Bento da Cruz ainda viveu o
suficiente para ver comemorados, em 2013, os seus cinquenta anos de vida
literária. E que vida literária! Iniciou-se em 1963, com o romance Planalto em Chamas, e prosseguiu ao
longo de cinco décadas, com uma produção impressionante, que compreende nada
menos de oito romances, uma novela, três livros de contos, dois livros de
crónicas e cinco livros de ensaios e afins, além de actividade jornalística
vária. (É certo que há também um livrinho de poesia, de 1959, mas é uma ‘carta
fora do baralho’, como se diz hoje, de menos valor face ao resto da produção e,
de qualquer modo, de um género literário que Bento da Cruz logo abandonaria,
não o reconhecendo como a sua forma natural de expressão artística.)
Recordo-me
de ter adquirido em Coimbra, onde estudava em 1963, o romance de estreia, Planalto em chamas, que li com avidez
porque me levava a terras trasmontanas — no caso o Barroso, cenário que Bento
da Cruz nunca mais abandonaria. Li-o — e confesso: foi amor à primeira vista
por uma obra tão exemplarmente talhada, em carne e sangue, na realidade humana
de Barroso.
De
Planalto em chamas para cá, publicou Bento
da Cruz mais dezoito títulos: onze de ficção, dois de crónicas e cinco de
ensaio (histórico, biográfico, etnográfico, sobretudo). Algumas dessas obras
são verdadeiras obras-primas, como O lobo
guerrilheiro, A loba e a muito
recente Fárria.
Em matéria de narrativa (romance,
novela, conto — no fundo a vocação maior de Bento da Cruz), no panorama
literário trasmontano, só Camilo Castelo Branco, Guedes de Amorim, Domingos
Monteiro, João de Araújo Correia e António Modesto Navarro poderão responder
com uma obra ficcional tão volumosa.
Mas números são números ― dados puramente
quantitativos, que têm a importância que têm. Pode-se escrever imenso e ‘não
dar duas para a caixa’, como diz o nosso povo. Dá-se porém o caso de que a
qualidade da escrita de Bento da Cruz corre parelhas com a quantidade. Aliás,
os prémios literários obtidos, de expressão nacional e também galega, confirmam
isso mesmo. Para além de um notável cronista, atento e confiável, da vida
barrosã, Bento da Cruz é um escritor de primeira água, um poderoso criador de
histórias, personagens, ambientes e situações. A esse respeito, lembremos uma feliz
síntese da crítica Fátima Maldonado:
«A capacidade ficcional de Bento da Cruz é assombrosa,
lembra às vezes a de Garcia Márquez.»
Apetece dizer: e lembra a do próprio Camilo que Bento
da Cruz tanto admirou e estudou. Lembremos que Camilo dizia que não tinha
imaginação, mas apenas memória — modo de dizer que não criava as suas histórias
ab nihilo, mas apenas recordava
lances testemunhados ao longo da sua vida aventurosa. De Bento da Cruz se pode
dizer outro tanto: há na sua escrita uma tal verdade e autenticidade que só
pode ser fruto da sua experiência de vida nas serranias natais de Barroso. Até
aos 15 anos, participou na labuta
agrária da família, foi à lenha, jogou a rebindaima, guardou vacas,
entusiasmou-se quando o boi de Peireses ‘podeu’ nas chegas, conheceu
contrabandistas e outros figurões, padres devassos, gente da fárria, mendigos
que dormiam noites gélidas de Inverno na quentura dos fornos do povo. De tudo
isso se fez o lastro da sua ficção. Esta mesma experiência de vida é o motivo
recorrente das suas crónicas tão amenas, tão verdadeiras.
Impressiona igualmente em Bento da
Cruz o ágil e sábio manejo da língua portuguesa, quer no registo clássico, quer
no registo regional, no que toca à sintaxe como no que toca ao léxico. E também
aqui é tentador o paralelo com Camilo, e também com Aquilino Ribeiro, esse
outro gigante da literatura portuguesa baseada na ruralidade.
Tudo isso é de algum modo confirmado
pelo facto de a Editorial Notícias, ter aberto no seu catálogo um espaço exclusivo
chamado ‘Obras de Bento da Cruz’. Não são muitos os escritores que se podem gloriar
de uma tal distinção.
Gostaria de insistir neste ponto:
Bento da Cruz é um grande e relevante vulto das letras, não só trasmontanas,
como nacionais, que pede meças a qualquer outro, incluindo alguns que têm por
trás deles máquinas editoriais poderosas a promovê-los, às vezes muito para
além dos seus reais méritos.
E gostaria de deixar isso bem claro em Montalegre,
capital do mundo rural a que Bento da Cruz pertence, mundo em que se fez gente,
mundo que lhe deu a sina de escritor, mundo que foi sempre uma das grandes
paixões confessas da sua vida, mundo que ele celebrou como ninguém nos seus
livros.
Conheci Bento da Cruz aí por 1977 ou 78, em Vila Real.
Foi-me então apresentado por um amigo comum, o poeta António Cabral. Mas uma
verdadeira relação de amizade e camaradagem só se estabeleceria mais tarde, nos
anos 80, no âmbito das Jornadas Camilianas de saudosa memória, em que ele
participou por várias vezes como camiliano convicto e informado que era.
Vivendo longe um do
outro, escrevíamo-nos, não propriamente com frequência, mas com a
regularidade bastante para irmos cultivando a nossa amizade. A partir de certa
altura, as cartas (e mais tarde os e-mails)
começavam não por ‘Caro Bento da Cruz’ ou ‘Caro Pires Cabral’, mas,
respectivamente, por ‘Caro Marinheiro’ e ‘Caro Ceboleiro’. As razões deste
tratamento, que traduz já uma fraternal cumplicidade, são conhecidas. Dele,
lera eu em mais de uma obra sua que ‘Marinheiro’ era a alcunha (perfeitamente
assumida) da família. De mim, sabia ele que nasci na aldeia de Chacim, Macedo
de Cavaleiros, a cujos naturais, segundo o erudito Abade de Baçal e a voz
corrente entre as gentes daqueles lados, cabe o apodo de ‘Ceboleiros’ —
referência, sem dúvida, à antiga e grande Feira das Cebolas que ali se realiza
a cada 10 de Setembro.
Tive o grande gosto de apresentar livros seus e o
gosto ainda maior de ver livros meus apresentados por ele. Oferecíamo-nos
livros com dedicatórias em termos de grande afecto. Havia entre nós, além da
tal cumplicidade, um sincero apreço recíproco.
Fazem-me falta as cartas de Bento da Cruz. Fazem-me
falta a sabedoria serena, o sentido de humor, a mestria literária de Bento da
Cruz. E mais falta farão eles, acredito, às terras de Barroso que o viram
nascer e que tiveram nele um cronista de primeira água. Cronista, disse eu. Não
que seja a crónica a sua forma natural de expressão (embora seja também um
consumado mestre no género: vejam-se os saborosos apontamentos dos Prolegómenos). Mas porque os seus
romances valem por uma fotografia de corpo inteiro de Barroso, suas gentes, sua
cultura, sua história, sua paisagem, sua fauna e flora, seu clima agreste.
É que Bento da Cruz, mesmo vivendo em diáspora, nunca
despiu a pele de barrosão. De Barroso recebeu tudo, e, em paga, a Barroso tudo
deu. Deu a sua arte, o seu amor, a sua gratidão de filho. E deu também, na hora extrema, o seu
corpo — que repousa em Peirezes desde 27 de Agosto de 2015. Onde melhor?
O Grémio Literário Vila-Realense teve nele um grande
amigo e um colaborador sempre disponível. Mesmo quando já visivelmente
fragilizado pela idade, respondeu sempre às chamadas que lhe foram feitas (que
ele — disse-me um dia — graciosamente tomava não como pedidos, mas como ordens)
e desincumbiu-se sempre de forma primorosa das tarefas que lhe propusemos.
Amigos destes estimam-se enquanto são vivos. Assim o
fizemos. E, quando partem, guardam-se na memória com o máximo carinho de que
sejamos capazes. Assim o faremos
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