02 novembro 2015

O PALÁCIO DO ROUXINOL ,por Amélia Ferreira-Pinto


 Tinha sido educada num colégio de freiras. Educada. Não instruída. Era mulher. Para quê mulher instruída? Sabidas já elas nasciam. E arteiras. Portanto, quanto menos soubessem, melhor. Pelo menos era esta a filosofia do senhor Resende, homem de teres e haveres, pai da menina morgada.
Quando a levou ao colégio, explicou bem à madre superiora o que queria:
- Poucas letras. Isso só serve para elas escreverem aos conversados. Nada disso. Coisas de casa: coser, cozinhar, bordar. Prendas. Prendas… Prepará-la para a vida, para ter marido e filhos e saber cuidar deles.
A madre ainda alvitrou;
- E uma musicazinha?!…
         - Qual música, nem qual carapuça. Onde é que ela vai tocar lá na terra? E quem a ouve? Coisas que dêem proveito, e também não é preciso muita reza. Eu cá não a quero para freira. Só tenho esta, para mal dos meus pecados, e quero herdeiros. Não ando a trabalhar para o cura.
         A madre lamentou muito, Não era educação completa, não senhor. Nem uns conhecimentozinhos de francês, nem umas liçõeszinhas de piano. Era um incivilizado, o homem. Tinha de se lhe dar desconto; não se lhe entendia mais. Vinha lá das montanhas de Trás-os-Montes...
- Mas lá quanto a formação religiosa, isso não.  Tivesse santa paciência.  Tinha de seguir as lições das outras - disse de si para si a madre.

Anos depois, a Maria da Felicidade voltava à terra com um baú cheio de bordados, de “naperons” pintados à pena, de flores artificiais, de rendas de bilros e de alguns chambrinhos rebicados. Na mala trazia uma Bíblia, um catecismo, dois rosários, três terços, um missal, uma dúzia de “bentinhos”, medalhas e pagelas de todos os santos.
A mãe, quando ela chegou, expôs as suas obras de arte numa grande sala, convidou as meninas mais abastadas da terra e as respectivas mamãs, e mostrou-lhes os dotes da filha.
Teceram elogios, admiraram, apalparam, apreciaram a perfeição dos avessos, o disfarce dos remates e cá fora comentaram, rataram-lhe na pele:
- Que exageros. Para que quer tanto bordadeco? Nós cá também sabemos fazer rendas e dar pontos. E aquelas flores de papel!...Parecem as dos caixões dos mortos. É só para fazerem ver às outras…
- É mas é para arranjar casamento.
- Os pretendentes não vêm atrás dos bordados. Vêm atrás das oliveiras.
- Oliveiras não lhe faltam.
- E pretendentes também não.
E era verdade. A Dadinha tinha montes deles e alguns bem do agrado do pai. Mas ela punha tacha a todos. Nenhum lhe servia. Depois do que vira lá pelo Porto, era difícil achar chinelo para o seu pé: queria homem que calçasse sapatos e não aquelas botifarras. Homem que tomasse banho.
E continuava bordando, lendo no missal. O pai já estava a perder a paciência. A coisa não dava de si. Estava-lhe a parecer que ela ia dar em beata. Não procurava as amigas. Achava-as todas umas brutas. Refugiava-se na igreja e até já o povo dizia que era mal empregada tanta fazenda sem herdeiros.
Mas a velha Estrudes aquietava os ânimos das mais insofridas.
- Quando se faz uma panela, faz-se logo o testo. O homem há-de aparecer. Mas está-me cá a parecer que não há-de ser destes lados...
E não era.

CHACIM, por Cláudio Carneiro

     O edénico termo, campestre e pastoril, da antiga vila dionisíaca de Chacim, situada a nordeste de Trás-os-Montes, na encosta a nascente da serra de Bornes, tem a configuração de um triângulo escaleno, representando e lembrando, grosso modo, metade da estrela de David,  que desce, de rompante, do alto da serra de Bornes à povoação. E, depois, suavemente, para um dos seus vértices, na ponte romana, sobre o rio Azibo, que liga Balsamão à Paradinha, por baixo da colina do Monte do Carrascal, que lhe serve de contraforte e de firmeza, com a protecção de Nossa Senhora do Bálsamo, que está sempre presente e vigilante, que as surpresas aparecem quando menos se espera, dos lugares menos esperados.  
      Em tempos antiquíssimos, neste mesmo local, outra ponte teria existido, segundo deduzo por vestígios deixados. Mas os Povos do lugar tê-la-iam derrubado, embora a sua falta, impedindo, assim, deste modo, os inimigos provindos daqueles lados de leste, já então um flagelo constante, da sua arribação ou, pelo menos, retardá-los. Séculos volvidos, os nossos primos romanos a teriam reerguido, facilitando-lhes, assim, a passagem para o Monte do Carrascal, aonde haviam estabelecido, neste lugar, por detrás dos montes, o seu Quartel-General, reforçado no alto do Lombo, que lhe ficava e fica sobranceiro..
     Chacim tem Nossa Senhora do Bálsamo a resguardá-la dos seus inimigos, de perto e de longe, que para esse propósito viera do Paraíso e ali se mantém, na Sua igreja, branca como um pombal, acompanhada pelo santo polaco Frei Casimiro, para onde veio, talvez chamado por Ela, em 1754, sem dúvida com esse mesmo propósito e que,  por essa circunstância, por lá ficara e continua, dada a proximidade de acesso ao Paraíso Celeste, que não por causa de forças inimigas provenientes de onde menos eram esperadas, que os tempos mudaram para melhor, em que os Povos todos dão as mãos, como irmãos em tempo de partilhas..
    Nos tempos idos da minha meninice, adolescência e parte da mocidade e que parece que ainda fora ontem, que o tempo que nos regula e guia é incansável, nunca pára sequer um momento para descanso, havia, há e há-de haver, que na Natureza nada se perde, embora se transforme, como dizia aquele filósofo francês, deixo-vos com esta sugestiva quadra popular,  que então se cantava, entre outras, nos trabalhos campestres de mondas, de arranque de lentilhas, de azeitona e de outros trabalhos, de evocação a Nossa Senhora do Bálsamo:

                                Senhora de Balsamão
                                Onde estás tão metidinha
                                Entre Chacim e os Olmos,
                                O Lombo e a Paradinha.

    O termo chacinense estende-se do termo dos Olmos e de Malta, subindo e passando pelo alto da serra de Bornes, ao termo de Gebelim, nas Derruídas, resvés à ribeira da Camba. E desce, para sul, destas alturas alcantiladas, próximo de São Bernardino, protector dos possessos, que ali vão pedir auxílio, contra o maligno, ao  Alto da Deveza, Prados,  Alto de Valongo,  Alto de Valqueimado, Alto de vale dos Órfãos, Alto de Escornabeis, ponte romana. E contorna e segue para norte, às Olgas, Escarledo acima, a fechar no termo dos Olmos, de onde partíramos.
    Contém a povoação e o edénico termo, além das fontes e nascentes, a ribeira dos Olmos, a de Malta, a de Chacim, que o divide a meio, a de Santa Comba, a de Requeixo, a de Vale de Ganso, a de Valongo, a de Valqueimado, a de Vale dos Órfãos, o regato do Escornabeis, as termas sulfurosas da Abelheira e do Escarledo, o regato da Taipa, de águas permanentes e outros de permeio, quando chove e pelas invernias. Daí a suavidade e a fecundidade do solo, propício a olivais, vinhedos, hortas,  pomares, soutos, na encosta da serra e da Vinha Velha.
    A Corografia Portuguesa de 1706, escreve: “Chacim é dos bons lugares da Província de Trás-os-Montes, por ser fresco de verão e abundante de águas que correm pela villa e seus campos e entram em todas as casas da villa, excepto uma ou duas. Tem lugares e tendas de mercadorias e se contracta em sêdas e couramas, que tudo a faz rica. Recolhe  pão, vinho, azeite, linho galego, alguns gados e caças miúdas” e, acrescento eu, cebolas, casulas, batatas e melões e duas feiras mensais, a 4 e a 19 e em Setembro três, no dia 10, chamada das cebolas ou Azinhoso e uma banda de música, de eloquente mestria.

Professor Doutor Adriano Moreira, por Cláudio Carneiro.

Só vós sois grande e sábio no pensar!
Dos homens o tamanho está na mente
E na grandeza de alma, tão-somente,
Que à criação das obras dá lugar

Ó fonte inesgotável, se calhar
Sois de essência divina, transcendente,
Emanação  do bem, cuja semente
Ousara em Trás-os-Montes germinar.

Eu vos venero e canto. Só é pena
Usufruir de rude e "agreste avena"
E de musas de humilde inspiração.

Canto-vos como sei, do que disponho,
Que a fantasia homérica de um sonho
É quanto vai, Senhor, da minha mão.

Com amizade, o chacinense

Cláudio Carneiro.

António José Maldonado, o professor e o poeta. por Regina Gouveia

Em Outubro de 1955, com 10 anos incompletos, entrei para o 1º ano do então Liceu Nacional de Bragança. O fascínio de uma nova etapa da minha vida onde quase tudo era novidade, a começar pela dimensão da escola. De entre as colegas da 4ª classe, poucas continuaram estudos, pelo que não conhecia a maior parte das alunas da  turma A, onde me “encaixaram” com mais 30 meninas. O Liceu era misto, contrariamente à escola onde fizera a 4ª classe mas, genericamente, meninos e meninas não partilhavam espaços. A professora Lina, fora substituída por vários professores, creio que nove. Entre esses professores estava o Dr. António José Maldonado, professor de Português. Recordo-o como um professor muito afável mas bastante permissivo pelo que  não se aprendia muito nas suas aulas.
Voltei a tê-lo como professor na disciplina de História no 5º ano (actual 9º). Por motivos de saúde foi substituído, creio que no início do 2º período.
Por essa altura, surgiu na escola uma nova professora de Inglês, a Drª Aurora, com quem o Dr. Maldonado viria a casar.
Não voltei a tê-lo como professor. Quer no 6º quer no 7º ano, embora as turmas fossem mistas, eram desdobradas na disciplina de Filosofia. O Dr. Maldonado dava aulas aos rapazes e o Dr. Lopes da Silva, então Reitor,  às meninas.
Já no fim da minha passagem por Bragança, constou-me que teria escrito um livro de poesia Futuros ou não.,
Embora tivesse sempre uma palavra gentil para me dizer se me visse na escola ou na rua, nunca me apercebi do seu lado poético, o que não é de estranhar pois era ainda muito jovem quando  fui sua aluna.

Transcrevo um dos poemas desse livro

Futuros ou não
viajemos um para o outro, tranquilos; 
viajemos, sombras fugidias, levemente 
            eternas:
- Tu para mim, eu para ti.
  Futuros ou não,
passemos nos lábios inventando o fogo, 
passemos nos corpos repartindo as nascentes, 
passemos nas almas pronunciando espaço. 
  Como o ruído dos passos gasta a solidão
            dos caminhos,
assim tu em mim,
chegada de muitos gestos, dum mundo e de 
            outro mundo, do alfa e do omega.


António José Maldonado foi inserido pela crítica na chamada "Geração de 50", que se tornou célebre pelo seu inconformismo e revolta contra o regime salazarista. De entre os seus poemas destacam-se particularmente "Êxodo", "Dies Irae" e "Os Fundadores de Cidades". 

Na passada semana tive o tempo um pouco mais livre pelo que deambulei pela Baixa, muito em particular por livrarias. E numa delas, na Praça Guilherme Gomes Fernandes, descobri  Limite Cultivado, um livro de  António José Maldonado, prefaciado por Fernando Guimarães que também conheci como professor do Liceu de Bragança, embora nunca tivesse sido meu professor 



O texto acima corresponde a um “post” que coloquei  no meu blogue (www.docaosaocosmos.blogspot.com)  em 12/7/2015

Acrescento agora dois poemas da obra  Limite cultivado.

PAREDE SEM QUADRO
Na parede
o orifício ultrapassado
desacertado na ferida
e na razão de usá-la

Chegámos ao fim
não temos passos de volta
-Companheiro
que esperas?

INVOCO ALDEIAS
Invoco aldeias
o lápis do rio escrevendo vidro
fiéis rebanhos a caminhos
E parto
entendido de teu rosto
e das sebes em declínio



01 novembro 2015

Hirondino da Paixão Fernandes - Na Primeira Pessoa


Hirondino da Paixao Fernandes - Na Primeira Pessoa from Leonel Brito on Vimeo.

ENTRE MARGENS - Regina Gouveia


Em 2012 fui contemplada com o 1º prémio no  XVII concurso Poesia em ti, promovido pela  APPACDM de Setúbal. Do prémio fazia parte a edição, pela Editora Lua de Marfim, de um livro de poesia. Assim surgiu o livro Entre Margens, publicado em 2013, que inclui dois projetos que há já algum tempo aguardavam publicação-Poemas no espaço-tempo e Entre margens.
Os poemas que seguem foram extraídos desse livro(os primeiros  cinco integram Poemas no espaço-tempo e os cinco restantes integram Entre margens). Alguns deles foram selecionados pela referida Editora para inclusão no Volume I da  Antologia 7 Luaspublicada em 2014.
 
 







Opus 13


Em cima do piano, pousada a partitura.
Opus 13, Sonata nº 8 em dó menor.
Uma elegia.
O sentimento, a paixão, a dor,
a surdez precocemente anunciada.
Opus 13, Sonata nº 8 em dó menor.
A tessitura.
Allegro, adágio, rondó.
Uma alegoria a exorcizar o sofrimento.
Beethoven, sobre-humano.
Opus 13, Sonata nº 8 em dó menor.
No piano, Maria João Pires.
Quede-se o cosmos.
Nem porvir, nem passado.
Apenas o presente,
este mel que escorre do teclado.




Rios da memória[1]


É ao crepúsculo que correm os rios da memória
que gotas de chuva aprisionaram
e, navegando em raios de luz, disseminaram.
É ao crepúsculo que flutuam as lembranças
de lágrimas, sorrisos e afagos,
romãs entreabertas, ofertando rubros bagos.
É ao crepúsculo que se adensam os mistérios
que a morna brisa se apressa em  diluir
por entre as trevas da noite que há de vir.



Era poesia[2]

Em agosto, o sol rubro ao poente
antecipando  um dia muito quente
e o alegre canto da cigarra
que a morna brisa acalentava,
faziam o poema.
Em novembro, as cores outonais
das folhas, bailarinas surreais
que caídas no fim do seu tempo
bailavam ao sabor do vento,
faziam o poema.
Em dezembro, o crepitar da lareira
e o manto  branco na ladeira,
emprestando um ar de fantasia
a um  natal pleno de  magia,
faziam o poema.
Em maio, o campo com seu ar de festa
exalando um subtil odor a giesta
e o rubro das papoilas nas searas,
contrastando com tímidas flores claras,
faziam o poema.
O poema estava ali, não precisava de palavras.

 


As palavras não ditas


Tu não sabias,
mas no silêncio  que achaste insuportável,
naquelas palavras que eu não disse,
havia o brilho do sol,  a luz do luar,  um rio a fluir,
um murmúrio de mar, todo o arco íris,
um cheiro a jasmim,
um leve bater de asas, um toque de cetim,
o sussurrar do vento  e havia o tempo,
um tempo ilimitado
que hoje jaz inerte, abandonado.
Tu não sabias, por isso achaste imperdoável
o silêncio das palavras que não disse.
         
Fractal

Denso  este silêncio
onde a memória, qual fractal,
vai repetindo cópias de um padrão 
pleno de volutas, cornucópias,
que volteiam em direção ao infinito.
Ampliam-se as imagens, por vezes diminutas
e emergem pormenores que se agigantam
no  silêncio opressor que penetra no imo dos espaços.
Arremesso um grito,
quebro o silêncio em mil pedaços
onde  a luz se  decompõe num arco íris ébrio de cor.




Limites


Ronrona o meu gato estirado no tapete
Ao ritmo da respiração o dorso afunda-se e alteia.
O coração bate apressado,
duas vezes por segundo,
por isso a sua vida é breve.
Ronrona o meu gato estirado no tapete
indiferente a tudo o que o rodeia.
Ignora raios cósmicos, neutrinos, mesões e leptões,
que atravessam o seu corpo
em constante correria, noite e dia, noite e dia.
Não quer saber se o cosmos tem princípio ou fim
tão pouco o preocupam os seus mistérios
que o homem incessantemente tenta desvendar,
fazendo os limites do universo recuar.
O meu gato, tranquilamente a ronronar,
agita a cauda docemente.
Talvez sonhe com um pássaro a voar 
batendo as asas ao de leve
ou talvez sonhe ultrapassar os muros do jardim,
fazendo recuar, assim,  os limites do seu mundo.

 


A  dança de Shiva


Shiva, dançando, destruiu e recriou o universo,
o espaço e o tempo em plena conjunção.
Eis o om criador, a sílaba sagrada, a emergir do nada,
a poeira cósmica gerando astros, 
quais navios sem mastros, 
a vogar no universo em expansão.
Um dia nasceram as palavras. 
Nasceram também os poetas que, 
em suas lavras,
com palavras fizeram poesia.


Entre Margens



(…)Já os rios cheios, com bramidos fundos, num dilúvio d´água vão de mar a monte! (…)Guerra Junqueiro

Aos montes que os céus rasgam,
vales profundos os fendem.
São leitos de rios escavados, fundos,
águas que bramam demandando o mar.
Nas margens, líquenes, nas fragas, escondem bisontes
que foram esculpidos  em tempos perdidos.
Bebiam das águas, galgavam os montes


(…) Ó banzas dos rios , gemendo descantes (…)
António Nobre

Jovial, fagueiro, por vezes arrebatado, violento,
assim corria o rio, outrora, em sobressalto ou lento.
Barítono, tenor, baixo, soprano, contralto,
cantava árias de amor e de paixão.
Aprisionaram-no. Tentou lutar.
Foi impotente perante a muralha de betão.
Parado, triste, agora já não canta.
Tem um nó na garganta.


(…) Por baixo d’água seguem as palavras (…) Federico García Lorca

Era um rio denso, leve, lento, breve, calmo,
bravio, jovial, sombrio, ufano, natural, casto,
sensual, inquieto, parado, profano, sagrado,
apaixonado, langue,  vigoroso, exangue.
Nele não corriam águas,
mas parábolas.




(…) Tu como um rio adormecido e doce seguindo a voz do vento e a voz do mar (…) Sofia de Melo Breyner

O murmúrio do mar, bramindo lento,
estendeu-se até ao rio, levado pelo vento.
Adormeceu o rio ao som do mar e do vento.
Quedaram-se as águas, quase não corriam
e como que sorriam, lembrando uma criança
adormecida no colo da mãe.
Docemente, encostaste a cabeça no meu peito
e, sorrindo, adormeceste também.




Há na memória um rio onde navegam os barcos da infância (…)José Saramago.

Nos rios da memória navega a minha infância,
o sorriso da minha mãe sarando qualquer mágoa,
a mão do meu pai,
segurando forte a minha mão de criança,
a boneca de celuloide e, ao lado,
o vestido em organdi, bordado,
e também os sapatos de verniz.
Por sobre os rios da memória, garças que esvoaçam
vão debicando as lembranças que passam.


(…) Água dum rio doce, entrei no mar E salguei-me no sal da imensidade (…) Miguel Torga

Outrora, quantas belas ninfas aqui se banharam?
Quantos belos faunos nos montes caçaram?
Pergunto às águas doces que correm no rio,
mas as águas dos rios, vão-se rio afora.
Correm lascivas, querem ir-se embora
para se entregarem ao mar sensual.
Trocam o sabor doce por um gosto a sal.



À direita e à esquerda: falésias, abismos, referver de águas indisciplinadas (…) A.M.Pires Cabral

Passam por mim tumultuosas águas
em busca do seu destino, o mar.
Um dia, porém, vão regressar.
Também febril, com pressa de chegar,
este rio que me leva.
A viagem é de ida, não existe voltar.
Espera-me Caronte.
Não sei quando nem onde.





[1] Pertence a um conjunto de poemas classificado em 1º lugar no concurso Dr. Agostinho Gomes, 2005

[2] primeiro prémio no concurso promovido pela Câmara Municipal de Mogadouro, 2009

Dr. Altino Cardoso ,por Cláudio Carneiro

Afortunado sou, que vos tivera
Por mestre, bom amigo, conselheiro,
Professor e colega, companheiro...
E muito mais seria se o houvera.

Sublime aparição a mim descera
Lá dos confins do etéreo sobranceiro
Que tudo vê. Arquétipo primeiro
Que, sem o merecer, me concedera

Bem-hajas ó Senhor e a vós, amigo,
Que me ensinaste os dons da Natureza,
Tornando a pedra bruta ser pensante.

Sem vós ainda hoje o não consigo,
Criança imberbe, a sós, pela aspereza
Do rústico caminho vacilante. 

Com amizade, o chacinense
Cláudio Carneiro