01 novembro 2015

ENTRE MARGENS - Regina Gouveia


Em 2012 fui contemplada com o 1º prémio no  XVII concurso Poesia em ti, promovido pela  APPACDM de Setúbal. Do prémio fazia parte a edição, pela Editora Lua de Marfim, de um livro de poesia. Assim surgiu o livro Entre Margens, publicado em 2013, que inclui dois projetos que há já algum tempo aguardavam publicação-Poemas no espaço-tempo e Entre margens.
Os poemas que seguem foram extraídos desse livro(os primeiros  cinco integram Poemas no espaço-tempo e os cinco restantes integram Entre margens). Alguns deles foram selecionados pela referida Editora para inclusão no Volume I da  Antologia 7 Luaspublicada em 2014.
 
 







Opus 13


Em cima do piano, pousada a partitura.
Opus 13, Sonata nº 8 em dó menor.
Uma elegia.
O sentimento, a paixão, a dor,
a surdez precocemente anunciada.
Opus 13, Sonata nº 8 em dó menor.
A tessitura.
Allegro, adágio, rondó.
Uma alegoria a exorcizar o sofrimento.
Beethoven, sobre-humano.
Opus 13, Sonata nº 8 em dó menor.
No piano, Maria João Pires.
Quede-se o cosmos.
Nem porvir, nem passado.
Apenas o presente,
este mel que escorre do teclado.




Rios da memória[1]


É ao crepúsculo que correm os rios da memória
que gotas de chuva aprisionaram
e, navegando em raios de luz, disseminaram.
É ao crepúsculo que flutuam as lembranças
de lágrimas, sorrisos e afagos,
romãs entreabertas, ofertando rubros bagos.
É ao crepúsculo que se adensam os mistérios
que a morna brisa se apressa em  diluir
por entre as trevas da noite que há de vir.



Era poesia[2]

Em agosto, o sol rubro ao poente
antecipando  um dia muito quente
e o alegre canto da cigarra
que a morna brisa acalentava,
faziam o poema.
Em novembro, as cores outonais
das folhas, bailarinas surreais
que caídas no fim do seu tempo
bailavam ao sabor do vento,
faziam o poema.
Em dezembro, o crepitar da lareira
e o manto  branco na ladeira,
emprestando um ar de fantasia
a um  natal pleno de  magia,
faziam o poema.
Em maio, o campo com seu ar de festa
exalando um subtil odor a giesta
e o rubro das papoilas nas searas,
contrastando com tímidas flores claras,
faziam o poema.
O poema estava ali, não precisava de palavras.

 


As palavras não ditas


Tu não sabias,
mas no silêncio  que achaste insuportável,
naquelas palavras que eu não disse,
havia o brilho do sol,  a luz do luar,  um rio a fluir,
um murmúrio de mar, todo o arco íris,
um cheiro a jasmim,
um leve bater de asas, um toque de cetim,
o sussurrar do vento  e havia o tempo,
um tempo ilimitado
que hoje jaz inerte, abandonado.
Tu não sabias, por isso achaste imperdoável
o silêncio das palavras que não disse.
         
Fractal

Denso  este silêncio
onde a memória, qual fractal,
vai repetindo cópias de um padrão 
pleno de volutas, cornucópias,
que volteiam em direção ao infinito.
Ampliam-se as imagens, por vezes diminutas
e emergem pormenores que se agigantam
no  silêncio opressor que penetra no imo dos espaços.
Arremesso um grito,
quebro o silêncio em mil pedaços
onde  a luz se  decompõe num arco íris ébrio de cor.




Limites


Ronrona o meu gato estirado no tapete
Ao ritmo da respiração o dorso afunda-se e alteia.
O coração bate apressado,
duas vezes por segundo,
por isso a sua vida é breve.
Ronrona o meu gato estirado no tapete
indiferente a tudo o que o rodeia.
Ignora raios cósmicos, neutrinos, mesões e leptões,
que atravessam o seu corpo
em constante correria, noite e dia, noite e dia.
Não quer saber se o cosmos tem princípio ou fim
tão pouco o preocupam os seus mistérios
que o homem incessantemente tenta desvendar,
fazendo os limites do universo recuar.
O meu gato, tranquilamente a ronronar,
agita a cauda docemente.
Talvez sonhe com um pássaro a voar 
batendo as asas ao de leve
ou talvez sonhe ultrapassar os muros do jardim,
fazendo recuar, assim,  os limites do seu mundo.

 


A  dança de Shiva


Shiva, dançando, destruiu e recriou o universo,
o espaço e o tempo em plena conjunção.
Eis o om criador, a sílaba sagrada, a emergir do nada,
a poeira cósmica gerando astros, 
quais navios sem mastros, 
a vogar no universo em expansão.
Um dia nasceram as palavras. 
Nasceram também os poetas que, 
em suas lavras,
com palavras fizeram poesia.


Entre Margens



(…)Já os rios cheios, com bramidos fundos, num dilúvio d´água vão de mar a monte! (…)Guerra Junqueiro

Aos montes que os céus rasgam,
vales profundos os fendem.
São leitos de rios escavados, fundos,
águas que bramam demandando o mar.
Nas margens, líquenes, nas fragas, escondem bisontes
que foram esculpidos  em tempos perdidos.
Bebiam das águas, galgavam os montes


(…) Ó banzas dos rios , gemendo descantes (…)
António Nobre

Jovial, fagueiro, por vezes arrebatado, violento,
assim corria o rio, outrora, em sobressalto ou lento.
Barítono, tenor, baixo, soprano, contralto,
cantava árias de amor e de paixão.
Aprisionaram-no. Tentou lutar.
Foi impotente perante a muralha de betão.
Parado, triste, agora já não canta.
Tem um nó na garganta.


(…) Por baixo d’água seguem as palavras (…) Federico García Lorca

Era um rio denso, leve, lento, breve, calmo,
bravio, jovial, sombrio, ufano, natural, casto,
sensual, inquieto, parado, profano, sagrado,
apaixonado, langue,  vigoroso, exangue.
Nele não corriam águas,
mas parábolas.




(…) Tu como um rio adormecido e doce seguindo a voz do vento e a voz do mar (…) Sofia de Melo Breyner

O murmúrio do mar, bramindo lento,
estendeu-se até ao rio, levado pelo vento.
Adormeceu o rio ao som do mar e do vento.
Quedaram-se as águas, quase não corriam
e como que sorriam, lembrando uma criança
adormecida no colo da mãe.
Docemente, encostaste a cabeça no meu peito
e, sorrindo, adormeceste também.




Há na memória um rio onde navegam os barcos da infância (…)José Saramago.

Nos rios da memória navega a minha infância,
o sorriso da minha mãe sarando qualquer mágoa,
a mão do meu pai,
segurando forte a minha mão de criança,
a boneca de celuloide e, ao lado,
o vestido em organdi, bordado,
e também os sapatos de verniz.
Por sobre os rios da memória, garças que esvoaçam
vão debicando as lembranças que passam.


(…) Água dum rio doce, entrei no mar E salguei-me no sal da imensidade (…) Miguel Torga

Outrora, quantas belas ninfas aqui se banharam?
Quantos belos faunos nos montes caçaram?
Pergunto às águas doces que correm no rio,
mas as águas dos rios, vão-se rio afora.
Correm lascivas, querem ir-se embora
para se entregarem ao mar sensual.
Trocam o sabor doce por um gosto a sal.



À direita e à esquerda: falésias, abismos, referver de águas indisciplinadas (…) A.M.Pires Cabral

Passam por mim tumultuosas águas
em busca do seu destino, o mar.
Um dia, porém, vão regressar.
Também febril, com pressa de chegar,
este rio que me leva.
A viagem é de ida, não existe voltar.
Espera-me Caronte.
Não sei quando nem onde.





[1] Pertence a um conjunto de poemas classificado em 1º lugar no concurso Dr. Agostinho Gomes, 2005

[2] primeiro prémio no concurso promovido pela Câmara Municipal de Mogadouro, 2009

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