04 março 2014

Património Imaterial do Douro (Reedição)


Alexandre Parafita, Património Imaterial do Douro. Narrações Orais. Contos. Lendas. Mitos
vol. 1 (Tabuaço)  e vol. 2 (Vila Flor e Carrazeda de Ansiães)


Notas para apresentação da obra na FNAC do Centro Comercial Vasco da Gama, Lisboa, 24/02/2011 [a complementar / desenvolver / precisar em termos orais].
Apesar do seu aspecto lacunar e de a maioria das ideias apenas ser sugerida neste documento e ter sido essencial o seu desenvolvimento oral, aqui se deixam estas notas a marcar o lançamento.

1.
Começar com referência a Alexandre Parafita e ao seu trabalho sem descanso no domínio da literatura de tradição oral: pelos estudos académicos realizados, pelas inúmeras publicações efectuadas e pelas recolhas feitas na região do Douro e de Trás-os-Montes, é hoje um dos mais importantes investigadores do nosso país neste domínio. Ao contrário de muitos, tem dado conta pública do seu trabalho, e esta é uma questão essencial pois é este um domínio de claro interesse geral e não apenas dos estudiosos.

2.
A investigação onde assentam as obras aqui em apresentação integra-se no Plano de Inventariação do Património Imaterial do Douro, levado a cabo pelo Museu do Douro, com o apoio da FCT (Fundação de Ciência e Tecnologia) e em ligação com importantes departamentos universitários de que o autor faz parte [Universidade Nova de Lisboa e Universidade do Algarve]. A iniciativa e o apoio são essenciais, mas não o é menos a sua integração em rede, para podermos dispor de bases de dados sérias, porque fiáveis e obedecendo a critérios científicos, que possam servir de suporte a novos estudos.
É o próprio conceito de museu que vai evoluindo, ganhando vida, cada vez mais longe de ser um exclusivo repositório de objectos tantas vezes desligados das pessoas que os fizeram ou que a eles estiveram ligadas. Por tudo isso cabe aqui cumprimentar o Museu do Douro na pessoa do seu Presidente e fazer votos para que o trabalho continue e possa abranger todos os 22 concelhos da região do Douro.

3.
A UNESCO deu um impulso essencial na chamada de atenção e no tratamento do património imaterial. Hoje, de forma atabalhoada, assiste-se a uma tentativa de classificar como património imaterial da humanidade certas realidades ainda antes de serem estudadas e inventariadas e obedecendo muitas vezes a objectivos políticos pouco claros ou critérios científicos pouco sérios, numa palavra, porque o tema está na moda. Tudo assenta, muitas vezes, num conceito de património imaterial que é redutor porque ligado às suas manifestações mais epidérmicas e mais vistosas.
Vejamos com clareza do que estamos a falar.

4.
Vou começar por dar-vos um exemplo. O meu pai tem 90 anos e é um pequeno agricultor, que ainda hoje faz a sua horta. Dizia-me há alguns anos, algo assim: sabes, é preciso saber ler uma horta. Tu escreves poemas, mas a minha horta não é a mesma coisa? Tem regras, há saberes sem os quais não resulta, exige uma disposição que encante também os olhos e toda ela tem de respirar harmonia, ser tratada de acordo com as boas luas, a terra preparada de uma certa maneira, os renôvos semeados em tempo adequado, os sulcos nem podem ficar lisos nem 'galgueiros', a qualidade de cada coisa que se planta deve ser assegurada de modo bem claro. E continuava, expondo todo um saber que os livros de horticultura já terão ultrapassado, mas não creio que tal tenha acontecido em todos os aspectos, nomeadamente quando o hortelão não tem ao seu dispor os recursos da horticultura moderna. Esse saber resulta de centenas de anos de vivência e experiência humanas e foi-se acumulando, nele assentando a muita da nossa sobrevivência como espécie. Todo este saber é património imaterial.

5.
O património imaterial é, antes e acima de tudo, uma questão ecológica, isto é, tem a ver com o ambiente em que conseguimos viver de modo equilibrado, enquanto seres humanos.
Deve ser entendido a vários níveis, pois nos permite:
- uma explicação global do mundo onde vivemos;
- uma explicação das realidades de vário tipo com que lidamos
Apenas através do património imaterial conseguimos perceber como chegamos aqui, ao século XXI, tal como somos e com o que temos. Nessa perspectiva estamos a falar de uma parte importante do nosso bilhete de identidade, enquanto humanidade, enquanto pessoas.
Por isso, o património imaterial também deve ser entendido como
- um conjunto de saberes da vida e da morte, em que várias camadas, por vezes contraditórias, se foram sobrepondo ao longo de séculos e nos foram configurando como aquilo que somos hoje.

6.
Vejamos mais um exemplo simples, mas profundamente significativo, de um gesto que já raramente fazemos, pois a chamada evolução nos levou a substituí-lo por outros gestos ou realidades.
- As mãos em concha ou ‘ambuça’ [em mirandês] estão entre aqueles gestos que nos fizeram. Para o praticarmos exigia-se uma postura erecta, por isso tal gesto é um passo essencial na caminhada do homo erectus.
Há muitos outros gestos como este que são gestos fundadores da nossa humanidade, que muitas vezes se nos apresentam também sob a forma de lendas ou mesmo de mitos. Neles fica inscrito o nosso ADN cultural e civilizacional e por aqui se vê bem a importância do que estamos a falar.

7.
Devemos ter presente que, ao contrário do que algumas apressadas teorizações dizem, a transmissão oral é de um grande rigor e fidelidade quando se trata de dados objectivos [Dar o exemplo da toponímia menor, que se mantém durante séculos, também ela parte do património imaterial pois, no nosso caso, é a principal referência do nosso actual modelo de propriedade, nascido na Idade Média. Vd. o caso do Reguengo de Palaçuolo a partir de documento de 1172].
O seu património imaterial, nas suas várias vertentes, é a única história que alguns povos/aldeias podem ter, ainda que não venha em documentos reconhecidos pelos historiadores. Estes aprenderam a lidar com pedras e outros materiais [a arqueologia], mas ainda não sabem muito bem o que fazer com estes (i)materiais. Há domínios do saber, como estes, que ainda muito têm para avançar e, por essa via, vencer os preconceitos (pseudo)científicos existentes.

8.
Há mitos e lendas que chegaram aos nossos dias. Este livro de Alexandre Parafita é um repositório riquíssimo dos mesmos, em múltiplas variantes. Estão em risco de se perder por mudança de condições, sendo nesse risco que assenta o propósito de reconhecimento da UNESCO e a necessidade de recolha para manter, não para conservar imutável: a vida tem de mudar e não podemos impedir a mudança, devendo esta ser encarada como algo inerente ao devir humano, não dependente da nossa vontade.

9.
Novos mitos nascerão, pois sem eles deixamos de ter explicação para as coisas, pois nem tudo a ciência explica. Também aí estamos perante património imaterial, o que agora mesmo, neste preciso momento, orienta os nossos passos, mas possivelmente ainda não estamos em condições de o considerar como tal. Um dia não faltará, espero, quem o faça.
Com estas notas, espero ter feito um enquadramento do património imaterial e, portanto, de alguns conceitos e realidades que são essenciais para perceber o alcance dos livros que aqui apresentamos hoje.

10.
O trabalho que aqui nos apresenta Alexandre Parafita é notável, a prometer continuidade, pois os volumes publicados apenas são referentes a 3 concelhos dos muitos que fazem parte do Douro.
Como o próprio autor reconhece, esta é apenas uma gota de água na recolha do nosso património imaterial. Mas creio que um aspecto essencial é publicar, como já referi, dar a conhecer o material reunido e também nisso o Museu do Douro e a Editora Âncora [Dr. António Baptista Lopes] estão de parabéns.
Sabemos que ao nível das Universidades muito se tem feito e se está a fazer, porém, pouco eco público temos desse imenso labor. É uma pena e essas contas devem ser prestadas.

11.
Vejamos melhor o caso da toponímia menor, de que também fala o Professor Alexandre Parafita, salientando a sua enorme importância.
A toponímia menor está em pleno desaparecimento, sem que tenha sido previamente recolhida na íntegra e elaborada uma base de dados credível e acessível para estudo. Muitos dos registos estão falseados, pois há quem ache que deve emendar o povo, pensando que o povo fala mal. Porém, em regra, os ignorantes são eles. A toponímia é, entre outros aspectos, algo que é um elemento fundador da nossa organização social, podendo ser, em muitos casos, associada aos mitos fundadores ou neles estando incorporada.

12.
Há um fundo comum que vai muito para lá do Douro e que só uma recolha sistemática permite identificar e estudar. Seja nos contos, nas lendas, nos mitos, etc. há constantes que é importante estudar e analisar.
- As (nossas) senhoras sete irmãs, que variam conforme os sítios;
- As formigas ou cobras que explicam o desaparecimento dos lugares: mito ligado ao actual modelo de povoamento;
- A implantação do cristianismo e as capelinhas dos montes, nomes de fontes, etc. em substituição dos cultos pagãos;
- O trauma que significaram as sucessivas ondas de povoadores, com particular destaque para os mouros a que a religião tratou de dar cores especiais: o sofrimento que se acumulou ao longo dos séculos, bem documentado nos santos-cristos e suas imagens e capelas existentes em todas as aldeias e com que o povo se identificou ao longo de séculos: o mito do vencedor/cavaleiro, não há o mito do derrotado ou do que sofre a guerra na pele;
                - As fontes bieitas ou beneitas;
- A mitologia e os seres que a povoam: facanitos, trasgos, mouras encantadas, os astros [curiosamente não vi que se fizesse referência a tempestários, mas eles existem generalizadamente] etc.;
- O pobrezinho como encarnação de Cristo e a necessidade de ajuda, essencial numa sociedade onde a fome e as carências eram muitas;
- As práticas sexuais e a infidelidade conjugal [ex. o caso do marido que volta da arada pela aguilhada e encontra a mulher com o padre na cama: cantiga mirandesa que os Galandum Galundaina popularizaram];
- As bruxas e as suas práticas e transfigurações.

13.
É urgente explicar que não estamos apenas a falar do passado, mas do presente e do futuro. O património imaterial não pode estar apenas associado a algo que está morto, que já nada tem a ver connosco, que de nada serve, que é uma despesa inútil e não um investimento em nós mesmos.
Essa visão é uma das razões que leva as pessoas e os poderes a não se interessarem a sério pelo património imaterial. Como disse no início, estamos perante algo que podemos definir como fazendo parte da ecologia, do equilíbrio do meio onde vivemos.

14.
É urgente alargar as recolhas a outros bens imateriais menos sonantes, menos conhecidos, mas igualmente importantes. Que o exemplo do Museu do Douro e de trabalhadores como Alexandre Parafita não pare de frutificar e de crescer.

Parabéns à Âncora e ao Dr. Baptista Lopes
Parabéns ao Museu do Douro
Parabéns Alexandre Parafita

Lisboa, 24 de Fevereiro de 2011
Amadeu Ferreira



2 comentários:

manuel cardoso disse...

"A toponímia é, entre outros aspectos, algo que é um elemento fundador da nossa organização social, podendo ser, em muitos casos, associada aos mitos fundadores ou neles estando incorporada". Completamente de acordo!

Anónimo disse...

António Baptista Lopes: Lançamento da obra "Património Imaterial do Douro" na fnac.vasco da gama em Fevereiro de 2011. Notável apresentação de Amadeu Ferreira. Na assistência o então líder da oposição, Pedro Passos Coelho, e o deputado a AR e autor da Ancora, Feliciano Barreiras Duarte. O meu obrigado a Academia por este refrescar da memória.