Novembro, 5ª Feira, 21.30
Organização conjunta ALTM / ABH / CMB

Apelamos à participação dos nossos associados.

14 novembro 2011

O Porco de Erimanto

A. M. Pires Cabral recebe, no dia 17, às 17h, no auditório da Escola Secundária Camilo  Castelo Branco, em Vila Nova de Famalicão, o Grande Prémio de Conto Camilo Castelo Branco, atribuído a O Porco de Erimanto.
Iniciativa da Associação Portuguesa de  Escritores, o galardão é apoiado pela Câmara Municipal daquela cidade.
Saudamos, na oportunidade, o também presidente da Assembleia Geral da ALTM. 

13 novembro 2011

AQUI E AGORA ASSUMIR O NORDESTE


   No dia 8 de Novembro, foi apresentada no Grémio Literário de Vila Real, eficientemente dirigido por António Manuel Pires Cabral, uma antologia da sua obra, cuja organização resultou de uma proposta da Academia de Letras de Trás-os-Montes e do trabalho de Isabel Alves e Hercília Agarez. Chamaram-lhe estas AQUI E AGORA ASSUMIR O NORDESTE, por razões explicitadas pela primeira no seu texto de apresentação.
    A obra foi editada pela Âncora Editora, a exemplo do que aconteceu com títulos anteriores do escritor.
  A sessão foi orientada por Elísio Neves, que leu uma eloquente mensagem de Ernesto Rodrigues, presidente da direcção da Academia, que se fez representar por Pinelo Tiza, seu vice-presidente.
    Perante uma numerosa e atenta assistência, as autoras apresentaram a obra, tendo Isabel Alves pondo o enfoque sobretudo na poesia, de que é estudiosa, e Hercília Agarez na prosa, de que é admiradora desde 1983.
    Das intervenções de cada uma apresentam-se os excertos seguintes:


Começo pelas justificações: a pedido da Academia, a ideia de se fazer uma antologia sobre um dos escritores mais singulares da actual literatura portuguesa que, numa coincidência feliz, nasceu e vive em Trás-os-Montes. Para além disso, é alguém cuja obra se aproxima da realidade destas terras - realidade geográfica, botânica e faunística – e dedicou atenção aos homens que a habitam. E muito sinceramente, é disso que se trata: atenção, um olhar intenso e observador, um espírito aberto e largo que confere ao familiar um estatuto de singularidade e importância. Atenção, como se disse não só à geologia, ao solo, às plantas, ao clima, aos animais, mas também (e sobretudo) ao homem : ao seu relacionamento com o mundo natural acima referido, ao seu relacionamento com os outros homens, ao relacionamento consigo mesmo. A obra de Pires Cabral, como a de todos os autores maiores, desenvolve um olhar atento, usa as palavras de forma precisa e cuidada de modo a permirtir-nos, a nósleitores, uma visão do mundo mais clara e nítida. Justifica-se pois que a Academia sublinhe a produção literária deste autor.
Alguns críticos já situaram AMPires Cabral dentro da história da literatura portuguesa: uma voz que se compõe de outras vozes, essas que vão desde o Cancioneiro, à tradição Clássica (como não sentir implicita e explicitamente referências a Camões?), a Torga, A Eugénio de andrade, a António Osório. Alguns críticos alargaram ainda mais o diálogo entre a obra poetica de PC e a de poetas tais como: D.H lawrence, Robert Lowell, Seamus Heaney. Com este último mantém, segundo creio, relações de proximidade (não falo de influência), são duas poéticas que se tocam; Heaney lembra, por exemplo, que Dante, Wordsworth e Auden são homens profundamente  enraízados num lugar particular, tendo sido capazes de articular o sentimento de pertença que nasce da certeza de habitar um espaço preciso e familiar. 
(…) Na última grande entrevista – concedida à revista Ler, 2008,  - o poeta assumiu que o seu primeiro livro, Algures a Nordeste (1974), se revestiu de um processo de afirmação de uma região, através dos seus lugares, das suas pessoas, dos seus costumes, dos seus bichos. E daqui surgiu a ideia de dividir a obra de Pires Cabral em lugares, homens e bichos, pois tal divisão permite que por um lado se acentue o relevo, o perfil de uma paisagem, mas, por outro lado, é uma visão que permite alcançar todo o horizonte, ou seja, a totalidade da sua produção literária. Igualmente, foi nosso propósito realizar uma antologia não para trás-os-montes mas de trás-os-montes para o mundo, ou seja, uma antologia que, ao mesmo tempo que situa o autor num espaço preciso, tornasse claro que a sua visão do mundo, trazendo embora agarrado o chão de onde as palavras crescem, é sobretudo altura, voo, canto universal. Assim sendo, partindo de um lugar, de um saber, o objectivo da antologia éo de acrescentar um sentido à obra já extensa de PC: de a sublinhar, de ilustrar a organicidade e coesão de uma obra que, passando por vários géneros, é no domínio da poesia que mais se tem destacado.
O nosso objectivo - enveredar por uma perspectiva temática era também um risco; mas à imagem do autor, decidimos assumi-lo. Mas assumi-lo justificadamente: veja-se esse texto belíssimo que nós escolhemos como ‘pórtico’, ou seja, como entrada para um reino de Água e Pedra. Aí o autor sublinha o que nos pareceu essencial: “em Trás-os-montes como em nenhuma outra parte homem e lugar soldam-se íntima e prodigiosamente”. E afirmou mais (e com isso nos deu confiança): “Nasci aqui, assisto ao grande espectáculo telúrico e humano de Trás-os-Montes há mais de cinquenta anos e há quase outros tantos que amorosamente cismo nele – credenciais bastantes para ousar uma leitura da identidade complexa, impetuosa, atormentada e excessiva do povo que somos, feita de heroísmos e martírios sem nome.”
Dividimos então a obra em três partes – Lugares, Homens e Bichos – e para cada uma das categorias fomos encontrando (não se tratou de tarefa árdua) textos que as ilustrassem – na poesia, na prosa e nas crónicas. Julgamos que esta escolha reflecte o que de mais fundamental preside à obra de AMPC. Assim, foi nosso propósito distinguir a sua voz poética, a sua capacidade efabulatória e de criação de personagens, a sua muito aguda ironia, que presente embora nos outros dois domínios literários, tem por vezes um campo mais largo na crónica (embora tb aqui se encontrem textos com passagens de grande beleza poética). Assim, em relação aos lugares, por exemplo, decidimos começar pelo poema incontornável da poética de PC: “Nordeste”, para de seguida referir o poema onde se arrica o grito: terra-mater. Estes são do nosso ponto de vista os poemas que cavam o chão, onde de seguida se planta, se colhe o vinho e o centeio, entre o inverno e o verão, numa terra dividida também  entre o cerejo e o castanho. A geografia do poeta tem lugares precisos –a Serra de Bornes, Malta, a Sé de Miranda, o rio Tua, o rio Douro, a Serra do Alvão, Barca de Alba e, como se diz no poema Penedo Durão,’ tudo com Castela/por alvo e testemunha.’
Dos homens, fica a certeza do trabalho duro, da variedade de vivências, do diálogo literário, da atenção aos mais velhos. E sublinho particularmente esses 2 poemas sobre os velhos de Grijó, pois para além de nos fazerem deter sobre uma realidade que é a nossa, mostram a insistência do olhar: um publicado em 1974 e outro em 2009. De notar também que esse olhar se faz em aprofundamento das emoções, refinamento da linguagem, do alargamento da sugestão.
(…)É uma poesia que, tal como outras artes contemporâneas, obedece ao tempo que é o nosso. Já não se pinta figurativamente; depois do Modernismo (depois de Fernando Pessoa), depois de duas Grandes Guerras, depois do avanço tecnológico imenso que entrou na nossa vida e no nosso ritmo, a nossa vida é mais fragmentação e estilhaço do que continuidade; daí a poesia de PC privilegiar a sugestão, a justaposição, o fragmento.
A experiência transmontana surge assim reconfigurada, ou seja, embora encontremos na produção literária de AMPC referências concretas à região – solo, relevo, clima, vegetação, as culturas, os animais, aos homens – é um tras-os-montes reconfigurado que nos surge: sublinhado pela olhar do escritor, acrescentado de uma singularidade que multiplica e intensifica a nossa percepção dessa região.[cf Alto tras-os montes. Estudo geográfico, Vergílio Taborda].
 (…)A academia de letras de Trás-os-Montes, a Hercília e eu tivemos como objectivo sublinhar a importância e a singularidade da obra de PC; que ela é única, testemunham-no os seus textos; da nossa necessidade de arte (em tempo de crise) diz a citação de Perfecto Cuadrado Fernandez com que termino:
“a utilidade da literatura é enorme e múltipla: além de matar a fome, serve para não morrermos nem nos matarmos uns aos outros de tédio e de rotina e redundante sordidez. A literatura – ou se quiserem, a arte em geral – é a coisa mais importante deste mundo, porque pertence o menos possível a este mundo e o mais possível a esse outro mundo onde gostamos de nos imaginar e pelo qual também muitos morreram ou chegaram mesmo a matar-se.A literatura é, portanto, uma terapêutica de acção múltipla (…), que contribui para manter a paz na República, que aumenta o índice de felicidade dos cidadãos e que poupa assim ao erário público somas importantes nos domínios da segurança e saúde”.
Que o leitor possa encontrar na obra aqui apresentada o seu quinhão de bem-estar e que através destes textos sobre a oitava direcção do mundo sinta que pode subir pela minúcia destas palavras à conquista do céu, ou seja, do mundo que é o nosso. (cf.  Quinta do Noval, 39).

Isabel Alves


(…) Da poesia à prosa

    No já referido texto “Água ágil, pedra estável”, Pires Cabral caracteriza magistralmente e com conhecimento de causa este povo nascido e criado numa interioridade que não falta quem associe a atraso social e civilizacional. Incluindo-se com legitimidade nessa gente, recorre a um plural vaidoso e assumido: “NÓS, OS EXCESSIVOS TRASMONTANOS…”
    Excessivos na variedade paisagística de que a orográfica tem a supremacia recatada, em partilha fraterna com veigas, planaltos, rios e ribeiros, somo-lo (incluo-me na lista) em património edificado, em singularidade de alguns usos e costumes que enfrentam, com heroicidade, o peraltismo da civilização, em espírito franco e solidário, em arreigamento a raízes telúricas.
    Talvez por tudo isto e pelo que foi omitido quanto a cantos, recantos e encantos da nossa geografia física e humana, somos, além disso, excessivos em riqueza cultural, nomeadamente literária. Estamos a pensar em vultos como o Pe. Manuel da Nóbrega, Trindade Coelho, Abade de Baçal, Guerra Junqueiro, João de Araújo Correia, Teixeira de Pascoaes, Miguel Torga e tantos outros de menor projecção, mas representantes dignos do nosso espaço como Campos Monteiro, Pina de Morais, Domingos Monteiro, Fausto José Teixeira.
    É consensual considerar A. M. Pires Cabral o maior escritor transmontano vivo. Decorre esse consenso da pluralidade, qualidade e quantidade da sua obra. Embora ponha um toque de literariedade em tudo o que escreve, vaza o seu talento de escrita na poesia (“o recheio dos seus dias”), no conto, no romance, no ensaio, na crónica, no texto dramático e até no conto infantil. Ele é um incansável vigilante da palavra, parece tratá-la, como fez Eugénio de Andrade, “como cristal” e gostar de “desfolhá-la, pétala a pétala”, como Luísa Dacosta.
    Apesar da sua opção de residência, (“onde se pensa que só a ignorância retrógrada domina”, no dizer do poeta e ensaísta duriense Joaquim Manuel Magalhães), ciente das restrições inerentes a uma interioridade madrasta, conseguiu, o que é assinalável, impor-se no panorama das letras nacionais, sobretudo a partir de 1983, data do Prémio que lhe foi atribuído pelo romance Sancirilo. A esse se seguiram o Prémio D. Dinis, 2006, o Grande Prémio da Literatura DST, 2008, o Prémio de Poesia Luis Miguel Nava, 2009, o Prémio de Poesia do Pen Clube, 2009 e o Grande Prémio do Conto Camilo Castelo Branco. 2010, da APE.
    Numa longa entrevista/reportagem de Outubro de 2008 da revista LER que na capa chama a atenção para “A. M. Pires Cabral, um poeta no meio das montanhas”, além de patentear a sua habitual fotogenia, o próprio fala da sua obra, com realce para a poesia, respondendo com frontalidade a perguntas feitas, de molde a ajudar o leitor a melhor interpretar as suas opções vivenciais e estéticas. Quando lhe perguntam se há uma literatura transmontana, responde:
“Há, quanto mais não seja de um ponto de vista geográfico. Mas é mais do que isso. A minha, em muitos livros que escrevi, é claramente transmontana na medida em que vai buscar a matéria a Trás-os-Montes, às pessoas, aos usos, aos costumes, às terras.”
(…) Explicado que foi por Isabel Alves o critério da organização desta antologia, cumpre-me referir o que presidiu à selecção dos textos em prosa, quer se trate de romances, quer de crónicas. Sendo o primeiro a subordinação temática ao título e à estrutura da obra, é de registar o carácter autónomo de cada excerto que permite ao leitor apreciá-lo desintegrado do seu corpus. Poderá ele, assim, degustar a limpidez e sobriedade da escrita, a adequação dos registos, o pormenor descritivo, o rigor da captação de um real/rural (físico e humano), a exaltação telúrica, a conjugação perfeita do erudito com o popular, o sentido de humor, a riqueza da linguagem e do estilo.
(…)
    O nosso poeta assume, na referida entrevista: “Eu sou muito adepto da literatura legível”. Mais uma afinidade com Miguel Torga que regista no Diário XIV em entrada de Abril de 1984:
    “ A entronização dos escritores, agora faz-se pela negativa. Quanto menos legíveis, melhor. Acovardada ou cúmplice, a crítica jura e bate o pé que sim, que são obras-primas esses trambolhos que vão atulhando as montras. Autores e promotores esquecem-se apenas de um pormenor: que a propaganda ruidosa, que violenta a boa fé do leitor de hoje, já não poderá enganar a curiosidade amanhã. É mesmo esse o encanto do futuro: nenhum dos seus juízos ser motivado pela agressão publicitária do presente. (…)”
    Antologia significa etimologicamente colheita de flores, florilégio. Tem também o sentido de colecção de textos escolhidos de um ou mais autores. Interessante analogia, bem a propósito da que estamos hoje a apresentar. Felizmente adoptámos o critério temático e não o da qualidade e, mesmo assim, Deus sabe quão difícil foi a tarefa. Se tivéssemos tido de escolher o melhor, não nos restaria outra alternativa que não fosse a compilação da obra completa…
    E dizendo isto, passo a uma outra citação, não vão os ouvintes pensar que só leio Miguel Torga… Ouçamos Fernando Pessoa:
    “Algumas obras morrem porque nada valem; estas, por morrerem logo, são natimortas. Outras têm o dia breve que lhes confere a sua expressão de um estado de espírito passageiro ou de uma moda da sociedade; morrem na infância. Outras, de maior escopo, coexistem com a época inteira do país em cuja língua foram escritas, e, passada essa época, elas também passam; morrem na puberdade da fama e não alcançam mais do que a adolescência na vida perene da glória. Outras ainda, como exprimem coisas fundamentais da mentalidade do seu país, ou da civilização a que ele pertence, duram tanto quanto dura aquela civilização; essas alcançam a idade adulta da glória universal. Mas outras duram além da civilização cujos sentimentos expressam.” Espero que seja este último o seu caso.

   E, “aqui e agora, assumindo o nordeste”, com uma autoridade advinda da co-autoria deste trabalho, lhe ordeno que continue a escrever, que não deixe secar essa torrente de inspiração límpida e transbordante.
   Num tempo de trigais pseudo-literários inçados de joio, você cresce, qual espiga saudável e promissora, e nós cá estamos ávidos de lhe apanhar os grãos
  
M. Hercília Agarez

HISTÓRIAS QUE O POVO TECE – CONTOS DO MARÃO de Hercília Agarez


    Realizou-se no passado dia 4, em Vila Real, a sessão de lançamento do primeiro livro de ficção de Maria Hercília Agarez,, que publicou, em 2001, A BRINCAR QUE O DIGAS, Crónicas, e MIGUEL TORGA; A FORÇA DAS RAÍZES, ensaio, em 2007. O evento teve lugar na Escola Secundária Camilo Castelo Branco, onde a autora leccionou, e a apresentação coube a Ana Paula Fortuna, sua colega de grupo e de afectos.
    Após ter passado imagens da fadista Marisa a cantar um fado em que fala do povo, protagonista da maioria dos contos da colectânea, a apresentadora focou os seus aspectos mais relevantes, tendo destacado o que a seguir se transcreve:

Há uma música do povo,/ Nem sei dizer se é um fado / Que ouvindo-a há um ritmo novo / No ser que tenho guardado. Estes são versos deste belíssimo fado entoado por Mariza e que são da autoria do nosso querido poeta Fernando Pessoa. Fala-nos do povo, da música, do ritmo novo que esta imprime ao ser que todos guardamos na memória. Que relação com este livro? Toda. Primeiro este livro cheira e sabe a povo, tem a sua melodia. Em segundo lugar, se atentarmos no título da obra, somos imediatamente transportados para o poema do insigne poeta Fernando Pessoa O Menino de sua mãe, mais precisamente para o verso grafado entre parêntesis (Malhas que o império tece). E então? Histórias que o povo tece, histórias construídas malha a malha pela inteligência do narrador que ora se revela em comentários bem-humorados, irónicos ou afectuosos, ora se esconde, dando ênfase às personagens. Do império nada mais resta que o povo e a sua língua que, segundo o mesmo poeta, é a nossa pátria.
(…)Tenho esperança que o registo escrito destes contos permitam a alguém futuramente reconstituir o que pouco a pouco está a ser destruído e que estes possam constituir memória deste Povo e desta Pátria desaparecidos no combate dos números, essa terceira guerra mundial de que ninguém parece aperceber-se. Por isso os livros são histórias e também História e, consequentemente memória.
(…) Foi com o povo e com a tradição oral que tudo começou. Era à lareira que se ouviam as histórias que os diferentes membros da família contavam, revezando-se na tarefa para não tornar monótonos os serões. Contudo, existiram sempre os exímios contadores de histórias que agregavam à sua volta toda a gente, pelo toque especial que conferiam às suas narrativas, interagindo com os ouvintes sequiosos das suas palavras. Esta é a experiência que vivenciamos, quando lemos Histórias que o povo tece de Hercília Agarez. A autora partilha connosco quinze histórias na sua maioria divertidas, temperadas com o humor e espírito crítico que lhe são característicos.
A literatura de tradição oral viveu destes episódios narrados de geração em geração, contados pelos mais velhos aos mais novos que, depois, por sua vez, se encarregavam da transmissão da sua herança.
(…) Divaguei talvez um pouco… Ou talvez não, se pensarmos que o livro que estamos a conhecer é fiel depositário de memórias e um interessante tributo à literatura de tradição oral. Dirão talvez neste momento: mas ela ainda não falou do livro…
Falei, falei. Falei de gente jovem que parte à procura de oportunidades, tema aflorado nos contos A licença de caça e A Tia Ana Mocha e o euro, tratado mais largamente em O Padre da Penana pessoa do Zeferino, o “portuga” de fato e sapatos claros, moreno de pele, de trejeitos amaneirados, dois dentes de ouro, indício de uma riqueza suada em terras do samba e dos coqueiros e deliciosamente conseguido nesta passagem de História de um violino:
A Preciosa tinha ido para a Suíça com o homem, o Ilídio da tia Zefa. Por lá se enraizaram, lá lhe nasceram os três filhos, ganharam bom dinheiro a trabalhar numa fábrica de relógios e da aldeia nem sombra de saudade. Vinham aí passar uns míseros quinze dias de dois em dois anos e estavam tão mortos pelo dia da partida como a mãe por os ver pelas costas.
Aquela canalha estrangeira não a sentia como sua. Daquela algaraviada que falavam, não entendia patavina e, desconfiada, pensava que estavam a fazer pouco dela, das roupas humildes, do poupo, do avental, das socas e da maneira de ajeitar o lenço na cabeça.
Um dia perdeu a paciência. Os dois netos mais miúdos desataram a abrir as goelas como se estivessem a esfolá-los. Guinchavam ao desafio e aquela gritaria tinha vindo para ficar.
Não se conteve:
– Carago! Rais partam nos fedelhos! Ao menos a berrar falais todos a mesma língua…
 (…) Outros temas poderiam ser referidos, todos eles trabalhados com a mestria da autora que sempre lhes imprime o seu cunho pessoal e intransmissível.
A linguagem é sempre especializada: popular na voz do povo, cuidada na voz do narrador, a quem não falta vocabulário específico da vitivinicultura e de outros temas.
O conhecimento neste livro é muito e extremamente proveitoso, não faltando referências à cultura e literatura francesas particularmente caras a todos os que são cultos.
O narrador conta as histórias em terceira pessoa num aparente distanciamento, traindo-se, no entanto, no conto Xanica: Dos Pergaminhos aos afectos precisamente pelos afectos que exigem uma primeira pessoa na recepção de uma gata que se estava nas tintas para os pergaminhos aristocráticos, optando pelo fofo dos regaços e pelas carícias da plebe.
Atente-se, entre muitos outros aspectos de destaque, no pitoresco dos nomes desta gente com quem terão de conviver na leitura desta obra: do lado dos pergaminhos, a Menina Benvinda do Céu Pureza da Cunha, Senhora D. Leogevilda Boaventura de Castro Noronha, Menina Cândida Inocência do Espírito Santo, Senhora D. Florência Augusta Mendes Alvarenga, Senhora D.Piedade da Purificação Trindade Palmela, Senhora D. Hermenegilda dos Anjos Silvestre, esposa do Dr. Acácio Tiradentes Silvestre (por mero acaso médico odontologista) e, do lado do povo, Manel Hortelão, Quinhas da Eira, ti Zé da Mula, Artur Pastor, Ana Pinta, Micas Tecedeira, Rosa Correcha, Berta do Arnesto,Rodas Baixas, Tonha Pinguinhas, Chico da Venda, Rita Ratada, Bento Moleiro, Rufina Parreca, Teresa Fazminga, Zé das Iscas, António Grilo, Marcelino da Quelha Torta, Zé da Poda, Júlio da Manca, Preciosa Nabiça, Terêncio da Mestra,Francisca do Vi-ou-Racha, Jeremias Bigodes, Afonso da Biquinha, Arlindo Zarolho, Berta Coruja, entre outros.
Não sei se esta é uma guerra de classes, nem quem sai vencedor, mas nestas coisas há sempre um equilíbrio, até na rivalidade entre aldeias que aparece num aparte do narrador no conto Escrever direito por linhas tortas:

[A propósito desta aldeia, próxima de Vila Real, na estrada para Murça, não resiste o narrador a contar um episódio bur­lesco. Famosa pelo seu cruzeiro e, sobretudo, pela sua fonte romana, causava a inveja aos de Merouços e de Alvites que, para arreliar os habitantes, lhes diziam: “Sanguinhedo é terra de putedo.” A resposta à letra era difícil, por dificuldades rimáticas, pelo que se limitavam a mandar os vizinhos àquela terra escrita em letra minúscula e para onde são tantos os mandados como para o melhor destino turístico…]
À boa maneira do povo…
Resta-me terminar, com uma citação de Maquiavel: Para bem conhecer a natureza dos povos, é necessário ser príncipe, e para bem conhecer a dos príncipes, é necessário pertencer ao povo.
Boas leituras!

Ana Paula Fortuna

A finalizar, Hercília Agarez apoiou as suas palavras num powerpoint em que apresentou marcas resistentes de uma ruralidade em vias de extinção e por ela captadas em aldeias referidas nas suas narrativas.