13 novembro 2011

AQUI E AGORA ASSUMIR O NORDESTE


   No dia 8 de Novembro, foi apresentada no Grémio Literário de Vila Real, eficientemente dirigido por António Manuel Pires Cabral, uma antologia da sua obra, cuja organização resultou de uma proposta da Academia de Letras de Trás-os-Montes e do trabalho de Isabel Alves e Hercília Agarez. Chamaram-lhe estas AQUI E AGORA ASSUMIR O NORDESTE, por razões explicitadas pela primeira no seu texto de apresentação.
    A obra foi editada pela Âncora Editora, a exemplo do que aconteceu com títulos anteriores do escritor.
  A sessão foi orientada por Elísio Neves, que leu uma eloquente mensagem de Ernesto Rodrigues, presidente da direcção da Academia, que se fez representar por Pinelo Tiza, seu vice-presidente.
    Perante uma numerosa e atenta assistência, as autoras apresentaram a obra, tendo Isabel Alves pondo o enfoque sobretudo na poesia, de que é estudiosa, e Hercília Agarez na prosa, de que é admiradora desde 1983.
    Das intervenções de cada uma apresentam-se os excertos seguintes:


Começo pelas justificações: a pedido da Academia, a ideia de se fazer uma antologia sobre um dos escritores mais singulares da actual literatura portuguesa que, numa coincidência feliz, nasceu e vive em Trás-os-Montes. Para além disso, é alguém cuja obra se aproxima da realidade destas terras - realidade geográfica, botânica e faunística – e dedicou atenção aos homens que a habitam. E muito sinceramente, é disso que se trata: atenção, um olhar intenso e observador, um espírito aberto e largo que confere ao familiar um estatuto de singularidade e importância. Atenção, como se disse não só à geologia, ao solo, às plantas, ao clima, aos animais, mas também (e sobretudo) ao homem : ao seu relacionamento com o mundo natural acima referido, ao seu relacionamento com os outros homens, ao relacionamento consigo mesmo. A obra de Pires Cabral, como a de todos os autores maiores, desenvolve um olhar atento, usa as palavras de forma precisa e cuidada de modo a permirtir-nos, a nósleitores, uma visão do mundo mais clara e nítida. Justifica-se pois que a Academia sublinhe a produção literária deste autor.
Alguns críticos já situaram AMPires Cabral dentro da história da literatura portuguesa: uma voz que se compõe de outras vozes, essas que vão desde o Cancioneiro, à tradição Clássica (como não sentir implicita e explicitamente referências a Camões?), a Torga, A Eugénio de andrade, a António Osório. Alguns críticos alargaram ainda mais o diálogo entre a obra poetica de PC e a de poetas tais como: D.H lawrence, Robert Lowell, Seamus Heaney. Com este último mantém, segundo creio, relações de proximidade (não falo de influência), são duas poéticas que se tocam; Heaney lembra, por exemplo, que Dante, Wordsworth e Auden são homens profundamente  enraízados num lugar particular, tendo sido capazes de articular o sentimento de pertença que nasce da certeza de habitar um espaço preciso e familiar. 
(…) Na última grande entrevista – concedida à revista Ler, 2008,  - o poeta assumiu que o seu primeiro livro, Algures a Nordeste (1974), se revestiu de um processo de afirmação de uma região, através dos seus lugares, das suas pessoas, dos seus costumes, dos seus bichos. E daqui surgiu a ideia de dividir a obra de Pires Cabral em lugares, homens e bichos, pois tal divisão permite que por um lado se acentue o relevo, o perfil de uma paisagem, mas, por outro lado, é uma visão que permite alcançar todo o horizonte, ou seja, a totalidade da sua produção literária. Igualmente, foi nosso propósito realizar uma antologia não para trás-os-montes mas de trás-os-montes para o mundo, ou seja, uma antologia que, ao mesmo tempo que situa o autor num espaço preciso, tornasse claro que a sua visão do mundo, trazendo embora agarrado o chão de onde as palavras crescem, é sobretudo altura, voo, canto universal. Assim sendo, partindo de um lugar, de um saber, o objectivo da antologia éo de acrescentar um sentido à obra já extensa de PC: de a sublinhar, de ilustrar a organicidade e coesão de uma obra que, passando por vários géneros, é no domínio da poesia que mais se tem destacado.
O nosso objectivo - enveredar por uma perspectiva temática era também um risco; mas à imagem do autor, decidimos assumi-lo. Mas assumi-lo justificadamente: veja-se esse texto belíssimo que nós escolhemos como ‘pórtico’, ou seja, como entrada para um reino de Água e Pedra. Aí o autor sublinha o que nos pareceu essencial: “em Trás-os-montes como em nenhuma outra parte homem e lugar soldam-se íntima e prodigiosamente”. E afirmou mais (e com isso nos deu confiança): “Nasci aqui, assisto ao grande espectáculo telúrico e humano de Trás-os-Montes há mais de cinquenta anos e há quase outros tantos que amorosamente cismo nele – credenciais bastantes para ousar uma leitura da identidade complexa, impetuosa, atormentada e excessiva do povo que somos, feita de heroísmos e martírios sem nome.”
Dividimos então a obra em três partes – Lugares, Homens e Bichos – e para cada uma das categorias fomos encontrando (não se tratou de tarefa árdua) textos que as ilustrassem – na poesia, na prosa e nas crónicas. Julgamos que esta escolha reflecte o que de mais fundamental preside à obra de AMPC. Assim, foi nosso propósito distinguir a sua voz poética, a sua capacidade efabulatória e de criação de personagens, a sua muito aguda ironia, que presente embora nos outros dois domínios literários, tem por vezes um campo mais largo na crónica (embora tb aqui se encontrem textos com passagens de grande beleza poética). Assim, em relação aos lugares, por exemplo, decidimos começar pelo poema incontornável da poética de PC: “Nordeste”, para de seguida referir o poema onde se arrica o grito: terra-mater. Estes são do nosso ponto de vista os poemas que cavam o chão, onde de seguida se planta, se colhe o vinho e o centeio, entre o inverno e o verão, numa terra dividida também  entre o cerejo e o castanho. A geografia do poeta tem lugares precisos –a Serra de Bornes, Malta, a Sé de Miranda, o rio Tua, o rio Douro, a Serra do Alvão, Barca de Alba e, como se diz no poema Penedo Durão,’ tudo com Castela/por alvo e testemunha.’
Dos homens, fica a certeza do trabalho duro, da variedade de vivências, do diálogo literário, da atenção aos mais velhos. E sublinho particularmente esses 2 poemas sobre os velhos de Grijó, pois para além de nos fazerem deter sobre uma realidade que é a nossa, mostram a insistência do olhar: um publicado em 1974 e outro em 2009. De notar também que esse olhar se faz em aprofundamento das emoções, refinamento da linguagem, do alargamento da sugestão.
(…)É uma poesia que, tal como outras artes contemporâneas, obedece ao tempo que é o nosso. Já não se pinta figurativamente; depois do Modernismo (depois de Fernando Pessoa), depois de duas Grandes Guerras, depois do avanço tecnológico imenso que entrou na nossa vida e no nosso ritmo, a nossa vida é mais fragmentação e estilhaço do que continuidade; daí a poesia de PC privilegiar a sugestão, a justaposição, o fragmento.
A experiência transmontana surge assim reconfigurada, ou seja, embora encontremos na produção literária de AMPC referências concretas à região – solo, relevo, clima, vegetação, as culturas, os animais, aos homens – é um tras-os-montes reconfigurado que nos surge: sublinhado pela olhar do escritor, acrescentado de uma singularidade que multiplica e intensifica a nossa percepção dessa região.[cf Alto tras-os montes. Estudo geográfico, Vergílio Taborda].
 (…)A academia de letras de Trás-os-Montes, a Hercília e eu tivemos como objectivo sublinhar a importância e a singularidade da obra de PC; que ela é única, testemunham-no os seus textos; da nossa necessidade de arte (em tempo de crise) diz a citação de Perfecto Cuadrado Fernandez com que termino:
“a utilidade da literatura é enorme e múltipla: além de matar a fome, serve para não morrermos nem nos matarmos uns aos outros de tédio e de rotina e redundante sordidez. A literatura – ou se quiserem, a arte em geral – é a coisa mais importante deste mundo, porque pertence o menos possível a este mundo e o mais possível a esse outro mundo onde gostamos de nos imaginar e pelo qual também muitos morreram ou chegaram mesmo a matar-se.A literatura é, portanto, uma terapêutica de acção múltipla (…), que contribui para manter a paz na República, que aumenta o índice de felicidade dos cidadãos e que poupa assim ao erário público somas importantes nos domínios da segurança e saúde”.
Que o leitor possa encontrar na obra aqui apresentada o seu quinhão de bem-estar e que através destes textos sobre a oitava direcção do mundo sinta que pode subir pela minúcia destas palavras à conquista do céu, ou seja, do mundo que é o nosso. (cf.  Quinta do Noval, 39).

Isabel Alves


(…) Da poesia à prosa

    No já referido texto “Água ágil, pedra estável”, Pires Cabral caracteriza magistralmente e com conhecimento de causa este povo nascido e criado numa interioridade que não falta quem associe a atraso social e civilizacional. Incluindo-se com legitimidade nessa gente, recorre a um plural vaidoso e assumido: “NÓS, OS EXCESSIVOS TRASMONTANOS…”
    Excessivos na variedade paisagística de que a orográfica tem a supremacia recatada, em partilha fraterna com veigas, planaltos, rios e ribeiros, somo-lo (incluo-me na lista) em património edificado, em singularidade de alguns usos e costumes que enfrentam, com heroicidade, o peraltismo da civilização, em espírito franco e solidário, em arreigamento a raízes telúricas.
    Talvez por tudo isto e pelo que foi omitido quanto a cantos, recantos e encantos da nossa geografia física e humana, somos, além disso, excessivos em riqueza cultural, nomeadamente literária. Estamos a pensar em vultos como o Pe. Manuel da Nóbrega, Trindade Coelho, Abade de Baçal, Guerra Junqueiro, João de Araújo Correia, Teixeira de Pascoaes, Miguel Torga e tantos outros de menor projecção, mas representantes dignos do nosso espaço como Campos Monteiro, Pina de Morais, Domingos Monteiro, Fausto José Teixeira.
    É consensual considerar A. M. Pires Cabral o maior escritor transmontano vivo. Decorre esse consenso da pluralidade, qualidade e quantidade da sua obra. Embora ponha um toque de literariedade em tudo o que escreve, vaza o seu talento de escrita na poesia (“o recheio dos seus dias”), no conto, no romance, no ensaio, na crónica, no texto dramático e até no conto infantil. Ele é um incansável vigilante da palavra, parece tratá-la, como fez Eugénio de Andrade, “como cristal” e gostar de “desfolhá-la, pétala a pétala”, como Luísa Dacosta.
    Apesar da sua opção de residência, (“onde se pensa que só a ignorância retrógrada domina”, no dizer do poeta e ensaísta duriense Joaquim Manuel Magalhães), ciente das restrições inerentes a uma interioridade madrasta, conseguiu, o que é assinalável, impor-se no panorama das letras nacionais, sobretudo a partir de 1983, data do Prémio que lhe foi atribuído pelo romance Sancirilo. A esse se seguiram o Prémio D. Dinis, 2006, o Grande Prémio da Literatura DST, 2008, o Prémio de Poesia Luis Miguel Nava, 2009, o Prémio de Poesia do Pen Clube, 2009 e o Grande Prémio do Conto Camilo Castelo Branco. 2010, da APE.
    Numa longa entrevista/reportagem de Outubro de 2008 da revista LER que na capa chama a atenção para “A. M. Pires Cabral, um poeta no meio das montanhas”, além de patentear a sua habitual fotogenia, o próprio fala da sua obra, com realce para a poesia, respondendo com frontalidade a perguntas feitas, de molde a ajudar o leitor a melhor interpretar as suas opções vivenciais e estéticas. Quando lhe perguntam se há uma literatura transmontana, responde:
“Há, quanto mais não seja de um ponto de vista geográfico. Mas é mais do que isso. A minha, em muitos livros que escrevi, é claramente transmontana na medida em que vai buscar a matéria a Trás-os-Montes, às pessoas, aos usos, aos costumes, às terras.”
(…) Explicado que foi por Isabel Alves o critério da organização desta antologia, cumpre-me referir o que presidiu à selecção dos textos em prosa, quer se trate de romances, quer de crónicas. Sendo o primeiro a subordinação temática ao título e à estrutura da obra, é de registar o carácter autónomo de cada excerto que permite ao leitor apreciá-lo desintegrado do seu corpus. Poderá ele, assim, degustar a limpidez e sobriedade da escrita, a adequação dos registos, o pormenor descritivo, o rigor da captação de um real/rural (físico e humano), a exaltação telúrica, a conjugação perfeita do erudito com o popular, o sentido de humor, a riqueza da linguagem e do estilo.
(…)
    O nosso poeta assume, na referida entrevista: “Eu sou muito adepto da literatura legível”. Mais uma afinidade com Miguel Torga que regista no Diário XIV em entrada de Abril de 1984:
    “ A entronização dos escritores, agora faz-se pela negativa. Quanto menos legíveis, melhor. Acovardada ou cúmplice, a crítica jura e bate o pé que sim, que são obras-primas esses trambolhos que vão atulhando as montras. Autores e promotores esquecem-se apenas de um pormenor: que a propaganda ruidosa, que violenta a boa fé do leitor de hoje, já não poderá enganar a curiosidade amanhã. É mesmo esse o encanto do futuro: nenhum dos seus juízos ser motivado pela agressão publicitária do presente. (…)”
    Antologia significa etimologicamente colheita de flores, florilégio. Tem também o sentido de colecção de textos escolhidos de um ou mais autores. Interessante analogia, bem a propósito da que estamos hoje a apresentar. Felizmente adoptámos o critério temático e não o da qualidade e, mesmo assim, Deus sabe quão difícil foi a tarefa. Se tivéssemos tido de escolher o melhor, não nos restaria outra alternativa que não fosse a compilação da obra completa…
    E dizendo isto, passo a uma outra citação, não vão os ouvintes pensar que só leio Miguel Torga… Ouçamos Fernando Pessoa:
    “Algumas obras morrem porque nada valem; estas, por morrerem logo, são natimortas. Outras têm o dia breve que lhes confere a sua expressão de um estado de espírito passageiro ou de uma moda da sociedade; morrem na infância. Outras, de maior escopo, coexistem com a época inteira do país em cuja língua foram escritas, e, passada essa época, elas também passam; morrem na puberdade da fama e não alcançam mais do que a adolescência na vida perene da glória. Outras ainda, como exprimem coisas fundamentais da mentalidade do seu país, ou da civilização a que ele pertence, duram tanto quanto dura aquela civilização; essas alcançam a idade adulta da glória universal. Mas outras duram além da civilização cujos sentimentos expressam.” Espero que seja este último o seu caso.

   E, “aqui e agora, assumindo o nordeste”, com uma autoridade advinda da co-autoria deste trabalho, lhe ordeno que continue a escrever, que não deixe secar essa torrente de inspiração límpida e transbordante.
   Num tempo de trigais pseudo-literários inçados de joio, você cresce, qual espiga saudável e promissora, e nós cá estamos ávidos de lhe apanhar os grãos
  
M. Hercília Agarez

Sem comentários: