Tinha
sido educada num colégio de freiras. Educada. Não instruída. Era mulher. Para
quê mulher instruída? Sabidas já elas nasciam. E arteiras. Portanto, quanto
menos soubessem, melhor. Pelo menos era esta a filosofia do senhor Resende,
homem de teres e haveres, pai da menina morgada.
Quando a
levou ao colégio, explicou bem à madre superiora o que queria:
- Poucas
letras. Isso só serve para elas escreverem aos conversados. Nada disso. Coisas
de casa: coser, cozinhar, bordar. Prendas. Prendas… Prepará-la para a vida,
para ter marido e filhos e saber cuidar deles.
A madre
ainda alvitrou;
- Qual música,
nem qual carapuça. Onde é que ela vai tocar lá na terra? E quem a ouve? Coisas
que dêem proveito, e também não é preciso muita reza. Eu cá não a quero para
freira. Só tenho esta, para mal dos meus pecados, e quero herdeiros. Não ando a
trabalhar para o cura.
A madre
lamentou muito, Não era educação completa, não senhor. Nem uns
conhecimentozinhos de francês, nem umas liçõeszinhas de piano. Era um
incivilizado, o homem. Tinha de se lhe dar desconto; não se lhe entendia mais.
Vinha lá das montanhas de Trás-os-Montes...
- Mas lá
quanto a formação religiosa, isso não.
Tivesse santa paciência. Tinha de
seguir as lições das outras - disse de si para si a madre.
Anos
depois, a Maria da Felicidade voltava à terra com um baú cheio de bordados, de
“naperons” pintados à pena, de flores
artificiais, de rendas de bilros e de alguns chambrinhos rebicados. Na mala
trazia uma Bíblia, um catecismo, dois rosários, três terços, um missal, uma
dúzia de “bentinhos”, medalhas e
pagelas de todos os santos.
A mãe,
quando ela chegou, expôs as suas obras de arte numa grande sala, convidou as
meninas mais abastadas da terra e as respectivas mamãs, e mostrou-lhes os dotes
da filha.
Teceram
elogios, admiraram, apalparam, apreciaram a perfeição dos avessos, o disfarce
dos remates e cá fora comentaram, rataram-lhe na pele:
- Que
exageros. Para que quer tanto bordadeco? Nós cá também sabemos fazer rendas e dar pontos. E aquelas flores de
papel!...Parecem as dos caixões dos mortos. É só para fazerem ver às outras…
- Os
pretendentes não vêm atrás dos bordados. Vêm atrás das oliveiras.
-
Oliveiras não lhe faltam.
- E
pretendentes também não.
E era
verdade. A Dadinha tinha montes deles e alguns bem do agrado do pai. Mas ela
punha tacha a todos. Nenhum lhe servia. Depois do que vira lá pelo Porto, era
difícil achar chinelo para o seu pé: queria homem que calçasse sapatos e não
aquelas botifarras. Homem que tomasse banho.
E
continuava bordando, lendo no missal. O pai já estava a perder a paciência. A
coisa não dava de si. Estava-lhe a parecer que ela ia dar em beata. Não
procurava as amigas. Achava-as todas umas brutas. Refugiava-se na igreja e até
já o povo dizia que era mal empregada tanta fazenda sem herdeiros.
Mas a
velha Estrudes aquietava os ânimos das mais insofridas.
- Quando
se faz uma panela, faz-se logo o testo. O homem há-de aparecer. Mas está-me cá
a parecer que não há-de ser destes lados...
E não
era.
Um belo
domingo, a terra foi alvoraçada por um grande acontecimento. Tinha chegado um
fidalgo lá das bandas de cima. Era esquisito, mas guapo, bem apessoado.
O brasileiro, de bigodinho retorcido, “cavanhaque” bem aparado, “palitó” de linho branco,
chapéu de palhinha e bengala, vinha sondar o terreno: é que já o tinham inculcado.
No
Brasil não se dera bem. Era preciso trabalhar muito e ele não fora para lá com
esse fito. Na mira da fortuna dum tio fura-vidas e solteirão, por lá se manteve
alguns anos e não houve maneira de se adaptar e de se entender com o velho que
era finório e percebera logo a marosca.
Quem
quer ter, tem de puxar pelo lombo, e o menino armara em “almofadinha” e
trabalho... nem vê-lo. Devolveu-o à
irmã; que o aturasse - senão que o tivesse ensinado a esfolar para saber quanto
custa a vida. Dar sentenças de espinhela direita e receber as patacas sem
alombar, não era com ele.
O
“papo-seco” não tinha aprendido a
trabalhar, mas aprendera a viver. Espalhou aos quatro ventos a fama da herança
que ia receber do tio. Tinha vindo à
terra visitar a mãe e arranjar mulher da sua condição. Quando o tio morresse
(fingia que não sabia da caboclinha...) teria de vender a chácara e fechar os
negócios.
Sim
senhor. Aquela vinha mesmo a matar. Bons casais espalhados por aquelas aldeias.
Dois moços para o serviço. Casa grande com duas moças para a cozinha. Uma velha
para tratar da criação. Um galego, já antigo na casa, para dirigir tudo. Nada
mau...Nada mau... A mocinha também não era de se deitar fora. Olhos grandes e
mansos. Bom sinal. Era preciso, era armar bem o laço.
Por ali
se passeou, admirando a terra, apontando com a bengala, acentuando o sotaque,
perguntando o nome das alfaias agrícolas que repousavam pelas ruas, fingindo
desconhecê-las. E tirava partido de tudo para impressionar os basbaques. Nem se
esquecera de ir assistir à missa do meio dia, de cuja hora se informara
antecipadamente.
O povo
nem assistia ao santo sacrifício. Tudo era olhadelas e cochichos:
- Quem
será? Que fidalgo! Não é daqui de perto...
A velha
Estrudes torceu o nariz e comentou para o juntouro que se formara no adro da
capela:
- Não me
cheira. É fidalguia a mais. Homem de siso não se apresenta naquela andaina.
Véstia branca nesta terra... Não diz a letra com a careta.
Aquilo
passou. A vida continuou. A Dadinha não esquecia os olhares furtivos que
recebera naquela missa. Esse sim, enchera-lhe as medidas. Ela também o mirou
bem. E verdade, verdadinha, era bem diferente daqueles brutamontes, de botas e
capote, esporas nos pés, que só sabiam falar de gado e feiras, de lagares e
moinhos.
A seu
tempo chegou um inculcador. Falou com o pai da morgada, expôs o assunto o
melhor que pôde (a paga estava de acordo com o resultado da incumbência),
elogiou a educação do rapaz, falou do dinheiro que ele mostrava aos amigos, da
casa de azulejos que o tio andava a fazer na terra, dos bocaditos bem bons que
os pais dele ainda tinham.
O bom do
Resende não foi lá muito na conversa. Bem sabia que aquele janota só tinha
empáfia. Porém não havia que escolher: entre uma beata maninha e uma mal casada
com filhos, mais valia esta última. Ele bem topara que a rapariga ficara presa
pelo beiço quando viu aquele pantomineiro. Não tinha outro remédio senão mandá-lo
vir fazer o pedido.
A boda
foi de arromba. A morgada era feliz. O pai tomava conta da casa, o marido
tomava sol na varanda, ela tomava conta do marido.
O senhor
“brasileiro” sentia-se, enfim, bem instalado na vida. Ia engordando. Montava a
cavalo. Passeava até à horta e, de vez em quando, mandava-se até ao Porto e
deambulava pela Foz para esquecer a Guanabara.
A mulher
ficava em casa a tomar conta das gémeas e da criadagem. Não fora para isso que
tinha sido educada?!
Com o
passar do tempo, a desilusão ia-se apoderando do seu espírito. Apercebia-se da
tristeza do pai, do embuste do marido, e sentia que o seu casamento tinha sido
um malogro. Desabafava na igreja, onde rezava horas a fio.
Com a
chegada de mais uma neta, o velho Resende desanimou de todo. Já eram quatro, e rapazes... não havia
maneira.
- Só me
dá fêmeas, aquele peralta. Sou eu sozinho no meio de tanta saia e de um
manjerico...
Andava
cismático, casmurro, e começou a tresler. A velha companheira, sempre tão
calada e resignada, também para ali estava a finar-se. A filha só tinha ossos.
E ainda por cima estava outra vez de esperanças. Era para o que tinha
habilidade, aquele calaceiro.
O neto
chegou finalmente, mas o velho já o não viu. Fora-se pelas vindimas mais pelo
desespero do que pela idade.
E ali
estava o seu descendente, o sangue novo dos Resendes. O menino era o ai-Jesus
da avó, o orgulho da mãe e a vaidade do pai.
Este mandara vir da terra um criado expressamente para tomar conta do
filho. Não o queria nas mãos de tanta mulher.
Ele lá
tinha as suas razões...
O moço
chegou também num domingo. Fora o galego que o fora buscar - um tanto amuado,
pois achava-se no direito de ser ele a tratar do patrãozinho. Mas o senhor
“brasileiro” entendeu que, com aquele
sotaque, só prejudicaria a educação do filho.
Começou
o rapazinho a passear as ruas e as hortas pela mão do seu criado. O moço era
alegre e vivaço e cantava tanto e tão bem que lhe puseram a nomeada de
“rouxinol”.
Ensinou
o amo a montar a cavalo, e foi pela sua mão que ele entrou na escola.
À noite,
iam os dois para o andar cimeiro. E então o menino mostrava-lhe os livros e
lia-lhe histórias. A mãe recomendava-lhes que rezassem o terço.
- Sim
minha ama - dizia o bom do Rouxinol - e instruía o garoto à sua maneira.
- O que
quer ser o patrãozinho quando for grande?
- Eu sei
lá. A minha mãe diz que vou ser padre. O
meu pai diz que vou ser doutor.
- Eu cá
acho que a sua mãe não tem lá muita mioleira no caco, com o seu perdão. Então
não diz também que as manas vão ser freiras! Se a gente não se precatar, vai
dar tudo em beatério nesta casa. Até eu vou para sacristão. Que deixe mas é de
dar tanto azeite ao bispo e tanto presentinho ao senhor padre. Mas ele a falar
a verdade, menino, não há melhor vida que a deles. Comem à tripa forra e não sabem donde lhes
vem.
- Mas eu
não quero, Rouxinol...
- Não
quer, porquê?
- Porque
me quero casar.
- Os
padres também casam.
- Com
quem?
- Com as
criadas. Olhe que vão sempre escolher as mais pimponas, as mais escaroladas. O
menino que pensa... Ai! menino, menino!
O Rouxinol tem muito que lhe ensinar...
Mal
ouviam os passos da mãe na escada, punham-se a arengar: "Santa Maria, mãe
de Deus..."
- São
horas de ir para a cama. (Louvado seja Deus, que rapaz tão atilado! Quem dirá
que é um pobre zorro, criado ao Deus dará, sem família, sem arrimo!…)
O
galego, que lhe tinha sapeira, aborrecia-se com a cantoria do moço. Que diabo,
era logo de manhã ao lusco fusco e ia até altas horas da noite. Aquilo era
demais e o que é demais passa a mal.
Um dia
deram-lhe umas ganas e disse-lhe:
- A
cantar é que a vais levando boa. Pensas que não sei as balelas que contas ao
menino? Andas-lhe para aí a meter indróminas na cabeça. Se a nossa senhora
sabe…
-
Vossemecê o que tem é dor disto - e batia com a mão no cotovelo.
À tia
Maria do Curral também já lhe andava a chiar no papo. Ficava-lhe em frente do
curral, a curralada da morgada. Mal ouvia o goeludo, punha-se a responsá-lo:
- Raios
partam tanto zurrar. É pior que o burro do ferreiro. E dizer que ainda há quem
lhe ache graça. Eu cá na minha acho que ele dava mais para moço de cego do que
para moço de casa.
O
Rouxinol andava murcho. Não lhe apetecia cantar. O patrãozinho lá ia para o
seminário de Bragança. Tinha de ser. Onde se mete saia de padre e saia de
beata, pouco serve teimar. A “Nossa Senhora” tinha aquela fisgada, ela e o
padreca, e não havia nada a fazer. Mas deixa estar que ele havia de lhes dar o
arroz…
- Deixe
lá menino, aguente uns tempinhos. Depois eu é que lhe vou ensinar o catecismo…
Nas
férias, os dois entraram em confidências. Aquilo era pior do que parecia; só
rezar, aprender latim, levantar cedo e a más horas, comer pouco e mal. Não
sabia donde aparecia tanto feijão chícharro, nem tanto grabanço. Também não
sabia para onde iam os salpicões que a mãe lhe mandava…
- E quanto
a saias, menino?
- Nem
vê-las. Só as do bispo e as dos padres.
- Quer
um conselho? Faça-se burro. Deixe correr a coisa. Deixe passar mais este ano.
Depois é cá comigo…
O
Rouxinol também tinha novidades a dar-lhe: com o seu dinheirito tinha comprado
um assento no cimo das Eiras. Era pequeno, mas dava para fazer um buraquito. E
foram os dois ver a propriedade.
O pior
foi a tia Maria do Curral; adregou de passar por ali, escarmentou-se e fez um
peneiro dos diabos. Já se andava a vender a terra a todo o moinante; só faltava
darem-lhe cadeira na missa.
- Patrão
- dizia o ofendido - nunca tive nada de meu na minha vida e o que tenho saiu-me
do corpo. Porque será que esta feiticeira me anda sempre a acinzentar? Ainda um
dia lhe parto os cornos, ai parto…
- Não faças
caso. Ela é assim para toda a gente. Vê se pões uns marcos bem fundos, não t’os
vá ela arrancar…
No ano
seguinte, rebentou a bomba: o filho da morgada tantas fizera no seminário que
tinha sido expulso.
A mãe
desfez-se em lágrimas, o padre desfez-se em ameaças e censuras contra os maus
exemplos e as más companhias. O pai não deu por nada. Desde que caíra do cavalo
e partira a cabeça, era para ali um mono. O galego, com a perna arrasta, é que
resmoneava:
- Coisas
do instrutor…
Mandaram-no
para o Porto, para um bom colégio, e só nas férias vinha a casa. Agora quem era
o mestre, era ele. Contava ao seu Rouxinol as suas aventuras amorosas. Este ria
a bandeiras despregadas.
-
Patrãozinho de um raio. Saiu-me obra acabada. Se o seu avô, que Deus tem, o
visse…
Pois a
casa do Rouxinol, o palácio, como lhe chamava o patrãozinho, também já tinha
alicerces. E mais não crescia, porque o dinheiro estava na casa de quem o
tinha…
- Tem
calma, Rouxinolzinho - dizia-lhe o amigo. - Eu surripio umas notas da minha
mesada e a casa há-de subir.
- Nem
pensar, meu amo. Mais queria morrer. Eu sou pobre, mas mais limpo que pano
alveiro. Não quero enganar a “Nossa Senhora”.
-
Espera, eu não te vou dar nada nem enganar ninguém. Vou emprestar, que é
diferente. O que é preciso é pormos o palácio de pé.
E a casa
ia subindo; as paredes iam sendo feitas às tiras, conforme o dinheiro. A planta
era do patrão, a pedido do criado: duas portas - uma à frente para entrarem as
pessoas, outra atrás para entrarem as bestas; em cima, uma porta rasgada, um
palanquim e duas janelas; escadas por dentro, por mor do frio.
Os
caibros e as traves tinham vindo das propriedades do amo. Só faltava o telhado.
Mesmo assim, o Rouxinol aventurou-se a mudar para lá a enxerga. Pô-la sobre
umas tábuas, cobriu-a com uma manta e ali dormiu todo o verão. De madrugada,
fazia coro com os pássaros que viviam nos olmos.
Enquanto
crescia a casa do criado, minguava a fazenda dos amos. Sem o galego, sem rei
nem roque, ia tudo água abaixo. O novo caseiro só metia ao bolso e odiava o
Rouxinol que estava sempre a advertir a patroa.
Nesse
ano, o palácio ficou com telhado. E de telha vermelhinha, da francesa, não da
Saldonha.
Mudou-se
de vez o cantor. Levou alguns trastes que a ama lhe dera. (O menino também lhe
tinha trazido um candeeiro dos modernos que era todo o seu orgulho). Botou
sobrado, tapou as janelas com tábuas e respirou fundo, o grande proprietário.
- Agora
o resto vai com o tempo, meu rico patrão. Quando puser as portas, vou ver se
arranjo uma companha para viver comigo. Recebidinha de igreja como uma madama.
Com casa de sobrado, hão-de ser todas “a mim… a mim…”
- Já
tens alguma debaixo de olho?
- De cá
não, têm-me osga. De lá de riba, das minhas bandas…
O amo
ria à socapa. Queria-lhe fazer uma surpresa. Estava já a ver a cara do criado
quando visse as vidraças nas janelas… Entretanto, os diálogos continuavam:
- Quando
os teus parentes virem o teu palácio…
- Eu não
tenho parentes, meu patrão.
- Sempre
hás-de ter pelo menos uns primos…
- Os
pobres não têm primos. Os ricos é que são todos primos uns dos outros.
À noite,
o Rouxinol estava caído nas Eiras. Mirava lá de longe o seu palácio e fazia mil
e um projectos. O patrão, que não tinha nada que o distraísse naquele ermo, ia
procurá-lo para se rir um pouco:
- Pois é
verdade, Rouxinol, e sou eu que to afirmo: a Terra anda.
- Ai
menino, sempre me vem com cada uma… Eu acordo sempre no mesmo sítio…
- Então
porque é que a Lua não está sempre no mesmo lugar?
- Porque
é mulher, e as mulheres andam sempre a dar ao rabo.
- E o
Sol? A Terra é que o esconde quando roda.
- Nada
disso. O Sol anda atrás dela, o magano. Isso que o menino diz são coisas de
doutores e eu posso-lhe garantir que anda para aí muito doutor que é burro.
O jovem
ria à gargalhada. Era melhor do que ir ao cinema. E tinha ali um amigo, um
amigo bom e puro, o que é coisa rara. Mas também ele pagava-lhe na mesma moeda.
Só estava para ver a cara que ele faria… E ambos voltavam felizes para as suas
casas.
O
Rouxinol estendia-se na sua tarimba e monologava:
- Como é
bom termos umas palhas: as nossas palhas! Como um homem é rei em sua casa!
No
inverno é que foram elas. O cieiro vinha lá do “Amieirinho” fino como agulhas e
repassava-o na cama; o serrano soprava da Serra de Bornes, entrava pelas
frinchas das janelas e das portas, e ele batia o dente como se estivesse a
bater uma maleita. Deixá-lo. Ia-se à lenha à adega (!). Fazia uma fogueira… e
adormecia no lar. Por vezes aquecia um púcaro de vinho com mel e consolava-se.
No
Natal, o patrão ralhou-lhe:
- Grande
bruto, andas a arranjar alguma. Porque não vais dormir lá a casa? Porque não
esperas pelas portas? Lá que brinques no verão, está bem, agora com este tempo,
é burrice.
- Ora…
deixe-se de coisas. A nossa casa é a nossa sepultura, a sepultura da nossa vida
e eu nunca tive onde cair morto…
- Espera
até à Páscoa, homem. Então é que vais ver o que nunca viste… Mas espera, alma
do diabo. É preciso ter paciência.
Paciência
tinha o Rouxinol. Fosse do frio ou de uma pontada que lhe derreava as costas,
já não cantava. Quando lhe perguntavam por que tinha perdido o pio, dizia que
estava à espera do cuco para cantarem à desgarrada.
A velha
ama foi encontrá-lo no catre a tremer de frio. Levou-o para casa. Mas a febre
aumentava e ele chamava constantemente pelo seu patrãozinho, pelo seu menino.
Mandaram vir o médico. A coisa tinha-se complicado. O filho, mal recebeu a
carta da mãe, alugou um carro e pôs-se a caminho.
Quando
chegou à vila, meteu-se pelos atalhos e correu, correu até perder o fôlego. Ele
tinha adivinhado que aquele maluco, no meio de tanta euforia, ia dar cabo de
tudo.
O
Rouxinol estava prostrado. Mas sorriu-lhe, sorriu-lhe feliz. Tinha um último
pedido a fazer-lhe:
-
Menino, leve-me para as minhas palhas…
Fez-lhe
a vontade. Agasalhou-o carinhosamente, maternalmente. Pô-lo no carro de bois e
levou-o ao seu palácio. Aí, mandou-lhe preparar a cama com os melhores lençóis
de linho e os mais fofos cobertores de papa. No lar ardia uma grande fogueira…
O médico
não gostou daquele disparate. Mas assim, como assim, não havia nada a fazer.
-
Menino, chame o senhor padre…
O padre
veio e o Rouxinol, depois de expor as suas culpas, pediu-lhe que fosse
testemunha da sua última vontade: deixava a casa ao seu amo.
Este não
continha a emoção. E o aio ainda teve forças para lhe dizer:
- Não se
consuma, patrãozinho. O que tem de ser, tem muita força. Temos de aceitar o
nosso destino…
Onde
aprendera ele aquelas palavras? Não eram mais ou menos as de um grande filósofo
da Antiguidade?! Mas o Rouxinol nunca abrira um livro, muito menos de filosofia.
Onde aprendera tanta coisa? Como conseguia transmitir-lhe tantos ensinamentos?
Grande amigo! Grande mestre!
Deu a
casa à igreja. Nunca mais quis saber dela. No verão, não veio a férias.
Desculpou-se com uma cadeira que deixara para Outubro…
Já lá
vão muitos anos e ainda não conseguiu esquecer; um grande amigo nunca se
esquece! E tem bem clara na mente a quadra que ele tantas vezes cantava:
A minha escola foi a rua,
Foi nela qu’eu aprendi.
Aquilo que m’ensinou,
Nunca mais o esqueci.
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