DIA DA
CRIANÇA
Um conto ─ uma
vivência
O PATINHO
DESASTRADO
A galinha Pintada era a mais bela e
atilada da capoeira. Mal o galo Sacrista, de crista romanista, dava o sinal da
alvorada, corria ligeira a esgravatar na
estrumeira.
Não que a vida não se ganha a dormir. E
a Pintada tinha grandes sonhos: queria voar, partir à procura de horizontes mais
largos.
Era uma galinha elegante, de um negro
esverdeado, salpicado de pintinhas brancas. A dona, a senhora Maria, já andava
de olho nela. Não duvidava que aquela dengosa daria uma grande poedeira ─ era de
raça─, mas seria uma boa mãe?!
A dengosa perdera o juízo: cantarolava,
batia as asas, numa correria louca pela cortinha, desafiando todos os galarós da
vizinhança.
Porém, após uma postura de uma dúzia de
ovos, a Pintada começou a ficar esquisita: perdera o brilho das asas, comia
pouco e andava febril. Punha a cabeça de lado, contemplava o azul transparente
do céu e pensava... pensava...
Deu em ficar na capoeira. Juntou umas
palhinhas à volta dos seus ovinhos, e ali se quedou sobre eles, dormindo e
sonhando, sonhando e dormindo. E só acordava quando a dona a chamava à
realidade, oferecendo-lhe alimento e água, que ela bebia sofregamente. Era então
que podia observar aqueles ovinhos tão brancos e polidinhos donde sairiam os
filhinhos da Pintada. Mas ocorrei-lhe uma ideia extravagante: foi pedir à
vizinha um ovo de pata e colocou-o no meio dos
doze.
A Pintada, quando deparou com aquele
intruso, exclamou surpreendida─ cuó! cuó! cuó!!!
E lá se foi ajeitando como pôde,
empurrando dum lado e doutro, abrindo as asas o mais que
podia.
Levantava-se, agachava-se, dormia...
dormia... sonhava e mal comia. E no fim de vinte e um dias, ouviu umas
batidinhas leves nas cascas dos ovos. Um a um, com a sua ajuda, saiam os
pintainhos: molhados, espantados, de biquinhos
afiados.
Com a atrapalhação, nem reparara naquele
ovo grande que para ali se agitava. Mas eis a sua surpresa quando lá de dentro
espreitou um biquinho, achatadinho, e um patinho amarelinho, desajeitado, saiu
da casca do ovo meio atordoado.
Có... có... có... có! Có... có...
có...! ─ gritava a Pintada muito assustada. Não
percebia aquele fenómeno. Que coisinha tão engraçada! Mas tão
molengona...
Piu... piu... piu... gemiam os
pintainhos, muito espertinhos, já de penugem
enxuta.
A mãe galinha aconchegou satisfeita a
sua ninhada. Ora ali estavam, sem tirar nem pôr, os seus doze filhinhos mais
aquele desconhecido. Era fácil de ver que não pertencia à sua raça, não senhor.
Mas que fazer? Não fora ela que lhe dera a vida?!
E o seu tormento tinha começado. À
noite, quando procurava abrigar do frio os pequeninos, lá saía ele, ligeirinho e
acalorado, debaixo das penas da mãe à procura do fresquinho; e por ali se
ficava, afastado das asas protectoras. A pobre mãe não descansava. Aquele
maluquinho não iria apanhar um resfriado?
O pior foi quando a dona trouxe a comida
e um pratinho com água. O doidinho, em vez de comer, pôs- se a brincar: enchia o
biquinho de água e sacudia-a por todos os lados. Os irmãos é que não gostavam da
brincadeira. Ele, todo contente, só desistia quando lhe tiravam o prato da
frente.
Dois dias depois, a senhora Maria pôs
os pintainhos no quintal, pertinho da capoeira; a galinha tratou logo de ir
ciscar bichinhos para os filhos. E cada vez que apanhava um, chamava-os muito
entusiasmada. Está bem. O patarrocho queria lá saber..., ou não percebia, ou
fingia não perceber.
Cuá... cuá... cuá..., que língua
aquela que aquele patetinha falava?! Estava mais que visto, não se entendiam.
Então ela oferecia-lhe o cibato e ele corria a debicar ervinhas?! Aquele filho
(seria mesmo seu filho?), só com muita
paciência....
À tardinha, dirigia-se a Pintada,
muito apressada, muito ligeira, com a sua ninhada, para a
capoeira.
Lá vai o patinho no fim da fila,
cambaleando, atrapalhado, muito atrasado. A Pintada pára a esperá-lo. Mas quê! O
maroto caíu. A o subir um sulco, perdeu o equilíbrio, e ei-lo de patinhas para o
ar a... dar a... dar... tal qual uma bicicleta voltada a... pedalar... a
pedalar...
A mãe choca foi ao seu encontro e,
duma bicada, pô-lo direito. Sacudiu a ponta das asinhas, firmou as patitas
vermelhinhas e correu atrás da mãe, ainda mal refeita do susto. Os irmãozinhos
piavam à volta daquele patetinha desastrado.
Chegara o mês de Abril ─ tardes
lindas, cheias de sol! As Eiras, o prado verdejante que dava acesso à aldeia,
cobrira-se de ervas tenrinhas e de margaridas de corolas branquinhas. Nos olmos,
os passarinhos mantinham conversas com os seus filhinhos. Lá em baixo, cantava o
ribeiro de águas mansinhas.
Para lá se conduziam as ninhadas que
cresciam ao calor do sol primaveril, em plena
liberdade.
Nesse dia, a Pintada passava pelas
outras galinhas de pescoço erguido, muito orgulhosa da sua prole. Elas voltavam
as cabeças, muito desdenhosas ao verem aquela coisinha esquisita que, pata aqui,
pata ali, seguia atrás dos pequenitos. Que horror! Onde fora ela arranjar aquele
besourinho! Seria moda criar um animalzinho tão
desajeitado?!
Piu... piu... piu... ─ gritavam
alegres os pintainhos.
Có... có... ró... có... ─ ia
cantando, toda vaidosa, a Pintada.
Cuá... cuá... cuá... ─ respondia lá
de trás o patinho amarelinho.
Que linda família! ─ dizia a galinha
Pedrês que apenas tinha três pintos todos carecas ─ é preciso ter sorte para ter
doze filhos daqueles, mais um diferente, mas tão engraçadinho.
Que abortinho! ─ replicava-lhe uma
mãe frustrada e invejosa.
Ao chegarem ao meio do prado, o
patinho saiu do grupo e pôs se a correr como um louquinho. Tinha ouvido o
murmúrio do ribeiro lá ao fundo e ficara fascinado. A galinha mãe correu atrás
dele apavorada. Chamou, gritou, mas o
rebelde não atendeu a rogos. Precipitou -se para o meio da corrente e nadou,
mergulhou, dançou...
Pobre Pintada! Gritou por socorro a
plenos pulmões: có... có... ró... có... có. Os irmãos, atarantados, nem
acreditavam no que viam. O tolinho deslizava feliz na serena superfície da água:
mergulhava a cabecita, espetava a mitrinha, sacudia as patinhas... Enfim: era um
fartar de malabarismos.
Só então a mãe compreendeu que ele
era completamente diferente dos outros irmãos. Deixou-o no meio da sua euforia e
foi esgaravatar nas estrumeiras que os lavradores ali
depositavam.
Os pintainhos ficaram cheios de
admiração por aquele irmão tão corajoso, tão atrevido. E um deles, iludindo a
vigilância da mãe, que de penas eriçadas, enfrentava o ataque dum corvo que
pairava lá no alto, foi, sorrateiro, espreitá-lo. O brincalhão estava todo
refestelado de patitas para o ar, gozando o calor do sol.
O pintainho pensou para consigo como
seria bom mergulhar naquela água fresquinha. Sem hesitar, atirou-se lá de cima
para experimentar. Rebolou como um novelo levado pela corrente. Foi só o tempo
do patinho saltar para água e salvar o imprudente.
A mãe galinha vinha aflita à procura
do desertor. Deparou-se com aquela cena e ficou paralisada. Afinal aquele
monstrinho amava os seus irmãos. Era diferente, sim, mas igual: era seu filho,
pertencia à sua família, integrara-se nela e acabava de o
provar.
Daí por diante, passou a acarinhá-lo
ainda mais e aceitá-lo como um verdadeiro filho ─ extravagante, sim, mas
querido. Não falavam a mesma língua, é certo, mas unia-os os mesmos
sentimentos.
Uma tarde, quando todos brincavam nas
Eiras, cada um à sua maneira, eis que surge uma família de gansos: a mãe à
frente encaminhando a prole, o pai vigilante à retaguarda. O patinho ficou
deslumbrado: correu a toda a pressa para o grupo. A Pintada
compreendeu...
Os gansos saudaram-no com afecto e
adoptaram-no como filho ─ cuá... cuá... cuá... gritavam contentes os gansinhos,
agitando as caudinhas. E os irmãos,
surpreendidos e tristes, assistiam de longe a toda àquela manifestação de
alegria.
A Pintada nem olhou para trás; pegou
nos doze filhinhos e foi andando para casa. O outro fora-se para
sempre.
O patinho desastrado, desorientado, e
de tudo já saturado, quando viu lá longe a Pintada e os filhotes, correu como um
danado. Nem se despediu dos seus.
Afinal, chegara à conclusão que fora
aquela quem o gerara, quem o criara e o acarinhava, sofrendo com paciência as
suas extravagâncias, as suas diferenças. Era ela a sua verdadeira mãe. Eram
aqueles pacíficos pintainhos os seus verdadeiros
irmãos
A Pintada ficou pasmada quando o viu
lá em baixo a correr aflito e exausto. Comovida, abriu as asas para o
receber.
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