[Aqui se deixa a intervenção de Ernesto Rodrigues na apresentação da obra Trás-os-Montes e Alto Douro: Mosaico de Ciência e Cultura, que teve lugar dia 14 de Julho de 2011, às 19 h., na Casa de Trás-os-Montes e Alto Douro em Lisboa, tal como fio anunciado neste blogue.]
Ernesto Rodrigues
Foi apresentada, em Junho, em Bragança, A Terra de Duas Línguas. Antologia de Autores Transmontanos, e já temos aqui segunda. São diferentes os critérios na escolha dos nomes que citarei – não exclusivamente nascidos na região –, com áreas de especialização que transcendem a poesia, a ficção e alguma antropologia –, mas ainda temos duas dezenas de nomes comuns. De tanta fartura nenhum outro chão se pode orgulhar, e nascendo estes frutos numa «pátria pequena», onde não vou desde 2002, quando apresentei edição de Poesias do ilustre filho Augusto Moreno, aqui evocado por A. M. Pires Cabral. Se, agora, só os vivos pesam, é um poeta maior do século XIII que nos reúne: trata-se de D. Dinis, que à terra deu foral em 26 de Abril de 1286. Vem reproduzido nas páginas 245-246, encimando o último e mais longo apartado desta obra, antes das biobibliografias dos colaboradores, lista de autarcas e iconografia – cem páginas dedicadas a Lagoaça, «terra adoptiva» de António de Almeida Santos (secundado por evocação da mulher, Maria Margarida Moreno areias de Almeida Santos), poliedricamente olhada na sua agricultura e minas, por Adília Figueira Verdelho e Hirondino Isaías; num reconhecimento militar em 1845, por Aniceto Afonso; enquanto terra de marranos, assunto versado por António Pimenta de Castro e, mais extensamente, pela dupla António Júlio Andrade / Fernanda Guimarães; na inteligência das alianças matrimoniais, por Vítor Barros. Já figuras locais de carne e osso, de sangue-azul ou típicas, do sapateiro ao coveiro, são descritas em Otília Pereira Lage e Amadeu Martins. Passam memórias na retina de Pedro Figueira Verdelho, Teixeira Leite, Maria Aliete Costa, Manuel Francisco Felgueiras Pinto, Rui Carvalho, Adelaide Neto. O presidente da Junta, Carlos Novais, traça uma fisionomia histórica, geográfica, sociocultural, paisagística e patrimonial – relevem-se pinturas rupestres e a tipologia dos moinhos – de freguesia com cerca de 500 habitantes. Enfim – primeiro que todos, ao qual é devido um aceno de gratidão –, o coordenador deste projecto, Armando Palavras, cura de aspectos religiosos de Lagoaça e Freixo de Espada à Cinta nos séculos XVII e XVIII, com anexo documental, e revela-nos a origem mítica do berço natal: Lagoaça significaria «serpente ansiosa», a crer em história de Cadmo e seu filho, bebida no ilustre transmontano Ferreira Deusdado.
Com o favor de Nossa Senhora das Graças, a cuja Comissão de Festas preside António Neto, e a rede de contactos de Armando Palavras, eis reunidos 74 autores, incluindo já as máscaras literárias de alguns e o Miguel Torga da capa e badana, no pretexto de 725 anos do gesto dinisino – e não 750, erro de contas do presidente da Câmara de Freixo de Espada à Cinta, José Santos (p. 341). É um feito, para tão breve tempo de preparação; e mais um dos convívios possíveis, à lareira da palavra, em que a região singularmente se afirma.
Se começámos pelo fim do mosaico, honrando o próprio lugar, olhemos ao demais transmontanismo. Adriano Moreira lança um alerta: “Voltar à terra e ao mar”. A política de «reserva alimentar» tem sido esquecida pelos responsáveis, de que é corolário a desertificação do interior. O mar também foi abandonado, e o país sofre. Como proceder? A conquista do húmido elemento, desde o século XV, foi um desígnio em que se envolveram milhares de comprovincianos, alguns nomeados entre os grandes navegadores. Do concelho de Freixo de Espada à Cinta saiu o número mais significativo de missionários, mas não só, como ilustra Inocêncio Pereira. Hoje, reduzidos às metrópoles nacionais e europeias, face às quebras migratórias africana e brasileira, não é fácil encontrar um novo D. Sancho I, que repovoe, e devolva a esperança do lugar. Há, felizmente, uma premissa, que também ressalta da iniciativa que nos reúne: a inquestionada paixão do terrunho, como teve um aqui fac-similado Fernando Subtil, lembrado na prosa falada de Hirondino Fernandes. Diáspora ou «tradicional comunitarismo», segundo Luís Dias de Carvalho, seriam solução. Na era da informação – sobre que o General Loureiro dos Santos discorre –, é suficiente, julgo eu, que as redes por satélite inspirem as dos transportes e as da ciência, para que se esbata o conceito de diáspora e se actualize o de comunitarismo. Serão úteis, neste ponto, os conselhos de Maria Márcia de Almeida Trigo sobre mercado de trabalho, a encerrar o primeiro terço da obra. Visando um turismo paisagístico e cultural, alfobre tão rico não se encontra, e fica a léguas do nosso romanceiro e húmus etnológico esse Alentejo dos poetas populares coligidos há uns anos por Modesto Navarro; de costumes e tradições falam Alexandre Parafita, sobre o Entrudo; António Pinelo Tiza, sobre a festa da cabra e do canhoto em Cidões, Vinhais; do bom vinho e da castanha vertida em marron glacé, José António Silva e Jorge Lage, devendo, no meu entender, entrar nesta secção o compósito de saudades gastronómicas de Virgílio Nogueiro Gomes, o melhor generalista em comes e bebes da região. Quanto ao dicionário de transmontanismos, vêm achegas de Telmo Verdelho, um pouco dispersas por outros, como Hélder Gomes, perdido entre lagoaceiros, que podia integrar o painel da narrativa. Deslocado Virgílio Gomes, as reminiscências de Donzília Martins poderiam acompanhar incidentes flavienses e macedenses do pós-Abril de 1974 de Manuel António Pires Brás. Mas sei como é difícil ordenar uma antologia…
Na movência das nossas vidas, urge, pois, olhar para o nosso chão, acordar com olhos novos para a terra que se conhece, mas nunca sabemos por inteiro. Por isso, viajam ainda nela Bento da Cruz, João de Sá, ou, Douro acima, António Barreto, Ilda Pinto Ribeiro, Carlos Abreu. Num enfoque arqueológico, por Riba Côa, sobem Alexandra Cerveira Lima e António Martinho Baptista. Já etnografia barrosã e História pátria que transcende as fronteiras naturais da região vêm na pena de António Lourenço Fontes e Barroso da Fonte.
Entreabrem-se, assim, disciplinas científicas, facilmente coligáveis com o perfil do médico e professor vinhaense Barahona Fernandes, por Abílio Gomes, e digressões universitárias de Maria dos Anjos Pires e da borboleta azul, cujos mistérios no planalto de Lamas de Olo desvenda Paula Seixas Arnaldo. Em sentido restrito, a cultura deste mosaico recobre museologia, por Nelson Campos, sobre o Museu do Ferro de Moncorvo; pintura, com Eugénio Cavalheiro comentando visitações dos séculos XV, XVI e XVII, sem espaço, nem cor, para as reproduções; música, segundo propostas de José Neves e Paulo Pinto, sendo que este, dos Galundum Galandaina, caracteriza o grupo dentro da música mirandesa e da padronização da gaita de foles. Confesso duas surpresas: a participação de Nadir Afonso, arquitecto e pintor maior, em confissão de artista, resumindo a sua busca; e, pela primeira vez, leio três páginas de Roberto Leal, que tira dos pauliteiros, da sanfona, da música, em suma, «o sentimento de pertencer a um lugar, a um povo, a uma raça» (p. 217). Mais espaço tem a literatura.
Tenho a honra de três pinceladas líricas – foi, decerto, por só ocupar um fólio que me convidaram para o esforço inglório de apresentar estas 400 páginas –, acompanhado por Fernando de Castro Branco, Ilda Pinto Ribeiro, Rogério Rodrigues disfarçado em Pedro Castelhano (com versos do seu mais recente livro, entre os raros não-inéditos), Sílvio Teixeira. Esperaríamos outros poetas, mas a amostra é suficiente.
Passando à mais nutrida narrativa, é significativo de uma comunhão que ultrapassa ideologias, e dá gosto ver, lado a lado, António Borges Coelho e António Passos Coelho. Aquele, além de historiador e professor universitário jubilado, mostra-se o enternecido poeta que também é, com o seu Homem do Chapéu Amarelo; este cria a sugestiva figura de um filho das ervas que terá o inaudito nome de Pai do Trabalho. Seguem-se Bernardino Henriques, Fernando de Castro Branco em tom evocativo, Fernando Chiotte Tavares entre Lisboa e França, Jorge Tuela, os diálogos insólitos de Manuel Cardoso à volta dos trasgos: «– Trasgos, que é isso, trasgos? // – Ora, senhor engenheiro, são trasgos!» (p. 101). É outro achado incluir um trago de J. Rentes de Carvalho e ouvir a figura impressiva do Faísca perguntar na nossa tão particular segunda pessoa: «– Tendes lume?!» (p. 97)
Quando, um pouco acima, subíamos o Douro, parámos na Terra de Miranda. Seria, já não uma injustiça, mas erro gritante omitir a realidade que é sermos a única terra de duas línguas, parafraseando a antologia que Amadeu Ferreira e eu organizámos. Esta indisputada riqueza justifica o texto conjunto de Carlos Ferreira e Júlio Meirinhos: aquele, definindo as vertentes histórica, antropológica, geográfica e cultural da Tierra de Miranda; este, narrando o processo legislativo de aprovação, pela Lei 7/99, de 29 de Janeiro, do Mirandês como segunda língua nacional. O feito é enquadrado pelo dito janicéfalo de Amadeu Ferreira / Fracisco Niebro. No primeiro texto, o vocábulo ‘ambuça’ alegoriza a força da palavra, que se transforma em gesto criador: o mundo nasce do fiat, é uma construção do verbo divino. Universo afim, a própria língua é um devir, tem que se dizer, buscar, multiplicar, derreter e acender em novas palavras, como anaforiza o poeta Niebro, também narrador de uma «stória trágico terrestre» vivida pelo pai do autor, na sua primeira emigração francesa, em 1947. É um documento impressionante de quem, 15 meses depois, volta a casa sem dinheiro.
Pegando na motivação com que fecha essa história – escrita por dever de memória –, outro tanto direi do escopo deste mosaico, o qual há-de perdurar entre as navegações felizes da cultura portuguesa.
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