03 março 2014

Etnografia Transmontana,por António Fontes

Sinopse: O Barroso é ainda um dos lugares no qual podemos entregar o tempo à magia da memória do passado e às manifestações religiosas e profanas que continuam cimentadas no presente.
Neste primeiro volume, o percurso etnográfico revolve o fio à meada das crenças e tradições, perdidas e usadas, passando pelas sombras do diabo, mezinhas e bruxarias, definhando o aspecto lúdico do dia-a-dia até à santidade dos dias e suas festas, posfaciando na sabedoria popular cromatizada através dos ditos do povo.
«É por isso que subo nos outeiros e grito: vinde ver o mundo a acabar», apesar de ficar registado neste trabalho de campo a bom tempo.

Biografia: António Fontes nasceu em Cambeses do Rio, Montalegre, em Fevereiro de 1940.
Terminou o curso de Teologia no Seminário de Vila Real em Junho de 1962. Foi pároco, de 1963 a 1971, em Pitões das Júnias e Tourém e, de 1966 a 1971, em Covelães. É actualmente, e desde 1971, padre nas freguesias de Mourilhe, Meixide, Soutelinho da Raia e Vilar de Perdizes, no concelho de Montalegre.
Fundou o jornal Notícias de Barroso. Licenciado em História pela Universidade do Porto, é autor de vários trabalhos de recolha etnográfica e investigação nas áreas de Antropologia, Arquitectura, Etnografia e Música. Organizou a representação de «O Auto da Paixão» e vários congressos internacionais: Arquitectura Popular, Caminhos de Santiago, História Medieval. Organiza, desde 1983, os Congressos de Medicina Popular de Vilar de Perdizes, que anualmente levam a esta aldeia do concelho de Montalegre milhares de participantes.
Está representado nas seguintes antologias: As Chegas de Bois (organizador), Trás-os-Montes e Alto Douro e Da Literatura Popular à Literatura Infantil. É autor das obras Etnografia TransmontanaOs Chás dos Congressos de Vilar de PerdizesAras Romanas e Terras de Barroso Desaparecidas, e co-autor de vários títulos, nomeadamente Medicina PopularMitos, Crenzas e Costumes da Raia SecaMisarela – A Ponte do Diabo.

Prefácio

Não sei se haverá alguém que tanto como António Lourenço Fontes tenha chamado a atenção dos portugueses e dos estudiosos de outras nacionalidades para as características, por vezes bem singulares, da cultura barrosã. Através dos livros, do seu jornal Notícias de Barroso, de conferências e entrevistas, dentro e fora do país, de colaboração em filmes, de uma vida paroquial aberta ao meio, do seu trabalho de assessor cultural na Câmara Municipal de Montalegre, de numerosas acções de animação e estudo, nos domínios do artesanato, das tradições, de tudo o que é propriamente popular, trate-se de jogos, arquitectura, teatro, religiosidade ou medicina, tem ele conseguido atrair a curiosidade, o carinho e admiração de muita gente pela sua terra, que até ali vai de longada, pondo olhos e ouvidos nas coisas, não raro embevecidamente.
«Entre quem é» – diz ele, se lhe batem à porta da residência de Vilar de Perdizes, uma construção tipicamente transmontana, logo franqueando aos olhos ávidos de repasto cultural salas e saletas, quartos, cozinhas e lojas, tudo abundantemente guarnecido, abarrotado de livros e cadernos, documentos de vária origem como estatuetas, quadros, peças de artesanato e outras relíquias. Naquela casa tinha vivido o Padre Domingos Barroso, um homem tão devoto dos santos como dos encantos da sua terra e que era especialmente versado em matéria de cinegética. Tanto ele constituiu para António Lourenço Fontes uma sombra tutelar que diligenciou para que no largo fronteiro lhe fosse erguido um monumento. Lá está, bem significativo na sua simplicidade. Desse sacerdote não recebeu, porém, mais do que um incentivo. A pesquisa e a recolha sistemática de mitos e ritos, usos e tradições, que dão um rosto à gente barrosã, estavam ainda por fazer.
Escreve neste livro: «Metia-me medo, por não haver quase nada escrito sobre tudo isto, que foi para mim floresta virgem que tive de explorar.» E a verdade é que explorou, sem bravatas, antes com uma paciência modesta, como é aliás do seu temperamento. Menos preocupado com desenvolvimentos
teóricos e questões taxinómicas do que com o registo atento, tanto quanto possível cingido ao essencial e praticado à luz e segundo a ordem da experiência, com o sacrifício de certo arrumo, acabou por nos deixar um trabalho que fascina pelo despretensiosismo e pelo toque certeiro no que os etnólogos consideram imprescindível e fundamental para as suas teses mais engenhosamente concebidas, ainda que por vezes marcadamente subjectivas e especulativas e, por isso, discutíveis, neste jogo de esquivanças e probabilidades que é o real para toda a ciência.

O campo de observação de António Lourenço Fontes é o da etnografia, no sentido em que C. Levi-Strauss a definiu: «A etnografia consiste na observação e na análise de grupos humanos considerados na sua particularidade e visando a reconstituição, tão fiel quanto possível, da vida de cada um deles.» Retratar e biografar o povo de Barroso foi essa a intenção de António Lourenço Fontes, como transparece do plano traçado para cuja execução trabalhou, «sabe Deus com que dificuldades». Mas as monografias comportam sempre riscos de efectualidade, mesmo tendo em conta o bom senso e a argúcia do critério adoptado, a dedicação e a vantagem de pesquisar a partir de dentro, como é o caso, dado que o autor nasceu no coração de Barroso, onde após os seus cursos em Vila Real e no Porto continuou a viver. Outros etnógrafos tiveram de suportar dificuldades de aceitação pelas comunidades visadas, como sucedeu por exemplo a Malinowski na Melanésia.
Um risco etnográfico é o que se prende com problemas de diacronia e dialéctica. Toda a descrição nesta matéria é selectiva e deixa pressuposta uma teoria, por mais geral que ela seja. Ora, quanto a isto, o primeiro obstáculo a transpor é o de conferir o grau de actualidade ou não de um fenómeno, os factores e o processo da sua evolução e ainda o que há nele de núcleo permanente, com relevo para os vectores de articulação com os outros fenómenos da mesma estrutura ou sistema. António Lourenço Fontes tem consciência disso, expressando a vontade de «recordar tanto as tradições vivas, como as que já morreram»; e em algumas páginas caracteriza «o homem barrosão e o seu feitio», o que não o impede de adoptar seguidamente o método cumulativo, mais de acordo com o retrato do que com a biografia, resultando assim um painel de cromatismos insinuantes, como se o papel deste etnógrafo fosse o de coleccionar revérberos. É um caminho, entre outros, que deixa por apreender o que no fundo é inapreensível, isto é, o espaço de instabilidade latejante que se situa, relativamente a um costume, a meio caminho do que foi e do que é – um espaço onde pulsam determinações endógenas e exógenas cuja fixação descritiva é uma aventura, a menos que do facto social se persiga uma visão hipotético-dedutiva, atenta às formas globalizantes, muito em conformidade com o método estruturalista. A este método porém, que conduz a uma ciência de rigor, escapam os conteúdos vivos, a mobilidade quer ontológica quer factual do ser, tendo-se como certo que a observação e a theoria realizadas a partir do exterior são sempre neste aspecto ou naquele algo deformantes. E daí que o formalismo estruturalista se venha considerando ultrapassado.
António Lourenço Fontes opta pelo registo directo e breve, sem outro
enquadramento pontual que não seja o decorrente da localização e o de encostar uns aos outros os factos mais semelhantes entre si, segundo uma concepção da etnografia tradicional. Certo. O leitor e o antropólogo ficam naturalmente
satisfeitos com a oferta de textos puros, lavados: que sejam um e outro a operar induções e deduções. Como se dissesse: o povo de Barroso é mais ou menos assim, nos domínios que investiguei; façam agora o favor de comparar e tirar conclusões. Nem sequer, como acontece com «o direito sobre as moças da terra» e as «chegas», ele nos diz claramente até que ponto o costume persiste na forma apresentada ou como possivelmente evoluiu e por que motivos. Como se também nos quisesse dizer: em Barroso foi ou é assim; venham cá e vejam como as coisas, apesar de inevitáveis transculturações, ainda conservam peculiaridades que as identificam e nos identificam.

O que em toda esta obra se subentende não é difícil de perceber, se nos ativermos a afirmações vigorosas como esta: «O homem transforma o ambiente, mas deixa-se impressionar fundamente por ele.» Barroso tem uma configuração geográfica, um clima, um modo de ser, um estar longe de tudo menos de si, uma história cerzida de tradições tão enraizadas na memória e na vida que, mau grado os ventos desculturantes que sopram de várias direcções, irá manter a sua identidade cultural. Identidade para já bem patente naquilo a que Kardiner chama «personalidade de base, comum a todos os barrosões, onde quer que se encontrem, um suplemento de alma que dá vida a estes dois livros, em que se abre uma consciência generosa, a ser ouvida não só pelos seus conterrâneos, mas por quantos assumem a cultura como um dos valores mais preciosos do existir, cépticos felizmente em relação à exclusiva via economicista da paz e da felicidade. Em livros assim tocam os sinos a rebate.

António Cabral

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