03 abril 2014

HOMENS DE GRANITO, Antero Neto


O REGRESSO 

Alberto chegou com a chuva. Uma chuva miudinha que caía de forma irregular, mas que era vista como uma bênção no nordeste transmontano depois de longos meses de seca que vinha afectando a região. A primeira sensação que experimentou ao descer os degraus da camioneta e pisar o chão revestido a paralelos da paragem da aldeia, foi o cheiro forte da terra molhada que emanava das redondezas, e que o fez recuar automaticamente à sua distante infância.
Tinha partido há coisa de trinta anos. Tinha partido para não regressar. Mas o destino trocou-lhe as voltas e ali estava ele no meio do largo principal da aldeia onde nasceu e se fez moço. À sua espera estava a velha tia Ermelinda, irmã solteirona de seu pai, último laço de sangue com aquele lugar inóspito, abandonado para lá das serranias.
“As terras pequenas não fazem os homens grandes!” – a frase mil vezes repetida pelo seu tio António ainda lhe martelava na cabeça como no dia em que olhou pela última vez para o largo central da aldeia. O tio, sacerdote local e irmão de seu pai, tinha-
-o criado juntamente com a velha Ermelinda que agora reencontrava. A morte prematura dos pais quando ele ainda dava os primeiros passos obrigou os tios a tomá-lo como um filho. Nunca lhe faltou nada. Porém, o pároco educou-o com mão de ferro. “Tens que ser um homem. Tens que ser alguém na vida. Olha que um homem sem estudos é como uma cria indefesa no meio da selva. Vai-te embora. Vai para a cidade. Não te prendas aqui.
Eu pago-te os estudos. Olha que as terras pequenas nunca fizeram os homens grandes”. Parece que ainda o estava a ouvir, com o semblante cerrado e a voz firme: “essa rapariga não te serve! Quando te formares não te vão faltar cem raparigas melhores que ela! Vai pelo que te digo!”
Mariana era uma moça espigadota para a idade. Os dezasseis anos que o bilhete de identidade indicava não tinham correspondência com o corpo adulto de mulher que já ostentava. Não havia em toda a aldeia moço ou homem que lhe ficasse indiferente. Quis o destino que se embeiçasse por Alberto. Ou por serem vizinhos, ou porque brincassem sempre juntos, tinham tecido entre si uma cumplicidade tal que não havia tempestade que os separasse. “Lá vai o saco e a baraça!” – comentavam na aldeia sempre que os viam passar juntos.
Mas esse destino que os juntou foi mais forte que todos os laços do mundo e separou-os.
Alberto tinha conseguido resistir aos apelos e aos ralhos do tio que, sistematicamente e sem sucesso, tentava impelir o sobrinho a seguir uma carreira nos estudos. Resistiu enquanto pôde, motivado pelos amores de Mariana. Mas tal como os mancebos de todo o país, também ele recebeu uma convocatória para a tropa. E quando o tio lhe entregou o farnel para a viagem e uma nota de vinte escudos para os primeiros gastos, segredou-lhe ao ouvido: “Não te quero voltar a ver aqui! Fica na cidade! Estuda! Eu farei todos os sacrifícios que forem necessários. Eu e a tia vamos ver-te onde tu estiveres, mas não voltes a pôr aqui os pés, ouviste bem? Lembra-te do que eu te disse: as terras pequenas não fazem os homens grandes!”
As palavras do velho foram premonitórias. Alberto não voltou à terra natal. Enquanto cumpria o serviço militar enamorou-se de uma enfermeira de Lisboa, com quem veio a casar mal passou à disponibilidade. A mulher incentivou-o a estudar. Motivado pela família e descobrindo uma ambição que julgara não ser a sua, veio a licenciar-se. Desse casamento nasceram dois filhos. Os tios visitavam-no com regularidade. O passado idílico vivido na aldeia não era mais que uma recordação vaga, devidamente enterrada no baú da história. Apenas se lembrava das origens quando lhe punham uma alheira, ou um salpicão à frente. A tia Ermelinda encarregava-
-se de que não lhe faltassem na mesa as coisas boas da terra.
Ao entrar na aldeia, foi como se um clarão o iluminasse.
Um súbito “flashback” atravessou-lhe a mente. Foi como se tivesse vivido duas vezes. Nasceu naquela aldeia e morreu quando foi para a tropa. Tornou a nascer em Lisboa e sentia-se agora a morrer de novo. Para regressar à primeira vida. Estava a sentir uma espécie de reencarnação.
A esposa tinha falecido havia aproximadamente quatro anos. Os filhos já estavam formados e tinham-se tornado independentes. A reforma trouxe-lhe uma inesperada solidão. Por isso começou a planear um regresso. Só não sabia quando reuniria a coragem suficiente para o concretizar.
E mais uma vez o destino deu-lhe o necessário empurrão.
O tio octogenário faleceu. Foi o pretexto inesperado para tomar uma decisão que se acovardava no seu inconsciente.
Quando pisou o solo patrício e recebeu nos braços a tia emocionada, foi como se estivesse a pisar a lua. Ainda não acreditava que estava outra vez em casa. “A nossa terra é aquela onde nos fazemos homens” – tinha ouvido ou lido algures. E ele tinha-se feito homem ali. Por mais que a sua vida de adulto se tivesse estruturado em Lisboa, não podia olvidar que tinha sido ali que tinha bebido os valores mais primários. Tinha sido ali que tinha lutado pela primeira vez. Tinha sido ali que tinha feito os seus primeiros amigos. E tinha sido ali que tinha amado pela primeira vez. E… maldita hora em que o fez.
A segunda pessoa com quem se deparou na aldeia foi com o velho Bernardino. Apesar da distância temporal e dos seus nefastos efeitos na natureza humana, reconheceu de pronto a figura do pai de Mariana. Num impulso incontrolável dirigiu-se ao velho e cumprimentou-o:
Então ti Bernardino, como é que vai essa saúde?
E o senhor quem é? – retorquiu o velho, sem fazer a mínima ideia com quem estava a falar.
Sou o Alberto. O Alberto do ti padre António...
O Alberto?
Sim! Então não se lembra de mim?
O velho olhou amargurado para o outro e disse-lhe com voz agastada:
Não me lembro eu de outra coisa. Desgraçaste a minha vida e a da minha filha. Pensei que tinhas morrido...
Não diga isso, homem de Deus...
Pois mais valia que tivesses morrido lá na guerra. Ao menos assim não me tinhas desgraçado a vida. P’ra mim morreste. Adeus.
Dito isto, o velho afastou-se o mais rápido que as pernas cansadas lhe permitiam, deixando o outro cabisbaixo, derrotado, como se tivesse levado uma bofetada de um gigante.
O que é que tu querias, meu filho? Que te recebessem de braços abertos, depois do que tu lhes fizeste? – interveio a velhota, condoída com a reacção do sobrinho ao diálogo.
Se calhar tem razão minha tia... – balbuciou, enquanto pegava no saco e se dirigia para a casa familiar no centro da aldeia.
Uma vez ali chegado, chorou lágrimas silenciosas agarrado às memórias de uma vida que tinha enterrado quando partiu. Sentiu-se desanimado. Com vontade de partir sem sequer desfazer a bagagem. Pediu à tia que o escusasse da presença no velório. Não lhe apetecia encarar com mais ninguém. Queria lamber as feridas sozinho, longe dos olhares curiosos dos conterrâneos e dos cochichos das beatas.
Estava nisto quando ouviu bater à porta. Devia ser alguém que vinha apresentar as condolências à tia. A contra gosto foi ver quem era. Quando abriu a porta sentiu-se desfalecer. Era ela.
Era Mariana. Mais velha, mas igualmente bela. Resplandecente. As marcas do tempo tinham-na beneficiado.
Olá fantasma. Ouvi dizer que regressaste dos mortos para me atormentar... atirou-lhe ela com um sorriso doce e uma voz suave.
Mariana! Que surpresa! Depois do que o teu pai me disse, pensei que não me querias ver nem morto! – respondeu ele ainda mal refeito da surpresa.
Mas, e se alguém te vê aqui, que dirão?
Ninguém sabe que estou aqui. A aldeia está toda no velório do teu tio (onde tu também devias estar…). Então não me convidas a entrar?
Claro, claro! Desculpa, mas ainda estou meio zonzo. Entra, entra...
E então, a tua família não veio? A tua mulher e os teus filhos?
A minha mulher já faleceu...
Ah, não sabia, desculpa...
Não faz mal. E os meus filhos não puderam vir. Sabes que é longe e eles já trabalham os dois.
Vais demorar por aqui?
Não sei. Depende... já me reformei. E agora como estou sozinho na vida, se calhar vou-me mudar para cá. Venho fazer companhia à minha tia.
Não faças isso Alberto! Peço-te por tudo o que tu tens mais sagrado! – atirou ela surpreendentemente.
Porquê? – reagiu Alberto, meio estupefacto com a veemência do pedido de Mariana.
Porquê? Então tu não sabes o mal que me fizeste? Juraste-me amor eterno! Entreguei-me totalmente e depois abandonaste-me sem me dar uma satisfação e ainda vens perguntar-me porquê? Queres atormentar o resto dos meus dias? Se ainda te resta alguma dignidade vai-te embora tão depressa como vieste! Eu não te posso ver, percebes? Não posso estar na mesma terra que tu! Só vim cá para te dizer que não és bem-vindo! Nunca mais homem algum olhou para mim com respeito. Eu agora sou a rameira da terra, sabias? Querias tanto ser alguém, não era? Então agora já és, mas vai-te embora, por favor. Em nome de algum sentimento que tiveste por mim...
Alberto estava literalmente siderado. Ao ouvir Mariana a chorar e a dirigir-lhe aquelas palavras tão duras, sentiu que todas as expectativas, todos os sonhos construídos nos últimos dias se desmoronavam como castelos de cartas. Quão frágil se sentia! Ao mesmo tempo que ouvia a voz aguda da mulher, sentia que mil setas o trespassavam, dilacerando-lhe a carne e aniquilando-lhe o espírito. Sentiu-se reduzido à mais ínfima partícula de matéria humana existente no universo.
Mas... Mariana, eu só queria estar contigo. Tu não sabes o que eu sofri todos estes anos. Eu amo-te...
Mentira descarada, Alberto. Não passas de uma triste ilusão. É o que foste e o que serás até ao fim dos teus dias.
Não digas isso meu amor. Eu errei. Tenho consciência disso. Mas ainda vamos a tempo de construirmos alguma coisa juntos. Ainda somos novos. Tu estás mais bonita do que alguma vez foste...
Cala-te Alberto. Cala-te, por favor... suplicou a mulher, com lágrimas nos olhos, enquanto se deixava descair para os braços dele.
Alberto não disse nada. Tomou-a no colo e apertou-a com força. O desejo era mútuo e incendiou os corpos sedentos. Fizeram amor como se fosse simultaneamente a primeira e a última vez. Até à exaustão. Caíram extenuados e ficaram a contemplar a expressão ao mesmo tempo surpresa e feliz.
Ela foi a primeira a reagir:
Não devíamos ter feito isto. Foi um erro!
Chiu! – Sussurrou Alberto enquanto lhe encostava o dedo aos lábios – não digas mais nada. Amo-te como ninguém amou. Quero ver os teus cabelos passarem de cinzentos a brancos. Quero envelhecer contigo ao meu lado.

Sabes bem que isso não é possível. Amanhã, depois do funeral do teu tio vais partir novamente. Se me amas mesmo, não voltas cá.
Mas...
Nem mas, nem meio mas. A vida não é um conto de fadas. A aldeia não é a mesma. As pessoas mudaram muito. Tu já não te enquadras aqui. O teu lugar é na cidade. Volta para lá. Acompanha os teus filhos. Aquilo que acabámos de fazer foi muito bom, mas não se vai repetir. Foi a minha despedida. Não me voltas a ver. Adeus.
Enquanto proferia estas palavras levantou-se, compôs a roupa, deu um beijo na fronte de Alberto e saiu porta fora.
Alberto não voltou a ver Mariana. Esta não foi ao funeral do tio. Quando se dirigia para casa dela surgiu-lhe o pai à frente e mandou-o embora, dizendo-lhe que ali não seria recebido.

Com o coração destroçado, arrumou as suas coisas e partiu no autocarro, deixando para trás o passado e o futuro, debaixo de chuva miudinha, tal como tinha chegado.

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