19 janeiro 2015

A Biblioteca de Babel, Jorge Luís Borges, por José Mário Leite

Do editor de texto à wikipédia
(de Gutenberg a Borges)
  
“ O universo (a que outros chamam a Biblioteca) compõe-se de um número indefinido e, talvez infinito, de galerias hexagonais...”

“...por uma linha razoável ou uma notícia correcta há léguas de insensatas cacofonias, de embrulhadas verbais e incoerências.”

A Biblioteca de Babel, Jorge Luís Borges

Borges e a embaixada Moncorvense
Este meu texto não faz parte da wikipédia. Pertencerá ao ciberespaço quando o Leonel de Brito o publicar no seu blog ou noutro local que entenda. Mas está, de há muito, contemplado na Divina Biblioteca pormenorizadamente concebida e descrita pelo escritor argentino de ascendência moncorvense, Jorge Luis Borges. Não só este texto mas todos os outros que o antecederam (usei algumas crónicas antigas e outros registos meus para o elaborar), bem como todas as versões, correções e revisões que com a ajuda e contributo da Lurdes concorreram para a versão final que enviei ao Lelo de Moncorvo. E todas as variações que venha mais tarde a conceber, escreva-as ou não, publique-as ou guarde-as na gaveta do meu computador. Usando já não caneta de tinta permanente ou esferográfica, mas o editor de texto que me permite escolher sucessivamente cada um dos caracteres do alfabeto justapondo-os para compor palavras e agrupando-as para formar frases, parágrafos, textos tal como Johannes Gutenberg concebeu e implementou. Na prática nasceu no século XV, pelas mãos deste inventor germânico o primeiro editor de texto. Tal como a wikipédia tem a sua génese em Buenos Aires na descrição borgiana. Os computadores e os programas informáticos que hoje usamos com os mesmos fins apenas vieram mecanizar e facilitar a sua utilização. Sendo certo que com a possibilidade de introdução de imagens os editores de texto realizam a totalidade da proposição gutenbergiana, já a wikipédia tem ainda um longuíssimo caminho (provavelmente de extensão infinita) para realizar a conceção borgiana apesar da sua (aparente) limitação.
 É por causa desta suposta limitação que a seguir descrevo que me é apontada a falta de rigor quando (re)afirmo a existência deste texto no universo hexagonóide – apesar das dúvidas que me assaltam sobre o acerto do uso desta palavra ela existe em número quase infinito no referido repositório – tal como recentemente garanti que o célebre e celebrado Aleph está ali contido, descrito e explicado. Porque, o sistema descrito e largamente difundido tem regras precisas e limitativas. Os volumes que compõem o universo de Babel têm um formato rígido: quatrocentas e dez páginas cada um, quarenta linhas por página e oitenta caracteres por linha. Um milhão, trezentos e doze mil simbolos gráficos iguais ou diferentes, os que Gutenberg idealizou e usou e todos os demais sucedânios. Como posso eu garantir que cabem neste “espartilho” os textos que escrevo e as descrições do própio autor das Ficções? Porque, como atrás fui “desvendando” essa limitação é aparente. Existe, suponho eu, apenas para satisfazer o génio exigente do autor e para que a descrição obedecesse ao seu critério de descrição exaustiva. Que aliás, independentemente, dessa mesma “métrica” a própria descrição traz consigo a forma de dela se libertar.
Como a biblioteca tem uma extensão tendencialmente infinita, garantindo a exaustão de todas as combinações permite que qualquer obra com dimensão superior ao modelo base seja perfeitamente possível que a descrição perfeita no tamanho modular terá a correspondente continuação num outro local, num outro volume. Que pode, como a seguir se demonstrará, ter um tamanho igual ou inferior ao padrão. Porque um dos caracteres aceites é o espaço, que é o separador de palavras. Por isso mesmo haverá inúmeros documentos com tantas repetições do caracter espaço, quantas as necessárias para que os restantes se combinem em todos os textos que garantam o tamanho efetivo (conjunto de caracteres legíveis) que se pretender, inferior ao standard e com a formatação desejada. Resolvido o tamanho superior e inferior tudo o resto fica, por definição, contemplado na belíssima prosa de Borges.

Tal como o processador de texto potencia e realiza o conceito de Gutenberg, igualmente os computadores podem ser programados para materealizarem a fabulosa biblioteca que apenas pôde existir concetualmente. Basta escrever um programa simples que produza, sucessivamente e em ciclos iterativos, todos os caracteres dos diferentes alfabetos, para cada uma das posições de cada uma das obras. O repositório deverá ser digital. Não só porque será de difícil armazenamento se passado a papel, como isso permitirá por um lado usar as ferramentas de pesquisa e fazer uma depuração de tudo o que objetivamente não faça qualquer sentido de forma simples e automática que, como o próprio autor admitiu, em nada diminui a grandeza do empreendimento. “A Biblioteca é tão enorme que toda a redução de origem humana se torna infinitésima”. Humana ou mecânica, acrescentaria eu, desde que limitada ao acessório e consensualmente aceite como desnecessário e absurdo, tal como a repeitção exaustiva de um único caracter.
Mesmo tendo em devida conta uma outra limitação de apenas serem admissíveis vinte e cinco símbolos gráficos –  às vinte e duas letras do alfabeto juntou dois sinais de pontuação,  a vírgula e o ponto, acrescidos do espaço. Mas como todos os caracteres serão conjugados em todas as suas combinações possíveis, facilmente se deduz que em algumas dessas variações parecerá a descrição dos caracteres “em falta”. Com esses mesmos símbolos, que não haja dúvida alguma, para além de inúmeras obras inúteis, disparatadas, sem qualquer sentido, absolutamente estúpidas e horríveis, tudo o resto que interessa existe neste local fabuloso, ali hão-de existir todas as biografias de todos os homens que nasceram, que hão-de nascer e que nunca nascerão. As reais, as romanceadas e as totalmente inventadas.
Existirão todos os tratados científicos, a sua prova e a sua refutação. Verdadeiras e falsas.
Todos os romances, todas as edições, todas as revisões, análises criticas, ensaios elogios e detracções.
Todos os livros escritos, pensados, corrigidos, destruídos, editados, “engavetados”, deitados no lixo, rasurados ou simplesmente esboçados...desde que tenham o formato de 410 páginas com 40 linhas de 80 caracteres. E, ainda assim para qualquer livro ali existente haverá igualmente, na mesma, milhões de livros quase iguais e outros tantos absolutamente opostos. Quer nos textos, quer nos conceitos. Para um dado livro há trinta e dois milhões, e oitocentos mil livros que diferem deste apenas num caracter (nmero que resulta da multiplicação de 25 – número de caracteres diferentes admitidos por Borges – pelos 1.312.000 caracteres que cada livro tem). Assim se pode imaginar o valor astronómico que um único tema pode suscitar nesta fabulosa estrutura.
E, como atrás demonstrei, todos os que possam ter um tamanho inferior. Ou superior. Desde que possa ser obtido pela junção de um ou vários dos outros de tamanho padrão ou outro.

Haverá quem garanta que este desiderato concorre com a intenção da Unesco de reconstruir a fabulosa Biblioteca de Alexandria onde se reúnam cópias de todas as obras existentes. De todas as obras relevantes, entenda-se.
Apesar de ambas as Bibliotecas terem uma vocação universal, as semelhanças terminam aí. Uma delas existe desde sempre e será eterna. A sua criação “só pode ser obra de um deus”. A outra é obra humana e a sua existência limitada no tempo (foi criada na antiguidade, destruída, foi reconstruída e há-de destruir-se um dia, por causas naturais ou outras).
Na Biblioteca de Babel há, garantidamente a história detalhada da Biblioteca de Alexandria. O pormenorizado relato do seu nascimento e destruição. Do seu renascimento e do fim definitivo, com a marca exata do tempo e circunstâncias em que acontecerá. E todas as histórias e lendas, verdadeiras e falsas e as negações das mesmas, associadas ou associáveis ao arquivo egípcio.
Na Biblioteca da Alexandria não há nenhum livro que descreva exaustivamente e com exactidão a Biblioteca Universal. Nenhum relatará a sua génese. Nenhum terá notícia da sua extinção.
A primeira “perdurará: iluminada, solitária, infinita, perfeitamente imóvel, armada de volumes preciosos, inútil, incorruptível, secreta”.
A segunda, limitada no tempo e no espaço, interactiva, útil e adulterável será pública e dedicada exclusivamente a “disseminar o conhecimento entre os diferentes povos e nações do mundo”. Apesar de monumental será limitada também no espaço e destinar-se-á a conter os tratados científicos devidamente certificados e so seus eventuais contraditórios se, e APENAS SE estes forem relevante para o conhecimento.

Este meu escrito (ou qualquer um que eu venha a escrever, por muito que viva e escreva) não tem lugar na mais pequena e insignificante estante da Biblioteca egípcia. Nem tão pouco num dos seus inúmeros caixotes do lixo...
Contrariamente, existe, desde sempre, na Biblioteca Universal. Escrevi-o mas poderia simplesmente tê-lo encontrado. Não o fiz porque seria tarefa bem mais complexa e incomensuravelmente mais demorada. Artigos com esta dimensão, assinados por mim e com este título, existem milhões na Biblioteca Universal. Desde os que diferem deste apenas numa letra, numa vírgula ou na simples disposição gráfica, até aos que, igual a este têm apenas e precisamente o título e a assinatura. Um deles era exactamente igual ao descrito por Jorge Luís Borges, excepto nestas duas características: tinha o título igual a este e era assinado com o meu nome. O seu conteúdo, contudo, era precisamente a repetição exaustiva e enfática dos caracteres M C V tal como o livro de quatrocentas e dez páginas encontrado pelo pai do escritor argentino, num hexágono do circuito quinze noventa e quatro da Biblioteca original.
Provavelmente consumiria toda a minha vida para o identificar. Encontrar uma determinada obra na Biblioteca é milhões de vezes mais difícil do que ganhar o totoloto. É por isso mais fácil escrever o que quer que seja, desde uma simples nota de rodapé a uma obra-prima, do que encontrá-lo na sua verdadeira e genuína forma na Biblioteca de Babel. Pelo contrário, no repositório magrebino não há obras que não tenham sido devidamente escritas e,quase exclusivamente, na sua versão final. Encontrar qualquer uma delas poderá ser difícil, mas incomparavelmente mais simples porque não se confundirá com nenhuma das que a mimetizam e que aqui não têm lugar.
  
Nota Final:

Pode parecer que em tese se afirma foi Borges o inventor da Biblioteca de Babel a que também chamou de Biblioteca Divina ou Biblioteca Universal. Não. Jorge Luís Borges apenas a teorizou. Regulou-a. Estabeleceu os fundamentos teóricos e a sustentação programática da sua existência. Postulou as leis, os princípios, a regulamentação e a estrutura a que obedece. Numa lógica borgiana com requisitos particulares “factuais” e até restritivos, como era seu apanágio. Mas esta biblioteca existe desde sempre. Como ele próprio, aliás, claramente afirma.
Nem sequer é dele a primeira descoberta. A enunciação e implementação do princípio fundador. Este pertence a Johannes Gutenberg no ido século XV.
Borges teorizou-a. Nada fez para a implementar. Mas a sua concretização física já está em marcha. Em computadores, claro. De forma desordenada, ainda. Pouco sistemática. Sem obediência rigorosa às regras. Não há a conjugação exaustiva de todos os caracteres (há alguns que são muitíssimo mais usados que os outros). Por um lado, são raríssimos os textos com um único carácter, por outro existem muitos textos absolutamente iguais o que, sendo um desperdício representam também uma desobediência clara aos postulados primários.
Mas nem são essas as maiores lacunas da implementação, dita virtual, da BIBLIOTECA. O pior é a falta dos escritos em línguas desconhecidas e os tratados e enunciados sobre coisas e acontecimentos ainda não inventados nem ocorridos.
Começou com Alan Turing na primeira metade do século XX em que foi possível guardar e organizar informação em máquinas eletrónicas. Teve um incremento substancial na segunda metade com Timothy Berners-Lee com a introdução da world wide web e de forma mais organizada com a wikipédia de Jimmy Wales e Larry Sanger já neste século. Não é A BIBLIOTECA DE BABEL, mas é um começo com a virtualidade de mostrar a forma que o Divino Repositório poderá/deverá ter quando forem cumpridas todos os postulados borgianos.
Abusivamente (ou não) acrescentarei a estes, um princípio básico que carece de demosntração pela evidência intrínsica da sua formulação, tal como Wolf Singer o enunciou: “ Com 26 letras é possível escrever a literatura de todo o mundo pela simples recombinação dessas letras de modo flexível”

José Mário Leite

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