25 maio 2015

As Asas da Libelinha, por Hercília Agarez













Prefácio
As Asas da Libelinha: breves pinceladas de luz sobre o quotidiano

Não chegue o dia/ em que eu pense/ não ter nada para aprender, diz-nos Hercília Agarez num dos pequenos poemas que compõem este livro. Como o leitor rapidamente perceberá, embora breves, estas estrofes alojam dentro de si uma larga sabedoria. Por vezes, fazem-nos sorrir, outras vezes reflectir, apresentando-se sempre como guias de um olhar minucioso e atento do mundo que nos rodeia.
Hercília Agarez, com obra publicada no domínio da ficção e do ensaio, escolheu, desta vez, oferecer aos seus leitores uma experiência no campo da poesia. Num registo que vai do poético ao humorístico, neste livro desfilam poemas curtos que, a partir de uma observação directa, e segundo contextos e vivências diversas, abordam essencialmente aspectos do quotidiano. 
A brevidade e a forma dos poemas aproxima-os do haiku, uma estrutura poética que tem a sua origem no Japão, país onde conta com muitos admiradores e praticantes. Os haiku são compostos por 17 sílabas métricas, dispostas em três versos de cinco-sete-cinco sílabas, e têm como tema aspectos da vida quotidiana do Japão, emoldurados pelas estações do ano. O âmago destes poemas é de o fazer crescer uma imagem e ecoar um pensamento num número mínimo de palavras. O efeito das palavras sobre o leitor deve ter a força do trovão e iluminar como a luz do raio. Brevidade e intensidade são, pois, palavras próximas deste tipo de poesia.
Em Portugal, esta forma de labor poético conhece já alguns admiradores e tem já disponivéis algumas obras publicadas. Foram, aliás, alguns desses autores que ajudaram a perceber a complexa mecânica poética do haiku. Ajudaram, também, a perceber que, de qualquer modo, mesmo se não completamente fiéis à métrica original, o que se vai publicando no nosso país tem como objectivo aproximar-se do espírito do haiku. O mais relevante, referem, é ser uma poesia fiel aos cinco sentidos e à observação das coisas que povoam o mundo, sendo que o resultado se deve traduzir numa forma breve e intensa de revelação desse mesmo mundo.
Em As Asas da Libelinha, Hercília Agarez encontra no dia a dia múltiplos motivos para reflexão. Desde apontamentos sobre o mundo natural, os animais e o ser humano, a autora olha o que a rodeia, procurando, muitas vezes, dar leveza àquilo que quase sempre é incómodo — Gentes e cães/ revolvem lixo:/ irmãos de fome. Lado a lado, o leitor encontra poemas de crítica social — Inúteis, os reformados:/ lâmpadas fundidas/ nunca mais dão luz —, de cariz mais pessoal e emotivo — Partiste./ No quintal ficaram/ sonhos soterrados — e com um carácter mais reflexivo — Sorrisos abertos,/ corações fechados:/ hipocrisia. Lado a lado, encontram-se o literal e o alusivo, dialética que emblematiza a essência do discurso poético: das coisas parte-se para o metafórico, para o alargamento do sentido: Urtigas mordentes/ invadem culturas:/ estéril inveja.
Este último poema exemplifica, aliás, uma das características do haiku presente em muitos dos pequenos poemas deste livro: a oposição entre ideias, imagens, sentimentos ou emoções. Essa dialéctica visa provocar o estranhamento e, consequentemente, a surpresa: Trepo à árvore/ e apanho cerejas:/ outra vez menina. Ou seja, esta poesia atesta não só o primor com que o autor escolhe as palavras, como convida o leitor a completar o que por vezes é apenas sugerido. Acima de tudo, Hercília Agarez convida-nos a olhar de novo aquilo que nos é familiar e conhecido. Neste sentido, e próximos de uma visão fenomenológica, aquela que descreve os fenómenos conforme são dados à experiência imediata, estes poemas são o resultado de uma nova abordagem e uma nova visão a vivências que todos conhecemos e já experimentámos. 
Tal como as palavras de Vasco Graça Moura — Sou um mau aluno. / faço um exercício em casa,/ sem contar muito as sílabas —, a autora de As Asas da Libelinha, não contando muito as sílabas, e ancorada em autores portugueses que lhe são queridos, oferece ao leitor um exercício de aproximação à essência do haiku. Ou seja, nestes breves apontamentos poéticos encontramos um entendimento da vida humana como algo essencialmente frágil e lembrando que a solidão, o mistério e a inquietação habitam os dias e as noites de muitos de nós. Na minha opinião, o que de mais forte Hercília Agarez oferece no livro é dar ao leitor a possibilidade da redenção, ou seja, face à solidão, à hipocrisia, ao abandono, a possibilidade de se encontrar — na inocência da infância, no voo da borboleta branca, nas asas da libelinha — o mesmo destino das aves: o infinito. O mesmo é dizer, a autora convida o leitor a habitar um tempo que é o da poesia e que por isso não se deixa escravizar por Cronos, permitindo, antes, ver e ler a vida sob um (breve) rasgo de luz e claridade: Canta a cigarra/ um hino ao presente —/ lição de vida.

Isabel Alves

18 maio 2015

AMADEU FERREIRA, UM CIBO DE TRÁS-OS-MONTES

AMADEU FERREIRA, UM CIBO DE TRÁS-OS-MONTES

    Nunca percebi porque o branco não é a cor da morte, como a cinza ou o silêncio. Branca como uma folha por escrever. Branca como a geada e o gelo.

Fracisco Niebro, in Belheç Velhice




    Nasceu numa aldeia de nome eufónico, feito de sonoridades doces, melodiosas. Sendim. Um recanto de um Trás-os-Montes profundo onde nascem, vivem e morrem gentes conformadas com o isolamento e a dureza de vida, a subsistência conseguida com os magros favores de uma terra sempre a exigir muito suor, muitas costas vergadas, muito manejo de alfaias adjuvantes.
    Amadeu Ferreira tinha de ser poeta. Assim determinava o seu código genético. Que, em contrapartida, lhe reservava um percurso de vida com laivos de alpinismo. Não empurrou sem cessar uma pedra até ao cimo de uma montanha, como Sísifo, porque não desafiou nenhum deus. Ele seguiu o conselho de Miguel Torga.


            Recomeça...
Se puderes,
sem angústia
E sem pressa.

E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro,
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.
  [...]
  "Sísifo" in ANTOLOGIA POÉTICA

    "Com os meus mestres, aprendi a humildade das coisas essenciais." Parece ter sido esse um dos lemas da sua vida. Ele seguiu à risca o conselho de Ricardo Reis - "põe tudo quanto és no mínimo que fazes". Só que, para ele tudo era mais essencial do que acidental - a própria vida, a família, os amigos, as causas defendidas, a escrita, o pensamento. Nele quase tudo era espírito, transcendência.
  Quando o "mal ruim" o surpreendeu, não "entregou os pontos". A sua mente fervilhava de projectos a meio do caminho. Urgia dá-los por terminados, deixá-los dar lugar a outros. Manteve o ânimo, a esperança, a tenacidade, a capacidade de resistir, a arte de iludir os amigos. Encarava equívocos sinais de recuperação como vitórias de mais fracos sobre mais fortes. Trabalhou, por vezes de madrugada, até ao limite imposto pela corrosão de corpo e de espírito.
    Manteve o seu sorriso emboinado mesmo quando eram evidentes os sinais dos tratamentos. Engordou, perdeu cabelo, deformou-se-lhe o rosto esguio donde sobressaia aquele bigodinho de estimação. Nem por isso se escondeu dentro das suas quatro paredes nem impediu que o fotografassem. Estava vivo, embora pressentisse que seria poupado a uma velhice muito temida:

se o vento te empurrar para o beco
da velhice, não tenhas medo:
basta que te respeites até ao fim.

tudo fazemos para esconder a morte
e ainda mais para esconder a velhice....

    Para trás e para longe ficaram o seminário, a construção civil, o emprego em adega corporativa, os estudos de Filosofia e de Letras, primeiro no Porto, depois em Lisboa. Aí acabou por fixar-se. Envolveu-se activamente na política e foi, de raspão, deputado pela UDP. Licenciou-se em Direito e trabalhou em publicidade. Publicou livros. Fez o mestrado, aventurou-se a um doutoramento que o destino não deixou completar. Foi presidente da Associação de Língua Mirandesa na qual tem escrito poesia, conto, histórias infantis, romance. Traduziu escritores latinos, os Lusíadas, os quatro evangelhos, Camões, Pessoa, até Asterix. Publicou milhares de textos em jornais regionais e nacionais e em blogues. No seu mirandês. Exerceu a docência como professor auxiliar convidado na Faculdade de Direito de Lisboa e chegou ao alto cargo de vice-presidente da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários. De vice-presidente passou a presidente da Academia de Letras de Trás-os-Montes. Foi, desde 2004, Comendador da Ordem de Mérito da República Portuguesa. Gostou do ensino. A sua cultura permitiu-lhe ser competente em matérias como a Educação Musical, a Filosofia, o Latim e, como atrás se disse, o Direito. Deu cursos de mirandês: "l mirandés naciu-me i l portués fui ua cunquista" assume. 
    Com Ernesto Rodrigues organizou dois volumes da Antologia A Terra de Duas Línguas, de titulo inequívoco.  Por concluir ficou, hélas, o Dicionário de Mirandés-Pertués. Deve tê-lo levado atravessado na garganta como Torga o sétimo dia da criação do mundo.
    Chegou ao alto como partiu de baixo. Nunca se deslumbrou com o valor que cons- ensualmente lhe foi reconhecido – simples, despretensioso, afável, bom conversador.  Amadeu e Fracisco, duas faces da mesma moeda. O homem e o artista. A mesma simplicidade, a mesma generosidade.
    A lição de vida que nos quis dar foi exemplar e quase sobre-humana. Nunca esquecerei um telefonema que me fez para me dizer que estava melhor, que lhe telefonasse quando quisesse. As gargalhadas tão características não tinham perdido sonoridade. E o ritmo de trabalho, esse, a alegria dos seus dias, só afrouxou quando as faculdades mentais se foram dele despedindo, cobardemente, injustamente.
   Gostava de o ver com a sua boina basca que sabia quando e onde usar. Era ela um  cibo da ruralidade e modéstia de alguém para quem o ninho térreo e a infância pobre foram sempre assumidos como um privilégio - o de ter nascido numa região onde o boi barrosão é adorado como um deus, onde as portas das casas estão sempre abertas, onde, no seu tempo de menino descalço, ainda se  cozia o pão no forno do povo, se representava o Auto da Paixão, as vezeiras obedeciam a qualquer guardador, reinava, enfim, o espírito comunitário.
    Em 2014 foi publicado Norteando, um álbum que é uma obra de artes. Um fotógrafo, Luís Borges, poetizou a natureza nordestina com a sua objectiva: os espaços, as gentes, os bichos. Amadeu "legendou" as imagens numa prosa poética, bem ao seu estilo. Aproveitou para regressar ao seu tempo e ao seu espaço de um passado sempre presente. A propósito da assunção da modéstia das suas origens, escreve em "O voo erótico da madressilva":
     Um dia, teria eu quatro ou cinco anos, a minha mãe trouxe do campo um raminho
de madressilvas que colocou dentro de um copo de esmalte no seu humilde louceiro da cozinha de telha vã: o aroma  possuiu-me  de tal maneira que a madressilva entrou dento de mim para sempre; agora, quando a quero ver, começo por fechar os olhos e chamo o seu odor até que me deixe quase em transe, qual pitonisa em Delfos: é essa a altura de abrir de novo os olhos e seguir a imagem como um sonho erótico: voa leve sobre a parede com os seus falos ao rubro e, à medida que avança, vai explodindo num branco fogo-de-artifício, amarelo depois, com os seus tontos espermatozóides a fecundar o ar com o seu aroma: nada volta a ser igual depois de uma madressilva ter entrado dentro de ti, que até as pedras se esfumam e perde brilho o azul do céu. 
    Amadeu era um homem múltiplo que, à imagem de Fernando Pessoa, teve de se desdobrar em pseudónimos, cada um dos quais correspondente a um tipo de registo literário. Amadeu foi o nome do cidadão multifacetado e multi-dotado e também do artista que o adoptou em Tempo de Fogo, uma estreia tardia na ficção, narrativa de cariz histórico cuja acção decorre em finais do século XVII e que, segundo Teresa Martins Marques, é "um romance de matriz realista e de valores intemporais, ancorado na memória...."
   Guardou Fracisco Niebro essencialmente para a poesia, de que é de destacar a obra publicada em 2012 e intitulada Ars Vivendi Ars Moriendi, um testemunho apaixonante do sentir e do pensar de um homem sensível  e saudoso do seu aconchego afectivo que quase desconhece:

agora, na rua, já só mora uma pessoa
e as casas encostam-se de arrimo entre si.

    Apesar disso a sua matriz sendinense não se lhe descola da pele, não quer, nem pode, escorraçá-la do pensamento:

tocou o sino,
fui num voo à minha terra:
a raiz não voa.

no tear das nuvens,
fios de água tecem o planalto:
tempestade ao longe.

   E também para o conto infantil,  para as traduções. O mirandês foi a sua língua de casa, de família, de amigos miúdos e crescidos. Pela sua preservação e ensino lutou como ninguém, insistindo, sugerindo, movendo influências, andando de terra em terra a evidenciar a importância daquele património imaterial que enriquece o desertificado nordeste transmontano subvalorizado pelos poderes centrais. Se hoje em dia as crianças aprendem nas escolas a língua dos seus avós, esse  é o resultado da sua luta sem desfalecimentos.
    Com outros nomes escreveu e traduziu outras obras. Ele foi Marcus Miranda, ele foi Fonso Roixo. 
    Por escassos dias, não assistiu à sua última publicação: Belleç/Vellice - notável e poético hino ao quotidiano da ruralidade nordestina em meados do século passado -  mas ainda pôde  empunhar outros dos seus trabalhos de paciência cenobítica - Ditos Dezideiros, recolha de provérbios mirandeses com 5.000 entradas e Lhéngua Mirandesa Manifesto em forma de hino. Quantas terão ficado, completas ou incompletas, à espera de uma Âncora  que os  liberte da lei do esquecimento.
   A sua vida dava vários romances, que o digam o realizador e amigo Leonel Brito que gravou mais de trinta horas do seu desfiar de memórias e Teresa Martins Marques que cedo tomou consciência da necessidade de lhe fixar o acidentado e rico percurso numa espécie de biografa, resultante de incontáveis conversas cúmplices em que o narrador se desnuda sem complexos, antes com orgulho de ter saído donde saiu e ter chegado onde chegou. O Fio das Lembrança, da escritora citada, contém uma primeira parte de cariz biográfico e uma segunda onde teve o trabalho incansável e meritório de recolher depoimentos de amigos e textos ensaísticos sobre a sua obra.
     Deixo-vos um conselho do Amadeu em forma de haikai, fácil de fixar. Ele há-de gostar de ser lembrado sem lágrimas:

não coes o sorriso,
    deixa-o sentir em bruto:
peneirada basta a farinha.

Nota 1: todos os poemas apresentados pertencem a Ars Vivendi Ars Moriendi, Âncora Editora, 2012.    
Nota 2: texto publicado na revista ALDRABA de Abril de 2015.

M. Hercília Agarez, Março de 2014

11 maio 2015

ALFÂNDEGA DA FÉ - Apresentação da obra do escritor António Sá Gué, por Norberto Veiga

 A primeira obra publicada pelo escritor António Sá Gué foi “As duas Faces da Moeda” e pode ser encarada, de certa maneira, como a carta de apresentação do autor ao sues leitores, apesar de o escritor não se dirigir a eles, de forma explícita, como é prática corrente nas obras subsequentes.
O romance recupera dois temas que marcaram, de forma significativa, a vida do país e, em especial, a vida dos transmontanos. Num primeiro momento, o leitor vê-se confrontado com o ciclo da emigração clandestina para a Europa, ocorrida nos anos 60 do século passado, onde muitos transmontanos, para fugir à fome, à miséria e à pobreza da terra, empreenderam uma viagem, que foi uma autêntica odisseia, quando a travessia das fronteiras se fazia a pé, pela calada da noite, muitas vezes perdidos, orientando-se apenas pela sua vontade de triunfar na vida.
O segundo, mas não menos importante, refere-se à Guerra Colonial que assolou Portugal na década de sessenta do século XX. Para se cumprir a ordem de Salazar, “Para Angola e em força” muitos jovens, corroborando as palavras de Pessoa, perderam a vida, muitas noivas ficaram por casar e muitas mães jamais abraçaram os seus filhos. Cabe à personagem “Gaio” estabelecer a ligação entre as duas temáticas. Emigrante inadaptado acaba por regressar, comprar umas ovelhas e viver feliz, entre os montes e o céu, numa vida simples de pastor. Todavia, este sossego foi curto, uma vez que se viu obrigado a ir para a Guerra Colonial da qual regressará com muitas cicatrizes físicas e o cansaço da alma que o hão de atormentar o resto da vida.