Apresentação do livro em Sendim |
Apresentação do livro de Paulo Patoleia, “Rostos
Transmontanos”, em Torre de Moncorvo, no dia 26 de Julho de 2014, pelas 21
horas, na igreja da Misericórdia
Boas noites!
Bem-hajam por terem vindo.
E sejam bem-vindos à vetusta vila de Torre de Moncorvo,
fundada pelo rei Dinis no já longínquo ano de 1285, mais precisamente a 12 de
Abril, momento em que lhe foi outorgada carta de foro, não obstante a povoação
já existir como aldeia da então sede, hoje a Derruída Santa Cruz da Vilariça.
Saúdo o Presidente da Câmara Municipal, o
Alcalde-presidente da Municipalidade de Morille (Salamanca), o Vice-presidente
da Academia de Letras de Trás-os-Montes, o Provedor da Misericórdia, a
Bibliotecária Helena Pontes, os familiares, os colegas, os conterrâneos, os
amigos e amigas.
E uma saudação especial, aos três “rostos” representados
neste livro e nesta sala presentes. Eles são os protagonistas desta cerimónia.
Reunimo-nos aqui para assistir ao lançamento de um
livro, um livro que na verdade é um monumento, um monumento que pretende
homenagear a gente transmontana, gente que herdou um território e que se
prepara para no-lo legar.
É um livro pelas suas características, especial.
Especial pelo conteúdo -fotografias e textos- e pelo cuidado com que foi
trabalhado para poder circular, para poder ser usufruído.
Relativamente às características físicas do livro,
saberá o Editor dizer melhor do que eu.
Mas atentem bem nesta capa! Capa sobre a qual, há dois
dias, o meu amigo Euclides Griné, membro dos Estudos Literários da Universidade
de Coimbra, ao agradecer o convite que lhe enderecei para este encontro (e que
ainda não conhece o livro, apenas a capa), dizia que “a capa é notável: vejo
nela o tempo feito, o coração no meio e a interrogação adiante”.
Nele se apresentam 74 fotografias, sendo que uma delas
representa o Fotógrafo e é de autoria do seu amigo e nosso conterrâneo Leonel
Lopes, e a cuja memória foi o livro dedicado.
Possui 4 textos mais extensos, a minha Apresentação, o
Prefácio da Tradutora / Intérprete Isabel Matos, a Introdução pelo Conservador
/ Restaurador e amante da Fotografia Jorge Abreu, e um Posfácio do Alcalde de
Morille e professor da Universidade de Salamanca Manuel Ambrosio Sánchez.
Todos aqui presentes.
Mas a ele livro se associaram mais 46 amigos que, com
a sua pena, legendaram os retratos, o que perfaz um total de 52 autores.
52 autores! Reparem bem! Só um registo fotográfico com
esta força anímica é capaz de mobilizar tanta gente.
São eles (exceptuando-se os dois Fotógrafos), por
ordem alfabética: A. M. Pires Cabral; Alfredo Cameirão; Amadeu Ferreira; Antero
Neto; António Afonso; Antonio Gómez; António Júlio Andrade; António Luís
Pereira; António Pimenta de Castro; António Sá Gué; António Tiza; Arnaldo Silva;
Artur Salgado; Assunção Anes Morais; Augusto Bordalo Ferreira; Bernardino
Henriques; Berta Nunes; Carlos Carvalheira; Carlos d’Abreu; Carlos Pedro; Carlos
Sambade; Chus Sánchez Villasante e José Ballesteros; Emilio Rivas Calvo; Ernesto
Rodrigues; Fernanda Guimarães; Fernando Mascarenhas; Henrique Pedro; Isabel
Mateus; Isabel Matos; J. Rentes de Carvalho; João Farias; Jorge Abreu; Jorge
Cordeiro; Júlia Ribeiro; Lara de León; Leandro Vale; Leonel Brito; M. Hercília
Agarez; Manuel Ambrosio Sánchez; Maria de São Miguel; Miguel Pires Cabral; Paula
Machado; Renato Roque; Rogério Rodrigues; Rosa Sánchez; Teresa Leonardo
Fernandes; Tiago Patrício; Virgínia do Carmo; e Vitor da Rocha.
O meu bem-haja a todos eles por terem aceitado, sem
hesitar, este desafio. Desafio que, com o Editor António Lopes, tive o prazer
de coordenar.
Editor a quem muito devemos por ter tornado possível
este livro. E eu que o diga!
Quando as fotografias de Paulo Patoleia começaram a
ser mostradas na exposição itinerante, rapidamente alguns de nós percebemos que
mereciam ser reproduzidas em livro para mais gente a elas poder aceder. Isto
ocorreu em 2011. Nesse ano uma editora de fora foi contactada, não por mim. E o
seu responsável aceitou o desafio e chegou com o Fotógrafo a assinar um
contrato, contando ela vir a ser subsidiada através de mercenários que operam
na zona mas, a subvenção falhou e o contrato caducou.
Entrei eu em cena a pedido do amigo Patoleia. Foram
solicitados os textos a três outros autores em Janeiro de 2012.
Fui organizando o material, solicitei a elaboração da
maqueta, pedi alguns orçamentos a gráficas, tudo com vista a candidatar a sua
publicação ao “Programa de Apoio aos Agentes Culturais”, da Direcção Regional
de Cultura do Norte, através da Associação Cultural e Recreativa de Maçores.
A candidatura foi apresentada em Março desse ano e
após vencidas todas as burocracias, da qual ficámos a aguardar o desfecho, desfecho
que se demorou vários meses -muito para além do calendário previsto no
regulamento do referido programa-, findo os quais, recebemos a notícia de que o
nosso projecto não havia sido contemplado.
A verdade é que o programa apoiou na região, nesse
ano, 37 outros projectos, no valor de 30.700 €.
Entretanto quis o acaso, cruzar-me com o nosso
conterrâneo Editor António Lopes, a quem dei conhecimento do projecto. De
imediato se propôs reunir connosco para conhecer o trabalho e, após essa
reunião, decidiu apoiar incondicionalmente a publicação. Naturalmente que isto
aconteceu, porque o Escritor António Sá Gué também é transmontano e, a sua
condição de Agente Cultural da região, não previa outra decisão face a material
com esta qualidade, no qual, logo nos comunicou, também se revia.
Mas para não alongar este acto, uma vez que há várias outras
pessoas que deverão intervir, passo directamente à minha leitura da Obra:
Rostos
Transmontanos,
tal é o mote. E que
dele ninguém remoque porque o não permitiremos!
O nosso conterrâneo e
amigo Paulo Patoleia, rebelde na juventude, ainda hoje de espírito irrequieto,
após muitas aventuras, venturas e (algumas) desventuras, descobriu nos últimos
anos o gosto pela Fotografia. Desenvolveu-o e achou a arte que ela encerra.
Conseguiu-o através do género “retrato”. Não o retrato que os nossos
antepassados mais próximos buscavam nos fotógrafos da vila de Moncorvo (que os
teve muito bons), para remeterem aos familiares ausentes nas Áfricas ou nos
Brasis. Ou os exigidos pela Administração, para o Bilhete de Identidade. Não!
Estes são retratos especiais. Muito especiais. As fotografias aqui reproduzidas
revelam primeiro que tudo o olhar do fotógrafo. De seguida, o rosto registado
pelo fotógrafo, o sujeito da fotografia, não a coisa, o objecto, mas a pessoa e
o seu mundo. Depois… Bem, depois o nosso olhar é conduzido a penetrar o olhar
do fotografado. E é a leitura que daí resulta, que nos faz perceber a mestria
do Paulo.
Se neste trabalho o
Paulo Patoleia revela, por um lado, coragem (porque arrisca expor, expondo-se),
por outro mostra-se generoso (porque sabe partilhar). É nesta partilha e só
devido a ela, que podemos perceber que é um criador.
Estes rostos não
deixam ninguém indiferente. São o rosto de uma região inteira. Contêm toda a
Geografia Transmontana, revelada pelos sulcos neles impressos durante a
passagem do khrónos. Tempo e
telurismo, juntos. Solo e clima agrestes. Ladeiras, fragas e arroios. Moroiços,
socalcos, cepas, oliveiras e amendoeiras. Janeiros geadeiros e canículas
estivais. As leiras. Afinal daimosos porque dobrados pela vontade
inquebrantável de sobreviver no território que lhes calhou para viverem.
São retratos, são
gente, gente que povoa um território que se despovoa. São metáforas. Mensagens
de canseira, de solidão, de sofrimento, de mágoa, de privações, de
sobrevivência, por vezes de resignação. Mas também os há, de confiança, de
grandeza, de fé e até esplendor. Todos dignos.
E não resultam de um
casual registo do real, antes de uma intenção facilitada pelo facto do
retratista estar também retratado. Pois só quem sente ou pertence
verdadeiramente a um povo, lhe consegue captar a sua essência.
Quando vimos pela
primeira vez este conjunto de retratos, perguntamo-nos se os retratados, quando
se deixaram fotografar, imaginaram que viriam a ser mostrados em público. Nesse
momento chegamos a questionar-nos da licitude do acto, quer dizer, do direito
ou não de expor na àgora, uma pessoa assim, “desnudada”. Se o fotógrafo os
informara da sua intenção. E muito menos que sobre eles viéssemos a escrever.
Será que se alguns deles nos vierem a ler, directamente ou por interposta
pessoa, se não rirão de nós, por pormos ar tão grave em rostos e vidas tão
simples? Que legitimidade temos para registar e sobretudo tentar interpretar a
vida alheia? É esse um exercício necessário? Que contributo damos, uns e
outros, para melhorar a vida deste povo?
A verdade é que este
conjunto de telas é um registo in
extremis de um corpo extenuado, que definha porque o seu sangue embarca
todos os dias. Já não é só o vinho que desce o Douro, é também quem plantou as
cepas. E antes que elas mirrem, contemplemos os multifacetados rostos do Paulo
Patoleia!
Carlos d’Abreu
“Rostos Transmontanos” de
Paulo Patoleia
Analisar uma imagem é muito mais do que
simplesmente reconhecer o seu traço, a sua técnica, a sua composição e os seus
factores emocionais transmitidos. É preciso entender as estéticas fotográficas.
Quem fotografa quer dizer algo e ainda que não divulgue as suas fotos a verdade
é que continua a querer dizer algo, numa espécie de comunicação “interior”…
Paulo
Patoleia é, com “rostos transmontanos”, um comunicador na mais “emocional”
forma de o ser. E “emocional” porquê? Porque se na estrita medida dos cânones
vigentes de beleza os seus retratados podem não ser os melhores “espécimes”, e se
em termos técnicos as suas fotos podem não ser “perfeitas”, aliás como Paulo
no-lo diz ao afirmar que na
fotografia, mais que a qualidade técnica, procuro captar e registar as gentes,
as emoções, os olhares e os momentos, então será nesse lado “emocional” que as suas fotografias nos tocam… E
todos nós sabemos a dificuldade que por vezes temos em fazer prevalecer a razão
sobre a emoção, tal é a sua importância nas nossas vidas.
***
Em Portugal a fotografia começou por ser divulgada,
em meados do séc. XIX, por um pequeno número de pioneiros amadores, e de entre eles
vários estrangeiros, que habitavam em Lisboa e no Porto (especialmente os
ingleses ligados ao comércio do vinho do Porto). Numa exposição em Lisboa, no
início de 1890, cerca de mil retratos são patentes ao público. Em 1891 é
introduzido o flash de magnésio em Portugal, tão importante no retrato. Nos
finais do século XIX, a fotografia tinha “chegado” à Casa Real.
Neste telegráfico resumo da história da fotografia portuguesa
procura-se, acima de tudo revelar a importância da arte de Paulo Patoleia, o
retrato. Desde o “cartão-de-visita” enviado à família (com o esforço financeiro
que por vezes tal significava), muitas vezes aos pais, que não viam os seus
filhos crescer por força da necessidade de emigrar, até ao retrato da família
real, nomeadamente no reinado de D. Carlos do qual nos chegaram diversas fotografias
das suas caçadas, passeios e exploração marinha.
***
Relativamente à “tal” fotografia enviada para os pais
ausentes, e esperando que o Paulo Patoleia me perdoe, permitam-me homenagear as
muitas mães que por isso passaram e em particular a minha mãe, Maria Isabel
Abreu, que foi uma dessas mulheres que ficou por Maçores – Torre de Moncorvo,
com três filhos, enquanto o meu pai foi à procura de “melhores dias” para
Angola. Tenho em mente uma fotografia, certamente como muitas outras famílias
que no seu espólio fotográfico têm fotos idênticas, que sem ser uma
“cartão-de-visita”, tinham no seu verso mensagens do tipo para o nosso pai,
com saudades…. É uma foto das minhas irmãs Hermínia e Mª do Carmo e do meu
irmão Mário. Que pena que eu tenho de a minha mãe já não estar por cá, pois certamente
o Paulo Patoleia poderia acrescentar mais um “rosto transmontano” ao seu já
extenso espólio, com toda a emoção que tão bem consegue retirar e transmitir, e
eu poderia tirar conhecimento e amor do que seriam os 88 anos de minha mãe…
***
Em termos teóricos ao olharmos uma fotografia, seja ela de
que tipo for e retratando o que quer que seja, há uma corrente de pensamento
que defende que devemos olhar rapidamente a foto e “senti-la”. De seguida
devemos olhar de novo atentamente todos os pormenores nela presentes e recolher
dela “sentimentos” transmitidos. Opinar logo um “gosto” ou “não gosto”, sem
antes procurar “entender” os sentimentos que a fotografia, enquanto meio de
comunicação, nos transmite, é um erro comum.
Os “rostos
transmontanos” do Paulo Patoleia, são mais do que tudo a transmissão de
emoções. Será possível a alguém emitir um peremptório “não gosto” relativamente
a um qualquer “rosto transmontano”? Como é possível não gostar do olhar das
gentes simples que o olhar do Paulo nos mostra?
Só consigo imaginar uma
situação em que tal seja possível: o próprio retratado não gostar da forma “não
arranjada” como o Paulo o viu. Todos sabemos que as pessoas gostam de se
“arranjar” para a fotografia e tiro o “meu chapéu” ao Paulo por conseguir que
os seus retratados tenham aceitado sê-lo sem dar pelo menos um “jeitinho ao
cabelo e à roupa”. Parabéns! Penso que tal só é possível, provavelmente, porque
os retratados vêem o Paulo como um “dos seus”…
Afinal, que emoção
transmite um retrato feito por um qualquer profissional, num qualquer estúdio
fotográfico quando comparado com os “rostos transmontanos” do Paulo Patoleia?
Atrevo-me a responder: nenhuma!
***
São esses
factores emocionais, a que o Paulo Patoleia mais importância atribui, que fazem
com que uma fotografia possa ser vista uma única vez e jamais esquecida.
Quem não se lembra da fotografia do soldado anti-franquista
a ser abatido ao sair da trincheira, na guerra civil espanhola, de Robert Capa,
ou da fotografia da menina vietnamita a correr após um bombardeamento americano
com “napalm”, que lhe havia queimado a roupa e a pele, fotografada pelo
indonésio Nick Ut ou ainda, e para homenagear um grande fotógrafo português,
Eduardo Gageiro, da fotografia de Sophia de Mello Breyner Andresen a escrever, fumando
junto à janela)…
Acaso alguém se preocupa com questões técnicas ou de
composição com fotografias destas? São estas que nos fazem ficar com um “nó na
garganta”, com lágrimas nos olhos, de alegria ou tristeza…
***
Se
pensarmos que sem o advento da fotografia o mundo como o temos hoje seria muito
diferente, bastando pensar que sem ela não haveria cinema, televisão e a
internet seria certamente muito diferente, poderemos imaginar os milhões de
fotografias/imagens que nos “passaram pela vista” sem nos transmitirem nada,
daí que não possa estar mais de acordo com o Paulo Patoleia, são as emoções o mais importante que se pode
transmitir numa fotografia e, sendo que isso não é para todos, resta-me
pedir ao Paulo para continuar a fotografar com “ligação directa” do olho ao
coração, porque queremos sentir mais emoções!!!
Jorge Abreu Vale
Lousa, 26 de Julho de 2014
Patoleia[1]
Desconhecemos as histórias que se escondem por detrás dos retratos de Paulo
Augusto Patoleia, o fotógrafo de Torre de Moncorvo (nascido na Açoreira). Num
primeiro contacto com a sua obra, sem lhe prestar demasiada atenção, alguém
diria que é um trabalho como tantos outros, sobre indivíduos singulares,
insólitos, cuja vivacidade ou extravagância são chamativos para quem está
acostumado a contemplar um mundo convencional, estandardizado, no qual a roupa,
comportamentos e fisionomia parecem fruto de uma cadeia de montagem. E no
entanto, basta determo-nos frente a qualquer um desses retratos e suster o olhar
profundo dos homens e mulheres fotografados, para perceber e compreender que não
se trata de uma aproximação trivial ou efémera a essas gentes e ao seu meio, alheio
e distante para a maioria, mas não para o Patoleia, com a captação do momento, quando
tenta resgatar a biografia de tais pessoas (o seu passado e presente, mas
também o futuro), indissolúvel do que foi e é a realidade histórica do meio
envolvente: Trás-os-Montes.
Para começar, Patoleia não é precisamente um fotógrafo de passagem, mas um
conterrâneo mais, que convive ou alterna com as pessoas que retrata no decorrer
do seu quotidiano, seja nas feiras e mercados (ele e a Lúcia são feirantes) ou quando
se desloca às festas, romarias e outros acontecimentos ou celebrações da sua
terra.
Os rostos que Patoleia captura são belos e serenos, de uma beleza clássica
que pouco ou nada têm que ver com os cânones estabelecidos, quase homérica, pelo
que revelam de luta, de briga eterna frente à dureza do clima, a geografia, o trabalho
no campo, a emigração, frente às dificuldades para levar por diante, durante
décadas, a família ou a casa, e para sobreviver ao sempiterno abandono e ao olvido
dos governos e das instituições…. O tempo e as adversidades deixaram nos homens
maduros e, sobretudo nos anciãos, a sua marca inapagável: pele curtida e condimentada
pelas muitas rugas, bocas desdentadas, cabeleiras e barbas povoadas, mãos e unhas
que foram e continuam sendo ferramentas para o trabalho… E, no entanto, não há
assomo de ira ou rancor, nem sequer de contrariedade ou de descompostura, nos
rostos que o Patoleia fotografa, apesar do sofrimento e da perda, apenas
tranquilidade ou doçura que contagia benevolentemente a quem os contempla.
Inclusive naquelas fotos em que pressentimos os últimos passos da roda da vida,
os olhos que nos olham parecem contagiar-nos de esperança.
Porque, para além de tudo, o Paulo é um fotógrafo de olhares, uma dedicação
nada fácil que exige a cumplicidade com o sujeito retratado, uma certa
intimidade entre um e outro que se projecta para fora da superfície física da
obra até nos envolver. Dessa forma temos amiudadas vezes a sensação, quando
contemplamos uma imagem sua, que os papéis se invertem e que é o homem ou a
mulher do retrato que nos observa e inquire, que somos nós os retratados.
Adivinhamos no Patoleia uma atitude compreensiva relativamente às gentes da
sua terra (no fim de contas, é um deles), mas não de complacência. Esta aceitação
dos outros, não obstante, parece algo natural em si, porquanto se estende para
além dos limites geográficos do território que conhece, quiçá por essa tendência
do seu ofício de um certo vagabundear: a mesma proximidade se observa noutros
retratos do Patoleia, de gentes estranhas, que foca com a sua câmara porventura
no mesmo instante em que as descobre, e que se prestam a posar para ele como se
fossem velhos conhecidos ou amigos. Estes casos confirmam que o autor não tem, dum
modo geral, notícia da vida ou carácter dos seus modelos, gente em trânsito que
passou diante da sua objectiva e que esta registou, para além das formas,
também os seus traços vitais, que se fixarão na memória de todos (um jovem olha
um passarito que tem na mão ante um céu azul branqueado por uma nuvem; uma garota,
de vestido e grande lenço na cabeça floreados, sorri com olhar maroto: ambos
acabam de chegar, para uma curta estadia, a um povo salmantino, Paulo trá-los pela
primeira vez). Talvez ajude, para alcançar esse grau de confiança para com os estranhos,
o facto do Patoleia se comportar como os restantes (assando castanhas ou
tomando uma cerveja), com a particularidade de que leva, pendurada ao pescoço
ou mão, uma máquina fotográfica. Não é, em absoluto, esse fotógrafo aparatoso em
frente do qual nos precavemos, não vá roubar-nos o espírito ou magoar-nos com o
disparo. Essa atitude reflecte-se na sua obra, desembaraçada de recursos
técnicos e respectiva parafernália. Neste sentido, a alternância da cor ou do preto
e branco nos trabalhos do Patoleia, mais que meditada escolha, resulta duma
questão secundária, quase indiferente para a intenção de veracidade que norteia
os seus propósitos.
Mas atenção, não nos deixemos enganar por essa aparente simplicidade. Nas fotografias
do Paulo o detalhe é importante, assim como esse segundo plano, por vezes
apenas perceptível, no qual se vislumbram os ramos das árvores da região (oliveiras,
amendoeiras e outras fruteiras), os muros de pedra e as casas, a paisagem
quebrada, ou esses outros rostos que fornecem o contraponto geracional (mulheres
modernas com óculos de sol de marca e finos blusões de couro, adolescentes e crianças
de hoje), necessário para ser fiel aos factos e não desvirtuar a realidade. Um
rosto fraquito adornado com um lenço ou brincos primorosos; um homem ajusta ao
corpo o seu humilde casaco como se fosse para uma boda… Em certas ocasiões estes
detalhes tornam-se opacos, quase enigmáticos, como naquela foto em que um
individuo severo, de idade avançada, num acontecimento ao ar livre, segura
acima da cabeça o chapéu virado ao contrário: passa a procissão e este homem
descobre-se sem deixar de se resguardar do sol.
Desde o presente (uma velha faz meia ou vai à feira; um velho reclina,
pensativo, a cabeça sobre o seu cajado; outro aldeão reza), as fotografias do
Patoleia abarcam uma vida inteira, uma vida que devemos imaginar, supor, sem
que isso se consiga num ápice, ao contrário do valor do retrato: histórias de farragacheiros,
pastores, contrabandistas, comerciantes, quase sempre gente simples… E também dão
fé e testemunho de ofícios e ocupações que, especialmente no caso dos mais
velhos, foram desaparecendo com o rodar do tempo. Por tudo isso, os retratos do
Patoleia constituem um registo, muito mais que um banco de dados ou um catálogo
das gentes e da terra transmontana, porque chegam carregados de afecto.
Noutras séries, o Patoleia regista diferentes realidades do concelho de
Moncorvo ou das aldeias da região: pinturas a frescos, imagens religiosas,
fotos de velhas fotos. Para dissipar a ameaça da monotonia, uma instantânea de
um automóvel clássico, o início de uma rua, um grupo de pessoas brincando no
campo. Subitamente, inopinadamente, um reboque de circo, de fulgurante cor vermelha,
virado numa valeta; tem a porta entreaberta e na carroçaria pode ler-se, com
letras que anunciam o perigo, cuidado com o hipopótamo…
Na parede da minha biblioteca um retrato pendurado, de grande formato (assim
os costuma imprimir) que me ofereceu o Patoleia. É o retrato de um homem completamente
desconhecido para mim. Sobre um fundo negro, assim como negro o colete e o típico
chapéu, o seu rosto ilumina-se, eu diria que resplandece. Apenas se insinua (esses
detalhes do Patoleia) o colarinho desbotado da camisa. Tem os olhos pequenos, talvez
pela idade ou pelos desgostos, a boca ligeiramente afundada, a barba curta e pouco
cuidada. Há, no entanto, no olhar deste homem, como que uma resistência à
finitude, um rescaldo de ilusão, uma profunda esperança. Não nos cansamos de
olhar a fotografia, as sensações que emanam da figura variam com a luz do
momento e o nosso estado de espírito. Assaltam-nos todo o tipo de figurações
sobre este homem, como viveu, se teve filhos, que será feito dele. Em todo o
caso, contemplá-lo sossega e anima-nos a continuar a lutar.
O Patoleia soube condensar a expressividade na sua essência. Herdeiro de outros
fotógrafos trasmontanos ilustres, o seu sentido de humanidade benévola e
modesta, transporta-nos para além do território que enxerga no dia-a-dia, no
qual flui a água pelos regatos e fluíam antanho as gentes pelos caminhos.
Manuel Ambrosio Sánchez Sánchez
Morille (Salamanca), Fevereiro de 2012
Discurso do Autor (Paulo Patoleia), na apresentação do
livro “Rostos Transmontanos”, em Torre de Moncorvo, no dia 26 de Julho de 2014]
Boa Boa Noite a todos e todas.
Quero agradecer antes de mais,
ao Senhor Presidente da Câmara Municipal de Torre de
Moncorvo pelo apoio que tem revelado aos autores transmontanos,
agradecer também
à Senhora Bibliotecária Helena Pontes (responsável pela Divisão Cultural),
e à sua equipa, pelo profissionalismo, organização e
bom gosto a que já nos habituaram.
Agradecer aos meus amigos,
E a todos os presentes.
Este livro deve-se sobretudo ao Doutor Carlos d’Abreu,
um ilustre transmontano-duriense, investigador, Geógrafo, Historiador,
Arqueólogo (e também Poeta), com vasta obra escrita e publicada, muito estimado
e respeitado nos dois lados da fronteira pela sua intervenção enquanto
“contrabandista cultural”, como ele gosta de dizer.
Sem ele, não estaríamos hoje aqui, porque este livro pura
e simplesmente não existiria. Graças à sua acção e determinação, levou a bom
termo esta missão a que por finais de 2011 meteu ombros.
Foram dois anos de esforços e contrariedades, mas
nunca esmoreceu, ao contrário do que aconteceu comigo.
Mas estas contrariedades foram completamente
ultrapassadas no momento em que se cruzou com outro dos nossos, o Editor
carviçaense António Lopes / Escritor António Sá Gué, e, juntos, organizaram e
coordenaram o envolvimento dos outros autores que convidaram, dedicando-lhe
muitas horas do seu tempo, pois pelo que pude ver, mais difícil do que fazer
umas fotografias por aí (ou até escrever uns textos), é preparar esse material
para ser impresso e encadernado.
Dedico este livro à memória do Fotógrafo amigo Leonel
Lopes, natural dos Nozelos, pelo carinho manifestado para com o meu trabalho e
o incentivo ao introduzir-me nesse grande grupo de fotógrafos que partilham o
conceituado portal de fotografia, o OLHARES.COM. E entretanto falecido.
Agradeço a todos os que intervieram no meu livro, por tão
bem terem sabido interpretar as minhas fotografias, através da sua prosa, toda
ela de sabor poético. Sem esses textos o livro não estaria completo.
Naturalmente que destaco deste grupo:
- mais uma vez o Doutor Carlos d’Abreu que de forma
brilhante escreveu a Apresentação;
- a Tradutora e Intérprete Isabel Matos que, numa
bonita e emocionante viagem ao passado das suas memórias pelo nosso Concelho,
prefaciou, desde o extremo Oriente;
- o multifacetado Jorge Abreu, também amante da
fotografia, pela belíssima e esclarecida Introdução, relativamente ao olhar
fotográfico e à qualidade técnica (ou falta dela) do autor deste livro;
- o Filólogo Manuel Ambrósio Sánchez,
alcaide-presidente do município de Morille (Salamanca), que muito tem feito
pela cooperação cultural transfronteiriça, através da organização, há 12 anos,
do festival transfronteiriço de poesia e arte vanguardista em meio rural , festival
que recebeu com muito carinho a minha exposição, há precisamente três anos. O
seu Posfácio revela a faceta do “maestro” de literatura na Faculdade de
Filologia da Universidade de Salamanca.
Permitam-me aqui um pequeno aparte:
[quiça o nosso Presidente Dr Nuno Gonçalves e o Alcalde
Doutor Manuel Ambrosio, agora que se conhecem pessoalmente, pudessem pensar em estabelecer
uma parceria para a realização do referido festival, até porque os dois
municípios, entre muitas outras afinidades, como o facto de serem raianos, são ambos
terra de mineiros. Aqui deixo o repto]
Mas o meu agradecimento maior (estou certo que os
outros colaboradores compreenderão), o meu BEM-HAJA TRANSMONTANO, vai, sem sombra
de dúvidas, para os fotografados. Aqueles que ao longo destes anos,
compreenderam, autorizaram e se disponibilizaram -com a naturalidade que se
impunha-, para que lhes tirasse o retrato.
E só assim foi possível este extenso trabalho de cerca
de 3 mil fotografias da nossa gente, 74 dos quais agora e aqui, dados à
estampa.
Agradeço a cumplicidade e o apoio da minha companheira,
Lúcia Morais. A sua ajuda foi preciosa, quando nas feiras prolongava o diálogo
com os fotografados, para facilitar e beneficiar o fotógrafo.
Agradeço por fim, a todos os que se dispuseram vir
partilhar este momento comigo, especialmente os três “rostos transmontanos”
presentes no livro e aqui também em carne e osso, apesar das limitações
físicas, impostas pela idade, para aqui se deslocarem.
São eles, a Sra Maria José Lapa (com 101 anos de
idade), o António e a Ti’Otelinda, de Torre de Moncorvo, da Horta e da Açoreira
respectivamente.
Estamos pois aqui a apresentar um livro de fotografias,
cujo tema são os “rostos” com que me fui deparando pelas aldeias, feiras e
mercados da nossa região, sem nunca pensar que viriam a integrar um livro. Um
livro, ao qual, como disse, se associou um conjunto de literatos e que muito o
enriqueceram.
Quando comecei este humilde trabalho fotográfico, mais
não pretendia do que registar esta geração de «velhos», que de tão nosssos, nem
nos apercebemos que se extinguem todos os dias, porque são perecíveis e aos
poucos deixamos de os ver e com eles vão as nossas lembranças de menino e
tambem um pouco de nós mesmos...
Mais do que a qualidade técnica pretendi registar as
emoções e os momentos.
Ofereço este livro às gerações vindouras, para que
façam dele uma janela, janela que devem manter pelo menos entreaberta, por
forma a poderem ler nos “rostos” daqueles que os antecederam, as fadigas e as
canseiras vividas, para que nos pudessem legar o mundo que eles próprios haviam
herdado e que nós temos o dever de transmitir.
Por isso selecionei os retratos nas variantes de
tristeza, alegria, fé religiosa, trabalho, etnia, gastronomia, folclore, etc., de
forma a mostrar nas limitadas páginas disponíveis, um retrato glogal das gentes
transmontanas, das quais, orgulhosamente eu faço parte (NÓS FAZEMOS PARTE!),
pois esta geração que se se extingue, levará com ela a sua singela e ancestral
forma de vida, como os valores e os costumes, a indumentária (eternos lenços ou
xailes negros e chapéus de feltro com aba), levará as suas orações e a sua fé, a
forma como amou, trabalhou e se divertiu.
Enfim, uma realidade já hoje distante e que da próxima
geração –informada e formatada para um espaço europeu e globalizado–, mais
distante estará.
Se queremos fazer justiça a esta gente que está a
morrer, temos de acreditar no futuro e na renovação, pois que o futuro deverá
ser renovação, renovação com respeito pelo passado.
Tudo isto meus amigos porque, como diz a amiga
sanabresa Chus Sánchez Villasante no fim deste livro, «porque a vida tem de seguir por estas terras transmontanas».
Bem hajam por me terem escutado!
As memórias rugosas de Patoleia
Passei
a minha infância em Trás-os-Montes, protegida atrás dos montes na pacatez de
uma vila onde não acontecia muito. Foi uma infância feliz. E é por isso que os
rostos transmontanos de Paulo Patoleia produzem em mim uma profunda nostalgia,
pelos anos idos e pela felicidade inocente que não volta.
A
cada rosto abre-se-me uma porta de lembranças infantis, povoadas de existências
mais velhas, idosas, vividas. São os velhinhos que ainda não o eram enquanto eu
crescia inconsciente na mesma terra onde eles envelheceram; os adultos que eram
então tão crianças como eu. Misturo os tempos e as verdades, vejo neles as
minhas pessoas, aquelas que ocuparam parte do meu imaginário mesmo muitos anos
depois de partirem, as que deviam ser esses rostos velhinhos e não chegaram a
sê-lo.
Numa
das velhotas vejo a minha Tia Micas, tia-avó que me mimava durante as breves
estadias em Maçores e que se foi antes de ter rugas para testemunhar a dureza
da vida, que não deixou de ser dura só porque acabou precoce e desenrugada.
Vejo a comida que me tentava enfiar pela goela abaixo na varanda da casa agora renovada,
admiro a energia nunca esgotada com que se movia, sinto as suas mãos ásperas e
generosas ao massajar-me as costas com azeite antes de dormir. O Tio Adriano
aparece no rosto de um velhote simpático e visivelmente de poucas falas, como
ele era, de sorriso doce e brando. A prima Laura, filha de ambos, teria hoje
feições mais antigas do que as que recordo, enérgicas e joviais. Vejo-nos a
todos na Rua Nova, agora minguada ao ponto do ridículo pela dimensão opressora
da realidade adulta, que eu percorria correndo com outros miúdos da aldeia e
onde as brincadeiras não tinham fim sob o olhar cuidadoso e restritivo dos
idosos que ainda não o eram, nem chegaram a sê-lo. Avisto até a avó que não
tive, para mim envolta em mistérios, desaparecida antes de eu ter memória, ali
no retrato de uma senhora de olhos claros, amável e sábia como a imagino, cheia
de carinhos e conselhos e histórias para contar. Estas podiam ser as minhas
pessoas. E são as pessoas de alguém, captadas assim na transparência do olhar,
sem ensaios nem pieguices, sem palavras nem cerimónias.
Sem
palavras, os rostos de Patoleia fazem-me recuar no tempo e contam-me as tais histórias
que nenhum avô pôde contar-me. Só falta ouvir-lhes as vozes sabedoras e o tom
de pedagogo com que teriam tanto a ensinar. A descrição da vida no campo, das
viagens forçadas, dos parentes emigrados, dos sucessos relativos dos filhos e
dos netos, dos orgulhos da sua vida duradoura e, quase por certo, das mágoas de
crosta frágil que aparecem sempre nos contos de quem viveu duradouramente. As
rugas que lhes sulcam os rostos são percursos trilhados, sentimentos rasgados à
força, com força, ao longo de anos passados depressa de mais. A pele engelhada
testemunha esforços extremos e há episódios dramáticos impressos em cada vinco
do rosto, envelhecido pelos mesmos desgostos que envelhecem a alma, amarrotado
pelas mesmas desilusões que partem o coração. Até os corpos parecem encolhidos,
como os lugares da minha infância.
No
meio das minhas reminiscências, espreito a narrativa de cada retrato. Muitas
biografias são comuns, poucas são de uma originalidade espantosa. Quase todos
os semblantes denunciam a tranquilidade algo triste de quem não tem nada a
provar. Tudo foi dito, tudo foi feito. E, ainda assim, há olhares que preservam
o brilho de um dia feliz que acabou repentino e implacável, levando consigo,
para o passado, algum momento irrepetível. Um daqueles momentos que não sabemos
serem felizes se não muitos anos depois… Um momento que, se soubéssemos ser
feliz, teríamos saboreado mais consciente e demoradamente. Mal eles sabiam, os
velhotes transmontanos aqui retratados, que a simples relembrança pode
recuperar, naquele momento também irrepetível em que a fotografia congela a
realidade para sempre, uma fracção minúscula mas valiosa dessa felicidade
existente num instante único da vida. E ali estão, ora de sorriso desdentado e
belo, ora de olhar desconsolado, ora de gestos meigos e tristes, congelados
assim mesmo pela objectiva, tão objectiva na sua interpretação instantânea de
uma vida inteira.
Num
retrato, está o desgosto de amor nunca revelado a ninguém, a ser enterrado com
ela, a desgostosa, ao lado de mais um ou dois segredos bem guardados desde a
juventude. Outro olhar revela o sacrifício de ter ficado apesar de querer
partir. Ainda outro, o arrependimento de ter partido durante demasiado tempo em
vez de ter voltado cedo. Um tenta esconder a amargura de um filho que resultou tão
diferente dos sonhos nele depositados à nascença. Outro desculpa a
superficialidade dos netos, que falam uma língua ininteligível e não param nem
um bocadinho para o avô lhes dizer o que vida lhe ensinou. Há um senhor
zangado, que todos os dias espera que esse dia seja o último de uma espera vã,
sem surpresas nem sentido… mas que, sem que ele próprio o perceba, anseia pelo
sol de inverno que lhe parece mais bonito às três da tarde, naquele banco verde
de jardim encostado à parede velha de pedra, onde há setenta anos deu o
primeiro beijo. Há uma senhora que engole a mágoa que lhe provocam as palavras
ingratas da filha Maria, que lhe fala já sem respeito nem paciência, como que
impaciente pela sua partida; engole a mágoa para não a magoar a ela, tão nova e
tão amargurada já pela vida, com paredes tão mais estreitas do que as que ousou
sonhar para si aos 15 anos – quando ainda respeitava e ouvia a mãe –, com chão
firme mas tecto falso.
E
o Francisco que me deixou sozinha tão cedo; queria lembrar o amor que lhe tive
um dia, mas é maior a raiva do abandono e a raiva de sentir raiva quando afinal
já nada disso vale realmente a pena.
Que
descanso não ter tantas dores nos ossos hoje, ao acordar. Que alegria esquecer
as dores uns minutos, e lembrar-me de quando a engrenagem ainda mexia, de
quando a intensidade das dores não se tinha ainda tornado o barómetro das
actividades do dia.
Bem
sei que a rabugice do meu homem é a sua maneira de me dizer que faço falta, e sei
bem que quando finjo zangar-me lhe quero deveras dizer que não saberei viver se
ele se for antes de mim.
Quantas
vezes me rio sozinho ao lembrar um acontecimento de antigamente, e depois choro
por lembrar que mais ninguém lhe sobreviveu, só eu!
E
estas fotografias resguardam, não a juventude ilusória e ida, mas a velhice
presente e genuína, pura e honesta, bonita e triste. Conservam a verdade que
teremos se vivermos o suficiente para lá chegar. Fazem-nos pensar no tempo, nos
pais que também envelhecem apesar de os querermos sempre novos, sempre nossos.
Mas também fazem renascer a esperança em novos começos, dão ânimo para fazer
história a cada nova ruga, embelezam a pele encarquilhada da idade mais sábia.
Graças
a uma sensibilidade invulgar, os rostos transmontanos, enrugados, de Paulo
Patoleia deixam-nos ver a alma da terra, das gentes, da humanidade que há neles
e em nós.
Isabel
Matos
(Pequim,
Janeiro de 2012)
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