FraciscoNiebro, ArsVivendi, ArsMoriendi, Âncora Editora, Lisboa, 2012
Resumo
Existe uma língua antiga, quase só
falada até há uma dúzia de anos. Nestes três lustros, saltou para a ribalta e
hoje escreve-se profusamente e afirma-se sobretudo nos domínios da comunicação
e da literatura.

Assim, foi FraciscoNiebro quem
escreveu ArsVivendi, ArsMoriendi, em
Mirandês, como deve ser, por se tratar de uma obra poética. Amadeu Ferreira não
poderia ter escrito esta obra em Português porque a sua forma e o seu conteúdo
são de FraciscoNiebro e só este a poderia ter escrito; nem sequer se atreveu a
traduzi-la porque Niebro pensa e escreve só em Mirandês. Então, ou escrevia
tudo de novo e do princípio ao fim (outra obra), ou encarregaria alguém (no
caso, António Cangueiro e Rogério Rodrigues) da tradução. Uma obra bilingue,
com toda a propriedade.
1.
Os trabalhos e os deuses
O desespero de Orfeu
A mitologia clássica (e toda a
cultura que a suporta) percorre transversalmente esta obra poética, enquadrando
a cultura e as vivências mirandesas.FraciscoNiebro, tal como Orfeu, desceu ao
inferno da cidade para trazer de volta ao mundo dos vivos a sua amada terra,
cantando-a com a sua própria lira – a língua mirandesa.Niebro venceu o desespero
ao regressar à sua origem e à sua gente, para lhes conferir a dignidade a que
têm direito: ninguém melhor do que eles detém a “Arte de Viver / Arte de
Morrer”.
A arte de viver (deixa perceber o
poeta) só se alcança com a arte de morrer; assim se compreende que estejam
“vivos os meus mortos”; é que ele não os deixa morrer, mantém-nos vivos para
que neles o futuro lance raízes.
É triste ser velho será porventura um subcapítulo profundamente existencial(ista). Sem
rodeios, renega o eufemístico ditado de que velhos são os trapos; não, “só as
pessoas são velhas” e se o não forem, tanto pior; é porque morreram novos.
O carpe diem de Horácio é, em Fracisco, “um
sereno olhar de frente”, despreconceituado sobre essa idade existencial, a
única de que não teremos saudade. Se formos coerentes connosco mesmos até ao
fim, não vamos ter medo da velhice. Viver o tempo certo, não demorar mais do
que aquilo que era suposto – isso é o que está certo. De outra forma, se
demorarmos numa fase da vida mais do que o previsto, já ninguém esperará por
nós. Interrogamo-nos, então, onde ficará a última fronteira, quando a vamos
ultrapassar. Estas e outras dúvidas existenciais são cavalos a trotar na nossa
cabeça, na noite da vida. A noite será a velhice; está prenhe de um exército de
fantasmas que simplesmente vagueiam porque não têm pressa de ganhar a guerra; a
morte está segura da vitória, qual “puta que nunca se deixará por nós foder”.
Longe, longe era a cidade
Deixamos a
cidade para trás e ligamo-nos à terra – uma maneira de a ela nos acostumarmos e
de nos lembrarmos de que um dia a ela (a outra terra) havemos de voltar, porque
“pulviseset in pulveremreverteris”.
Mas a cidade está
bem presente nas lembranças do poeta que se misturam com as da terra, de quando
era criança e observava o trabalho das andorinhas fazendo seu ninho com o barro
que moldavam com o peito. E o voo das andorinhas que lhe trazia a luz da primavera.
E o som do ruminar das vacas que se misturava com o chilrear dos pássaros do
fim do verão, tão diferentes das andorinhas por não fazerem filasno voo “a la
tarchica”. Entra, então, o outono da vida, o tempo oportuno de reviver
princípios que os pecados de juventude haviam murchado. E prosseguir caminho.
A morte da horta
Apesar de
tudo, com o retorno à terra, é preciso refazer a horta. Na primavera, tudo
desperta como se de uma nova paixão se tratasse. Como se fosse o recomeço da
vida. Mas, nesta altura, não sabemos se vamos conhecer a maioridade das árvores
que plantamos; tampouco sabemos se os filhos vêm colher seus frutos; por isso,
descansemos do muito que laborámos; a horta será aquilo que eles (não) quiserem
que seja.
Deuses
O homem,
enquanto contador de histórias (historiador), criou os deuses, mas reservou-lhes
um papel secundário, no tempo ab origine,
no génesis – o tempo da criação.Nós agora, à medida que o nosso fim se
aproxima, sentimos necessidade de contarmos essas histórias como se assim nos
tornássemos “andiuseseimortales”.
Há vários
tipos de deuses: os que já não servem para nada, como Júpiter, o das trovoadas,
porque o avanço da meteorologia resolve a necessidade de conhecero estado do
tempo; os que continuam na ordem do dia, como Marte, porque as guerras nunca
deixaram de se fazer, nem deixarão; e outros que foram elevados ao estatuto
divinal, como o Dinheiro. Todos eles lutam por um elevado número: de fiéis, de
orações, de condenados à fogueira, de sacrifícios…
Deixa me falar-te dos anos
O poeta
recua ao tempo da sua meninice, em que não se celebravam aniversários. Relembra
esse tempo de má memória: as moléstias que matavam, sem olhar à idade; a mulher
só frequentava a escola da vida, a dureza do trabalho do campo; a emigração que
lhelevava o amparo do homem e também os filhos pouco mais que crianças e ela
ali ficava sozinha, a envelhecer. O triunfo deles a ela se deve; já não
precisam do que ela faz; precisam dela mas, se calhar, ela já partiu.
Na verdade,
a mulher sempre esteve interventiva nas grandes transformações do mundo; mais,
foi por ela que se operaram, qualquer que fosse a sua condição.
Mas não é
preciso esticar os anos. Não se lembra já o poeta (diz ele à sua musa) de como
estava o tempo quandocumpriu vinte anos. Foi há tanto tempo e já teria morrido
se tanta informação tivesse sido acumulada na sua memória. Mas uma coisa sabe:
era primavera e ela, a musa, trazia um lenço na cabeça, cujo brilho lhe
iluminou a noite de todas as suas dúvidas existenciais.
Do que o
poeta não tem dúvidas é do tempo em que “ninguém festejava o dia dos meus
anos”. Tudo está presente na sua memória: a dureza de vida, a casinha, a mesa
despida de louça com desenhos bonitos e de talheres e copos, a família grande…
Faria sentido celebrar aniversários? Hoje, tantos anos passados, “já me vão
fazendo anos”: a velhice que se aproxima é uma preciosidade; há que celebrar
cada ano que se cumpre como “um milagre” que acontece; há que agradecer não
pelo tempo em que não festejavam o dia dos seus anos, mas “por habertenidoaqueilhagiente!...”.
Pequeno tratado da arte da enxertia
Será este
subcapítulo uma alegoria à ruralidade vivida pelo poeta.
A arte da
enxertia consiste em aprender a lidar com as condições que se nos deparam: a
persistência é a chave para o sucesso. Em algum outono (mesmo que não se saiba
qual) os enxertos hão-de dar fruto.
Para ir aos
pássaros era preciso madrugar; a ansiedade precedia a entrada triunfal na
aldeia: subia a rua com um rosário de pássaros ao pescoço, qual general que
arrastava a sua vaidade entrando em Roma à frente dos seus exércitos
vitoriosos.
A
longevidade das oliveiras equivale a fazer troça do tempo que as torna mais
velhas que o próprio tempo; para os humanos (que procuram, a todo o custo,
escondê-lo) é uma lição difícil de aprender. A vitória sobre nós próprios (que
Píndaro não poetou nem cantou) é a que nos torna deuses, uma vez que outros não
existem. A persistência, a tal chave da arte da enxertia, reafirma-se como a
força dos fracos; neste caso, eles serão vencedores e deles rezará a história.
Mas o poeta
tresmalhado há-de voltar um dia às rochas e às escarpas, que é como quem diz,
às arribas. Há-de caminhar por entre as flores das esteves e os frutinhos dos
zimbros, por sobre o rio; registar os sons da aragem e a melodia da água em
cachões; voltar às raízes do esquecimento eterno, na contemplação da
simplicidade dos elementos: água, pedra, terra e flor.
Longa é a noite
A velhice
torna longa a noite; dá para ouvir as cantigas dos pássaros que nos inspiram
para viver o dia que entra de madrugada: orientar-nos para onde possamos sentir
a frescura da primavera ou desfiar lembranças, contas, abrir sorrisos de
apaixonado “numa abrigada ao sol de janeiro”. Há tanto para falar que o tempo
pode não chegar.
Longa é a
noite mas os pássaros alegram-na com seus cantos de tal forma que ela passa sem
que se dê por isso. Os cantos embalam o sono e levam-nos num voo mágico; quando
eles se calam, vem então a cigarra a acender a fogueira da manhã; por ela nos
deixamos encantar, como se regressássemos ao tempo da meninice.
2.
O caminho de casa
Lição de Filosofia
Em linguagem poética, FraciscoNiebro
lança-nos um conjunto de metáforas filosóficas (a obra é uma metáfora do
princípio ao fim, mas estas são mais contundentes), que nos fazem refletir: “a
cultura alimenta-se da vida” e não das catedrais que “de tão altas, nada em
importância se lhes mede”; o saber, posto como fronteira da felicidade, “é
veneno que te sabe bem e nada mais”; os significados de amor são tantos quantos
se queiram criar e crescem como erva simples “mas tão essencial que dá os seus
rebentos a comer”. A Filosofia está aqui personificada, claro, como Sócrates
que, sabedor de que ter não é um verbo, mas um problema sem solução, “se
encostou ao ser e nunca mais de lá saiu”. E nós teimamos em nosdebruçarmos à
janela que faz a pálida imagem do que pretendemos ser. A alma do ser tem um
mundo solidário como céu, num tempo de flagrantes contrastes: as palavras e os
sorrisos da solidariedade trocam-se “por sangue e por dor”.
O caminho de casa
A casa é o sítio da memória, aonde
sempre voltamos e onde continuamos a construir novas lembranças; faz-nos
reconhecer a nossa própria identidade. Se tal não for possível fisicamente, ao
menos em sonhos voltamos ao ninho da nossa infância, “ao início de tudo” – ao
paraíso.
Mas vale apena acompanhar o
raciocínio do poeta: o paraíso é o lugar onde nadafazemos, onde nada temos que
conquistar, mas também onde não somos livres; onde somos dependentes como um
ser acabado de vir ao mundo; o pecado original é então o meio que nos leva a
sair do ninho, o acto que nos torna adultos, com dignidade.
Em todo o caso, convém não esquecer o
caminho para casa porque ele é feito de memória. Assim sendo, os sinais desse
caminho estão dentro de ti, são a tua identidade. Talvez por isso, o poeta
recobra a memória dos silêncios amarelos do Planalto (Mirandês, entenda-se),
sem ondas de seara, nem ceifeiros, nem grão que permita alimentar um pássaro
cujo voo rasante o levasse a uma sombra de fim de tarde. Mas não deixará ele de
reparar nas paisagens estéreis que são a memória de um tempo de fertilidade; ele
sabe que tem que descer à terra, que as coisas simples, sem valor aparente, têm
cotação no caminho que o reconduz a casa.
Coisas miúdas
Agora o poeta fixa a sua atenção nas
coisas simples do campo. As primeiras passagens deste subcapítulo apresentam-se
num estilo a que chamaremos de prosa poética. As últimas serão mesmo poesia. Umas
e outras se constroem um reflexo da vida do Planalto. O significado dessas pequenas
coisas está descrito com tanta simplicidade que elas acabam por adquirir a
profundidade das grandes questões filosóficas. Afinal as coisas importantes são
inúteis; são simples as paisagens sem limites; “só amplas vistas te libertam da
cadeia onde passas os dias”, preso sem condenação.
A ecologia é tratada no amanho da
horta: as pequenas lides, as alfaias de abrir os sulcos para a sementeira ou a
rega, a floração, o crescimento, a maturação e a colheita; as cotovias em seu
voo que, antes de poisar, desenham um arco que permite a visão da brancura dos
seus peitos. Alguém se havia lembrado desta minudência? É assim: a ecologia está
reflectida em tantas destas “menudas” do ciclo agrário, sem mais; para a
descobrir precisamos de prestar atenção a todos estes sinais de vida.
Coisas “menudas” como os “gramitos,
cachicos de bides” nada valem, mas o assar da sardinha depende desses nadas
ardentes. Coisas tão simples que, se não lhes damos importância, jamais
alcançaremos o que toda a vida procuramos – a nossa felicidade – e, à falta
delas, nos finamos.
Mas há muitas “menudas”; tantas e tão
surpreendentes que é preciso lê-las – tarefa que, neste capítulo, se torna tão
grata que nem damos pelo folhear das páginas.
Língua
A língua mirandesa? Não sei bem; sei
(fiquei a saber):o que o poeta escreve devia calar fundo em cada um de nós: por
pouco falada e desconhecida que seja uma língua, não deixa de ser um pilar do
mundo; é pelas pequenas fendas que se arruínam as grandes construções.
Procuramos palavras para dizer o que somos; o que o poeta faz é procurar
palavras, sorvê-las e embriagar-se com elas. Às vezes, descobre uma nova
palavra que o deixa louco ao fugir e voltar, nesse vaivém feito de alegria onde
sempre penetra a tristeza. Conseguirá ela transmitir o nosso pensar ou é a
língua em seu processo (re)construtivo?
3.
Pedrinhas que fazem sempre mosaicos
Com uma centena de “pedrinhas”, o
poeta construiu um conjunto harmonioso e variado de mosaicos, rústicos, de uma
vidência tão simples que nos levam a dizer “como é que nunca tinha pensado
nisto?”. As “pedrinhas” são triangulares, tercetos silogísticos (quase)
aristotélicos: duas premissas e uma conclusão; esta deve estar contida
naquelas.“Pedrinhas” em jeito de haiku, a estrutura do terceto japonês, de cinco/sete/cinco sílabas.
Desta forma, os mosaicos acabam por formar um painel filosófico de louvorà
Natureza e a todos os elementos que a constituem: água feita chuva que engrossa
as ribeiras e emprenha os campos da “prainada”; terra onde, dessa prenhez,
nascem flores – está chegando a primavera; ar do voo das andorinhas e do vento
que corre veloz e atira para longe as folhas amareladas e anuncia um novo tempo,
o outono; o fogo é de festa no inverno e o sol de verão transforma a paisagem
em arco-íris, com todas as cores, formas, figuras… O painel de mosaicos fica
então completo, tal como a Arte de Viver
e de Morrer; afinal, “o mundo até é bonito”.
António A. Pinelo Tiza
Sem comentários:
Enviar um comentário