Não é facil ler o Ernesto José Rodrigues! O narrador é um camaleão metamorfótico
que vai variando ao longo da trama que desafia constantemente o leitor a rever,
a reler, a focar-se e interrogar-se sobre o fio da história que o autor nos
conta. É assim no Romance do Gramático. É difícil mas igualmente desafiante.
Contudo, esta dificuldade e desafio transformam-se em prazer e
fascínio na sua obra mais recente: A Casa de Bragança. Porque esta, ao contrário
daquela, não é uma historia que se acompanha e segue atentamente, antes é um
conjunto harmonioso de histórias que nos procuram, que nos agarram, que nos
envolvem. Leio o Ernesto de forma sequencial mas adivinho-me a relê-lo de forma
arbitrária saltando de capitulo em capítulo certo que a mensagem não se adultera,
antes se confirma e tomará, quiçá novas formas, novas mensagens, novas
sensações. A metamorfose aqui é das circunstancias e não do narrador que
“apenas” lhe vai dando (mesmo que com sujeitos diferentes) o fio que as une e
que as conduz. Sendo relatores de todas as peripécias brigantinas, os vários
sujeitos que nos falam, apagam-se por trás dos fascinantes episódios e são
estes que nos prendem a atenção. Aqueles subentendem-se com naturalidade independentemente
da sua verdadeira identidade!
Não me achando competente para o classificar, não me arrisco muito
garantindo que, contrariamente ao que de início esperava, a Casa de Bragança
não é um romance! Apesar da ficção que o
autor brilhantemente verteu na obra, há um trabalho intenso e exaustivo de
pesquisa histórica e bibliográfica que lhe conferem rigor fatual mas não o
transformam num documentário sobre a urbe nordestina. Também não é a defesa de uma
tese que existe de facto e que é brilhantemente exposta e sustentada. Vai mais
longe que isso.
Para classificar a obra haverá gente bem melhor apetrechada e
documentada que eu. Do que eu quero falar é das sensações que o livro me
desperta… admitindo desde já a minha incapacidade de me distanciar, do local,
do tempo e do autor.
Leio o Ernesto e retrocedo, na companhia do escritor, quarenta anos
para a Bragança misteriosa e sedutora da nossa juventude. De uma forma
estranha. Familiarmente estranha! Fascinantemente estranha. Porque a viagem que
este velho amigo me proporciona não é de um simples recordar de tempos idos.
Não é a revisita de gente conhecida. Muito menos e muito especialmente não é
uma viagem na memória a lugares familiares. Os lugares estão lá. Reconheço-os.
Mas não da forma como os vi, nessa data, nem tão pouco como os vejo agora
sempre que regresso. Estão lá sim, mas agora escancarados. Estão lá com todas
as histórias que nessa altura já adivinhava, todas as fantasias que me prometiam,
mas que, igualmente, escondiam. O Ernesto mostra-as abrindo as cortinas mágicas
e todos os sonhos de infância, toda a mitologia fantástica, ganha vida e é
real, é histórica e veste a paisagem com todo o peso humano que incognitamente
carregavam. As pedras da calçada, os muros das igrejas, as ameias das muralhas,
a silhueta dos pelourinhos já não estão sós mas fazem-se acompanhar de gente
simples, de servos, de mercadores, de príncipes e condes, de soldados, padres,
frades e senhores feudais, de rameiras, ladrões, malfeitores, assaltantes e
pedintes!
Leio o Ernesto e lembro-me de uma história fabulosa da minha infância:
o conto do Touro Azul. De que não vou falar já, porque, por um lado, o espaço
mo não permite mas também e, sobretudo, porque o tempo o não consente. Falar
agora do Touro Azul seria tirar-lhe o sentido que sempre teve. Fica a promessa de
lhe dedicar uma próxima crónica. Confesso que, já várias vezes a ensaiei
escrever nestas páginas mas que nunca fiz, e ainda bem, pois perderia o momento
adequado que é este, depois de ler a fabulosa Casa de Bragança!
José Mário Leite
1 comentário:
Lindo, lindo. Só que, agora, até eu gostaria de saber da história do Touro Azul. Obrigada.
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