Norberto Veiga[1]
“A velhice não afasta necessariamente os homens da vida ativa
porque há
uma atividade muito própria dos velhos: muitos continuam a
servir
a pátria com a sua prudência e autoridade; outros
entregam-se ao estudo
das letras e das ciências;
alguns, ao cultivo das terras”.
[Cícero, De Senectute,
sublinhado meu][2]
Manuel
da Fonseca num dos contos da obra O fogo
e as cinzas, “O Largo”, escreveu “o Largo era o centro do mundo”. Parece-me ser essa a intenção de Fracisco
Niebro, no introito da obra, ao colocar o protagonista do relato, “um velho”, enfatizo
a utilização do determinante indefinido, sentado na ombreira da sua porta, isto
é, na rua, que dá para um largo [8] da qual faz o centro do “seu” mundo. O
velho assume na primeira pessoa o relato da vida, com laivos autobiográficos do
autor. Embora o mundo, para ele, seja tão só a sua aldeia, “Nos meus oitenta
anos quase não saí daqui. O mundo é grande. (…) Por isso, o centro só pode
ficar onde ponho a ponta da minha bengala” [30]. Esta ideia é, de novo,
reforçada na página 52, onde se lê: “Passo os dias sentado no poial de pedra da
rua: quem passa olha para mim”. Esta atitude reflexiva do velho, sobre as
pessoas da sua aldeia, coloca o leitor, por sinédoque, perante o espetáculo do
mundo e leva-o à autognose. A tarefa é árdua mas ele não desiste de recordar/escrever
para nos questionar: “Desde que estou aqui sentado na rua já passaram mais de
cem pessoas” [98].
Qual é, então, o propósito do velho/da obra? As
intenções são várias. Em primeiro lugar, reiteramos a questionação do leitor
para o levar à reflexão sobre a vida e a melhor forma de a “merecer”. Por isso,
o autor nos faculta uma espécie de manual, isto é, uma carta de intenções que,
segundo creio, constituiu a sua filosofia/ideias de vida, fixada
na página 38, sempre atual e de muita utilidade para o cidadão hodierno.
A reflexão do velho, escrita com grandes
dificuldades físicas, é feita em flashback
recordando as memórias do passado para chegar à desconfortável conclusão: “Há
coisas, por exemplo cantigas, em que já não caibo, mundos que parecem já nada
querer ter a ver comigo” [8]. Estas palavras trazem à memória do leitor a
réplica de Beresford a Principal Sousa, da obra Felizmente Há Luar! de Luís de Sttau Monteiro: “O velho está sempre
a ceder perante o novo e o novo sempre a destruir o velho”[3].
Parece-me que é também para isto que a personagem/narrador velho escreve, ou
seja, para ser memória futura do povo e das tradições que enformaram a sua vida
e que persistem em continuar, apesar da veracidade das palavras de Beresford.
Por conseguinte, o velho, ciente do inexorável
curso de Apolo, decide perpetuar a sua memória através da escrita, como o autor
afirma: “Depois, veio-me a vontade de escrever”, que lemos na segunda página da
obra [8]. Esta vontade, em meu juízo, traduz-se em dois propósitos: o primeiro,
em não deixar morrer as tradições e a língua de um povo, pelas quais o autor se
bateu, de forma abnegada, ao logo da sua vida; o segundo cumpre-se no legítimo
e almejado desejo do homem, Amadeu Ferreira, em nos legar uma obra perene que jamais
possa ser ignorada. Esta postura lembra o tópico da imortalidade que se adquire
pelo valor da obra literária, imortalizado na ode XXX, do livro terceiro de
Horácio[4].
O ato de escrita aprece-nos, nesta obra,
associado ao alimento que prende o escritor à vida: “escrever é como um
alimento que me vai mantendo vivo, tal como a bengala me permite manter-me de
pé” [56]. Logo, a escrita, aliada à sabedoria da palavra, que é equiparada a
diamante que brilha [20], remete, em minha opinião, para a possibilidade de a
literatura transformar o mundo real. Pois, como assevera
Vítor Aguiar e Silva, na obra Teoria da
Literatura: “O escritor, ao emitir o seu texto não só transfigura o real
nomeado ou aludido, mas reinventa e instaura o próprio real, o real absoluto,
com a urdidura encantatória do seu discurso[5]”. Nesta
postura do escritor fulge a figura de Prometeu que, latu sensu, simboliza a capacidade de a comunicação literária
contribuir para transformar o real, o real antropológico e o real
histórico-social. Estas palavras do autor de Velhice corroboram estes preceitos: “Gostam de sentir que as
histórias têm uma vida diferente, como os sonhos. As histórias ensinam a sonhar
e falam de um mundo tão diferente que fazem nascer a vontade de mudar aquele em
que vivemos” [108]. No entanto,
esta força performativa da palavra pode ser ineficaz se o leitor se recusar a
aceitá-la, como se depreende das palavras do autor: “Pensamos que já sabemos
tanto que nunca somos capazes de encontrar um espaço para aprender” [64].
Na base destas preocupações patenteia-se a
ideia angustiante do esquecimento que para o escritor se assemelha à morte:
“Estar só não é morrer, é não nascer. Uma pessoa morre quando já ninguém olha para
ela” [32][6].
Creio não restarem dúvidas aos leitores mais assíduos da obra de Amadeu
Ferreira que a sua luta, ou melhor a sua escrita, foi sempre esta pugna
hercúlea contra o esquecimento, que, não raras vezes, dói mais que a própria
morte. É por esta ordem de razões, que se aceita que toda a vasta produção
literária de Amadeu Ferreira, e esta em particular, foi animada pelo anseio de
se “libertar da lei morte”.
Outro grande filão do livro cumpre-se no título
desta crítica, isto é, o elogio da vida, sempre associado à ousadia e à vontade
de querer vencer e antecipar o futuro, pois: “Apenas é nosso o que fazemos
porque o queremos” [50]. Este encómio à vida está patente nas palavras do
autor: “Quando olho para trás e vejo o que ficou, sorrio. Houvesse quem fora
capaz de sorrir e olhar para a frente… Nada há tão difícil como isso. Olhar
para diante mete medo. E com medo ninguém sorri com vontade. E quando
ninguém sorri, as coisas e a vida ficam tão pesadas que custam a suportar”
[44, sublinhado meu]. Mas por mais espinhosa que seja a nossa missão, em vez de
desistir devemos recomeçar, uma vez que: “Quando se perde a vontade de começar,
começamos a morrer” [46]. E Amadeu Ferreira foi um exemplo acabado desse
recomeçar, porque a energia e a força telúrica, imortalizada por Torga, que
sorvia das arribas do Douro, o impelia a “nunca contentar-se de contente”.
Todavia, uma certa desilusão atormenta o
escritor, porque ninguém pensa nada, “Para pensar, há que parar. (…) E como
ninguém pensa, nada muda” [28]. Registe-se que o sofrimento está associado à
lucidez e à inquietação das pessoas, pois “quem mais sabe mais sofre.” (cf.
Pessoa “Se estou só, quero não estar”). O ato de cogitar aumenta o conhecimento
e, por conseguinte, o sofrimento: “Até os velhos, porque pensam mais, morrem
mais depressa” [28]. O velho acaba por sucumbir ao afirmar: “Por vezes sabe
muito bem uma pessoa não se lembrar de nada e ficar encandeada com coisas tão
pequeninas como florzinhas de telhado” [126].
Ouso, pois, afirmar, sem ambages e dissídios,
que Fracisco Niebro/Amadeu Ferreira se “libertou da lei da morte” e continuará
perenemente, como lembra Horácio, a viver na vastíssima e riquíssima obra que
nos legou. Pois ele, mais que outrem, teve a coragem de “não morrer”, como se
infere das suas palavras: “Apenas há um segredo para uma pessoa não morrer:
agarrar-se a uma ideia com tanta força que não mais se desprenda” [34]. Creio
não andar longe da verdade ao afirmar que “a ideia” a que Amadeu Ferreira se
agarrou foi a difusão e a ratificação da Língua Mirandesa.
Termino apelando à leitura da obra deste
ilustre Transmontano/Mirandês na qual são audíveis os ecos de uma luta contínua
contra a resignação, o determinismo e o fatalismo, instigando-nos a assumir uma
atitude de trabalho abnegado, norteado pelos valores e pela ética, alicerces de
qualquer sociedade.
Bragança, 25 de março de 2015
[2]
O
diálogo Cato Maior ou De Senectute de
Cícero é, segundo Gérard Genette, Palimpsestes,
o hipertexto da Belheç/Velhice de Fracisco Niebro.
[3] MONTEIRO, Luís de Sttau, Felizmente Há Luar!, Areal Editores,
1999, pág. 54.
[4] O poeta latino Horácio, nesta
ode, fala da importância da obra literária que resistirá, como nenhuma outra,
às intempéries naturais e, consecutivamente, ao esquecimento.
[5] AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel, Teoria da Literatura, Livraria Almedina,
Coimbra, 1988, 8.ª Ed.ª, p. 334.
[6] Leia-se o poema de Fernando Pessoa, que aqui
reproduzo, por me parecer que encerra a mesma filosofia de vida que Fracisco
Niebro/Amadeu Ferreira defende nesta e em todas as suas obras: “A morte é a
curva da estrada, / Morrer é só não ser visto. / Se escuto, eu te oiço a
passada / Existir como eu existo. // A terra é feita de céu. / A mentira não
tem ninho. / Nunca ninguém se perdeu. / Tudo é verdade e caminho.”
(Sublinhado meu) PESSOA, Fernando, Poesias, Ática, Lisboa, 1942 (15.ª ed.ª 1995), p. 142.
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