APRESENTAÇÃO DE RELEVOS
DE VIRGÍNIA DO CARMO
Os poetas podem
contemplar as estrelas, enquanto os bichos sociais se devoram na sombra (?)
Há coisas que se não medem com fita
métrica, não se pesam com balança, não se lhes avalia a temperatura com termómetro.
Há coisas cujo valor é imaterial, coisas que nenhum dinheiro pode comprar. O
talento é uma delas. O talento, esse privilégio, esse dom atribuído por um
qualquer deus e que guinda quem o possui a alturas onde aves não chegam, lá para
os lados das estrelas.
Nenhuma arte nasce sem essa centelha de
génio que ilumina o artista. Hoje falamos de literatura, mais precisamente de
poesia, para festejarmos uma obra que, a haver justiça, mostrará à
intelligentsia deste pais que, se Portugal é um país de poetas, Trás-os-Montes
ajuda a confirmar a asserção.
No interior deste espaço telúrico mais
lembrado por uns resquícios de tradições, pela gastronomia e por alguma
paisagem vendida ao turista a troco de um cálice de mau vinho fino, vive gente,
mais e menos jovem, que, ao dedicar-se à escrita, o faz por paixão, cônscia de
que dificilmente alguém lhe faça uma recensão, lhe dedique umas linhas na
imprensa cultural, lhe ponha os livros ao alto em estantes de livrarias onde se
acotovelam biografias de futebolistas, manuais de receitas de senhoras da
televisão, Dan Browns da moda.
Neste interior de rigores climáticos, de
distanciamento das capitais, Virgínia do Carmo não cruza os braços, melhor, não
põe um dique a estancar a inspiração. Vocacionada para a valorização da riqueza
cultural, acaricia os livros com mãos de veludo, abre-lhes o seu peito, qual
tabernáculo, onde, como veremos, arrecada ciosamente patrimónios afectivos e
vivências, estrelas e mar, rios e flores, pássaros e pedras. Mulher destemida,
empreendedora, persistente, livreira e editora, prosadora e poeta, de voz
acetinada e olhar luminoso, anfitriã que gosta de mimar quem a visita nem que
seja só com o seu sorriso, reservou-nos uma surpresa para a rentrée. Não é uma estreia no género, é
uma pérola ainda mais preciosa que as anteriores. Se Sou e Sinto (não conheço Tempos
Cruzados) é uma espécie de aperitivo gourmet, RELEVOS é um prato substancial, uma harmoniosa e saborosa mistura
de sabores, aromas e texturas, uma delícia para o paladar do espírito. Mas já
lá vamos
Em certas circunstâncias sinto-me no dever
de justificar a minha presença como apresentadora de uma obra literária. Não
sou macedense, não sou poeta. Estou, pois, aqui pela simples razão de gostar da
Virgínia e de ela gostar de mim. Ela quis arriscar. Por isso lhe estou grata.
Eu, talvez levianamente, aceitei.
Na minha longa carreira de professora de
Literatura que ainda sou, quantas vezes me interroguei sobre a análise de um
texto literário, sobretudo poético. Quem somos nós, leigos na arte da escrita,
para impingir aos alunos as nossas leituras?
A este propósito não posso deixar de
referir um episódio recentemente passado com Pires Cabral a propósito da Gaveta do Fundo. Num encontro de
leitores, uma colega escolheu um poema para ler e deu-lhe a sua interpretação
ao que ele respondeu: não era isso que eu queria dizer, mas agradeço-a e acho-a
aceitável.
Há dias, aqui neste lugar de cultura e de
afectos, punha-se uma questão que teria dado pano para mangas, se não para um
fato completo… O que é um escritor? O que é um poeta? Sem preocupações
académicas nem de teorização literária, eu responderia com toda a clareza e
simplicidade: o escritor distingue-se do escrevinhador como o poeta do
versejador.
Sobre os poetas, direi ainda que eles têm ideias.
Pensam, escrevem e, quem sabe, sonham poesia, enquanto os outros se limitam a
rimar banalidades, obcecados com as regras aprendidas na escola. Melhor do que
eu falam vozes credíveis. Como Adolfo Casais Monteiro em
Aurora
A
poesia não é voz – é uma inflexão.
Dizer,
diz tudo a prosa. No verso
nada
se acrescenta a nada, somente
um
jeito impalpável dá figura
ao
sonho de cada um, expectativa
das
formas por achar. No verso nasce
à
palavra uma verdade que não acha
entre
os escombros da prosa o seu caminho.
E
aos homens um sentido que não há
nos
gestos nem nas coisas:
voo
sem pássaro lento.
Pires Cabral chama à poesia “o danoso
ofício das metáforas” e Francisco José Viegas afirma: “A poesia não tem a ver
com a literatura. Releva do domínio do sagrado indizível”. E Torga escreve: “Os
poetas são como os faróis, dão chicotadas de luz na escuridão”.
Antes de nos pronunciarmos sobre a poesia
da Virgínia, vamos ver como ela se nos apresenta:
Na medida de todas as coisas
Na
medida de todas as coisas, eu
a
ser pequena.
O
ar a doer-me, a não caber no coração
pequeno.
E as mãos, tão pequenas, a perderem
os
gestos no avesso de todos os tamanhos.
E
eu,
a
ser pequena.
Um
horizonte a rasgar-me, a não caber
nos
meus olhos pequenos.
Um
chão de lume a consumir-me pés
e
passos. A vida a doer-me, a não caber
no
meu corpo pequeno. Tão pequeno.
E
na medida de todas as coisas, eu,
a
ser pequena.
Permitam-me
que apresente a minha versão dos dois últimos versos:
E
na medida das coisas poéticas, eu
a
não ser pequena.
Este livro chama-se RELEVOS. A plurissignificação obriga a um esclarecimento: um
vocábulo, três acepções. Cabe ao leitor a escolha da que entende mais adaptada
ao teor dos poemas. Ele tem essa liberdade. Por mim, opto pelo segundo sentido.
Porque ele me sugere a orografia transmontana, as suas fragas - altos-relevos esculpidos em pedra (“E há
fragas de pó no teu peito sem janelas”). Em contraste com a com a brandura lisa
e amarela da planície alentejana. E também porque a vida da autora nos surge
pautada por uma não linearidade, antes por percursos acidentados, sinuosos, exterior
e interiormente. A própria afirma: Não
sou uma linha recta; …não sei ir
direito para dentro de mim. O seu caminho, no duplo sentido de o caminho
por onde vai e o caminho que é, é feito de sobressaltos, de ciladas, de
incidentes e acidentes, de desafios, ilusões e desilusões, de mais dúvidas do
que certezas: Não sou caminho de bermas
simétricas.
Alheia a um mundo que a rodeia onde os
ditames sociais imperam, ela orienta “os seus próprios passos” , como afirma
José Régio em “Cântico Negro, segundo o que lhe pede o peito, esse reduto
inviolável do seu ser, essa caixinha de segredos, esse espaço onde gostaria de
guardar constelações e penedias, essa redoma onde se refugia “dos ares
contaminados: […] O corpo é um lugar que podes adormecer para / dissecar. Mas o
peito não. O peito é uma pedra dura…” (in “Dor”)
A propósito de pedra, assinalemos a
recorrência desta palavra a que vêm juntar-se chão e caminho, peito, corpo e
pele. Porquê pedras? Por serem parte integrante de chão? Pela sua firmeza, pela
resistência que oferecem ao efeito corrosivo do tempo? Pela garantia de perenidade?
Por serem testemunhas caladas do seu estar só?
“O
peito é uma pedra dura”;
“[…]
a síntese química das pedras”;
“É
um cordão de pedras e nós a engolir silêncios / irrespiráveis…”
“Apetece-me
// o silêncio das pedras”.
Quanto ao emprego frequente da palavra
chão, usada no seu sentido literal, não poderemos ver nela um sinónimo do
elemento terra? E de Terra Mater? Não será esse chão para Virgínia o que foi
para Anteu, o gigante da mitologia que se sentia inexpugnável ao pisá-lo? Um
chão que ampara os passos, as quedas, que não devora nem amputa como as ondas
do mar: Perdi os braços no alto mar.
“Cansada de tudo o que me sobra de chão”;
“[…]
luz estilhaçada no ventre do chão vazio”;
“Um
chão de lume a consumir-me pés e passos”;
“um
grito de esperança a eclodir do chão”.
Da recorrência dos vocábulos corpo, peito e
pele falaremos oportunamente.
As duas primeiras partes do livro são
dominadas por um eu que se desnuda
perante o leitor, que lhe transmite as suas angústias, os seus desejos e as
suas frustrações, um eu que é como um
novelo enrolado para o lado de dentro como se considerava Fernando
Pessoa. É um ser que sofre e que deixa transparecer a sua dor através do uso de
palavras como susto, medo, saudade, solidão, lágrimas, gritos, vazio, perda,
suspiro, desmaio, algumas delas a servir de título (ou parte dele) aos poemas
Só
Não
há desespero algum neste estar só. Se
permaneço
imóvel é porque o silêncio é mais
simples
do que a voz de alguém. Na fala dos
outros
há sempre a rouquidão das coisas. O
gemido
latente das mãos a quererem mais. E
no
chão fora de mim há estilhaços onde corro
o
risco de ferir os pés. Corações que se partiram
contra
as manhãs de vidro dos sonhos.
Aqui
estou a salvo. Neste estar só onde é impossível
enlouquecer.
Onde não há janelas que me atirem
tempestades.
Nem sol que me arda no peito.
E a propósito uma questão se me levanta: há
relação entre o estar só e a criação poética? Calculo que sim.
Temos a sensação de que o sujeito poético
(para usar a terminologia da moda) impõe-se como é antes de fazer entrar em
cena o tu que com o eu forma o nós, ambos protagonistas de um drama sentimental adivinhadamente
acidentado e que atinge o clímax na III parte. É a explosão dorida do
sentimento amoroso, é o assumir de uma dependência sentimental da mulher que,
como nas Cantigas de Amigo, suspira pela vinda do amado, pelos seus encontros,
dele pede novas às flores do verde pino.
É, também, a altura de recorrências
linguísticas como corpo, peito, pele, sugerindo uma comunhão de desejos e de
palavras, de cruzar de caminhos e de afectos. Como acontece em todas as partes
do livro, Virgínia faz uma curta introdução também ela poética como as anteriores:
Existir-me-á
para sempre // [A doer-me tanto] // O sulco fundo e transparente de um fio de
luz a // bordar-te em mim.
Não cheguei a despedir-me de ti
Não
cheguei a despedir-me de ti. Deixaste manhãs
nas
cortinas das palavras que ainda não tínhamos
dito,
e foste.
[Uma planície de silêncios a queimar-me os
pés. Passos
em
combustão no limiar da boca.]
No
peitoril da janela aberta morreu pouco depois a
~brancura.
E o eco das lágrimas que ela chovia do alto
dessa
paz de te querer tanto. E eu, quantas vezes
adormeci
sobre a brisa de claridades nascidas da tua
presença
simples, sem sombras, eu, que preciso tanto
desse
céu limpo sobre o corpo deste não dizer, desse
cair
sem dor no chão dos teus dedos, morro agora.
De
olhos secos. Derramada em faúlhas de espera. Sem
eco
que me salve da tristeza,
[um
vento forte a sacudir as palavras que ainda não
tínhamos
dito)
porque
foste,
e
não cheguei a despedir-me de ti.
(alternativas – “No
avesso dos voos”, “Dói-me o caminho que sou”,
A IV parte inicia-se, talvez
propositadamente, com o poema “Catástrofe”. É o regresso de um eu agora imbuído de uma preocupação com
os outros ( “Sobre as Pedras” – a fome que mata crianças todos os dias),
sensível à natureza e às suas dádivas – (“O tempo das laranjas”), crítico em
relação a atitudes de religiosidade imposta (“Páscoa” - Na
vigília extensa do Teu nome / algumas mulheres cobrem a cabeça. // Quase todas
se vergam em sacrifícios estabelecidos/ e genuflexões mecânicas, e natal (“Que
natal é este” – Dentro de mim não há-de
caber um natal / que não sabe caber dentro de todos.
Além do que, creio, ficou patente quanto ao
valor literário da poesia de Virgínia do Carmo, gostaria de referir pormenores
que me não passaram desapercebidos. Falo da riqueza vocabular por vezes
conseguida pela inusitada adjectivação (liquidez
inabraçável do mar; gritos angulares;
um anseio vertical; flores acéfalas; aresta áspera e estrídula) pelo recurso a termos eruditos (atérmico, admonição; disfásicas; assíncronos; ambular), pela
pluralidade de léxicos relativos a áreas do saber convocadas como a geologia, a
geografia, a psicologia e a filosofia, a física e a química e, sobretudo, a
geometria. Não se trata de intromissões abusivas e arbitrárias, antes surgem
como elementos de clarificação de ideias:
Perdi
[…] a triangulação das estrelas e a síntese química das pedras;
…na
rota recta dos/ olhos, na planura esguia dos ângulos do tempo // [obtusos
demais];
…Não
tenho ângulos para / medir a congruência dos passos.
Termino agradecendo aos presentes a
paciência com que me ouviram. Contava escrever um texto curto, mas a obra não
mo autorizou. Entusiasmei-me, e lá vai disto…
Reitero a ideia de que RELEVOS é uma colectânea
poética de Relevo. Um marco na
poesia portuguesa dos nossos dias a ombrear com poetas vivas como Teresa Horta,
Ana Luísa Amaral, Maria do Rosário Pedreira e outras. Que todo o relevo seja
dado a este livro em que alguém que tem a poesia inscrita no seu código
genético dá prova de segurança e de maturidade, eis o que desejo à autora a
quem me cabe agradecer o ter-me investido de tamanha responsabilidade.
Obrigada.
M.
Hercília Agarez, Macedo de Cavaleiros, 7/ 9 / 2014
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