03 setembro 2015

Bento da Cruz - O Príncipe do Planalto


O Príncipe das Letras do Planalto Barrosão deixou-nos na passada noite de 25 para 26 de Agosto, depois de ter abraçado o filho com comovente serenidade.
A sua dimensão humana e literária e a grandeza de caráter impõem que partilhamos com os seus pares uma breve síntese do que foram os traços dominantes do seu percurso de vida e de obra, dirigida em particular a quem não teve a oportunidade de privar de perto com esta grande figura.
Bento da Cruz nasceu na aldeia de Peireses, concelho de Montalegre em 22 de Fevereiro de 1925.
Filho de lavradores da família conhecida pelos Marinheiros, as dificuldades da época levaram-no desde cedo ao trabalho do campo e à vida de pastor, atividades principais de sustentação das aldeias, dentro da moldura de economia rural de subsistência.
Fez os estudos primários na Escola de S. Vicente, sede da Freguesia, forçando-o a percorrer, duas vezes ao dia, a distância de três quilómetros, isto quando as chuvas e subidas dos níveis da água dos ribeiros não obrigavam a optar por outros percursos mais longos.
Em 1940 (aos 15 anos de idade) entrou para a Escola Claustral de Singeverga, dirigida por monges beneditinos, disposto a seguir a vida religiosa, única saída possível para continuar os estudos e a cultivar a paixão pelos livros. Aí completou com distinção o curso de humanidades dos Seminários, período durante o qual foi diretor literário das revistas “O Colégio” e “Claustrália”. Entrou no noviciado em 1945, mas acabou, no final do ano, por renunciar à continuação da educação religiosa. Durante o tempo de clausura entre os quinze e vinte e um anos de idade leu e traduziu extensos textos de escritores clássicos romanos e gregos da antiguidade, consolidando assim uma séria base de trabalho para o futuro escritor, habilitando-o a combinar de forma sábia, o falar e o diálogo populares com o ritmo trilhado pelos escritores clássicos.
Sobre esse longo período de seis anos de clausura diz-nos o autor: “a maior pena que tenho desse tempo é não ter vivido a experiência de vida entre os quinze e os vinte e um anos. Senti toda a vida a falta desse percurso de juventude”.
Dois anos depois deu entrada na Universidade de Coimbra onde se licenciou em Medicina e se especializou em estomatologia. Tinha então em mente regressar à sua região de origem, com uma especialidade que pudesse exercer localmente, dado que ainda não tinha chegado a energia elétrica a Montalegre.
A partir de 1957, e como médico, percorreu toda a região de Barroso, ficando conhecido pelo serviço aos pobres, a quem não levava dinheiro e até oferecia os medicamentos, em certos casos. Existe um leque de testemunhos de como naquelas terras isoladas tratou e salvou muitas vidas. Em 1971 radicou-se no Porto passando a exercer estomatologia em regime de exclusividade. Aí fundou o jornal “Correio do Planalto” que dirigiu até ao seu último sopro de vida, adquirindo particular evidência os seus “Prolegómenos”, uma parte dos quais editados já em três volumes.
Nunca se desligou da aldeia e do mundo rural em que nasceu. Passava ali as férias e ia lá sempre que podia. Reconstruiu a casa do avô Marinheiro, respeitando a traça original; e admitia: “aqui respiro melhor, durmo melhor e penso melhor”.
Demarcou desde cedo o planalto da sua ficção: “ É um planalto ou meseta delimitada por quatro serras principais e respetivos contrafortes: Larouco a norte, Alturas de Barroso a nascente, Cabreira a sul e o Gerês ao sol-posto”. 
Resumiu a sua intensa vida literária numa simples frase: “Em pequeno comecei por sachar a minha leira, como via fazer a todos os outros. Quando troquei a enxada pela caneta a minha leira passou a ser Barroso”.
Obras publicadas:
 Poesia – Hemoptise, com pseudónimo de Sabiel Truta
 Ficção – Planalto em Chamas (1963); Ao Longo da Fronteira (1964); Filhas de Lot (1967); Contos de Gostofrio (1973); O Lobo Guerrilheiro (1980); Planalto do Gostofrio (1982); Histórias da Vermelhinha (1991); Victor Branco, Escritor Barrosão – Vida e Obra (1995); O Retábulo das Virgens Loucas (1996); A Loba (2000); A Lenda de Hiran e Belkiss (2005); A Fárria (comemoração dos 50 anos de vida Literária; 2010). Biografia – Victor Branco: Escritor Barrosão, Vida e Obra (1995); Guerrilheiros Antifranquistas em Trás-os-Montes (2005); Camilo Castelo Branco: Por terras de Barroso e outros lugares (2012). Crónicas – Prolegómenos (2007); Prolegómenos II (2009); Prolegómenos III (2012).
Mendez Ferrin apreciado escritor galego qualificou, deste modo, o percurso do escritor:
Bento da Cruz é uma figura única e excecional. Salvou a memória de um período histórico, que doutra forma ficaria esquecida para sempre.
Salvou também a boa saúde da língua portuguesa e a sua capacidade múltipla, rica, numerosa, lexicamente não dependente dos dicionários e das normas nacionais.
Bento da Cruz, como Aquilino Ribeiro, como Miguel Torga pertencem a uma casta dos absolutamente incorruptíveis, de escritores que acreditam na sua própria língua, na sua capacidade, que sabem que ela é grande e suscetível de ser infinitamente ainda mais engrandecida.
Fixou como era socialmente a aldeia de Barroso do século XIX e princípios do século XX. Explicou-nos como era a aldeia, a sua composição social, as classes sociais, os ricos e os pobres, os morgados e os padres, lavradores e cabaneiros, todos representados no seu papel social e nas suas contradições de classe. Não era o lugar idílico onde todos eram iguais; havia amos e escravos, sofredores e os que infringiam o sofrimento.
É esta a preciosa oferenda que nos legou este grande escritor e grande analista da história.
Os muitos anos de estreito convívio e de sólida amizade impõem-me o dever de clarificar vários sentidos subjacentes na sua ficção, em especial os relativos à cultura e à evolução social e territorial de Barroso, perspetiva extensível também a todo o interior rural de Portugal, tarefa a que tenho dedicado alguma atenção, esperando vir a partilhar essa reflexão, em futuro próximo.
Ao bom e dedicado amigo, um forte e saudoso abraço.


António Chaves

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