19 janeiro 2014

Apresentação do livro “Histórias de Benlhevai”,por Rogério Rodrigues

Benlhevai é o Reino Maravilhoso de José Maria Fernandes. Pertencendo a um família numerosa e ele com assento mais permanente nesta aldeia de Vila Flor, foi incumbido de ser o cronista-mór do Reino.
E desempenhou bem as funções, porque este livro é e será uma preciosidade para os estudiosos de antropologia, etnografia, comportamentos sociais,linguística mesmo ou sobretudo nos regionalismos,
localismos ou corruptela das palavras, o que levou, compreensivelmente,o autor  a apendiçar um glossário à obra.
 O que nos pode surpreender neste livro é a coexistência do sagrado com o profano, o repositório de um conhecimento empírico e ancestral na nomeação e catalogação das alfaias agrícolas , das suas características e utilização.
É toda uma cultura popular, mais assente na passagem de testemunho e memória de pai para filho, do que em qualquer documento escrito.
Registe-se também, e não é tão pouco, uma recolha da sabedoria popular, dos costumes, e dos ciclos da vida do homem e da Natureza. E nunca, como aqui, o homem e a natureza andaram tão ligados e foram tão dependentes um do outro.
 O próprio  trabalho agrícola, tão bem relatado pelo autor, conduz-nos a um conhecimento de práticas seculares. Já o poeta grego Hesíodo, na sua obra “Trabalhos e Dias”, escrita  500 anos anos antes de Cristo, nos relata o quotidiano agrícola com características semelhantes ao nosso trabalho agrícola até há bem pouco tempo. Já Hesíodo descreve com pormenor as distinções  entre o arado simples e o arado articulado.
 Chegado aqui, com o mundo rural hoje tanto em mutação, apetece-me lembrar-vos uma história, verdadeira, que aconteceu em Trás-os-Montes, após o 25 de Abril, quando nós, gente do norte, passamos a ser vistos como gente ignara, que vivia noutro mundo, como se o Reino Maravilhoso não passasse de um Jardim Zoológico, por profunda ignorância urbana, ou tentativa envergonhada de alguns esconderem as suas origens, renegarem as suas raízes, principalmente aqueles que se acomodaram às delícias da cidade e amesendaram à falsa fartura do orçamento.
 Aqui vai a história. Estava o país em plena campanha para as primeiras eleições livres, após 48 anos de obscurantismo, quando um jornalista  da RTP rumou até ao Norte. E porque uma velha de negro vestida é sempre uma imagem de que  um modelo de citadino gosta, vai de entrevistá-la, com o ar paternalista de quem tem o conhecimento do efémero e do que está na moda,perguntando-lhe: “ Então velhinha sabe o que é uma Assembleia Constituinte?”. A velha nem sequer olhou para ele e respondeu: “ E o senhor sabe o que é um almude de azeite?”
Estamos perante dois mundos: um que tem séculos de conhecimentos acumulados; outro, que não passa da espuma dos dias.
 Bem haja o autor deste livro que consegue recuperar o que irremediavelmente estaria perdido, porque cada velho que morre é um livro   que desaparece.
 Benlhevai tem a sua história. O primeiro registo que se conhece, e já com este nome, é de 1258, nas ordenações de D. Afonso III, farto  que os senhores feudais lhe roubassem terras que, por direito real, lhe pertenciam.
Em 1950 a aldeia tinha 500 habitantes. Pelo censo de 2011, não passava de 200 habitantes. Durante 60 anos, esta aldeia, como tantas outras, foi dilacerada pela emigração e pela guerra, os cemitérios cresceram mais do que as creches e as escolas.
O autor denota uma grande consciência social quando retrata, com minúcia, as condições de vida e os seus agentes, com a aldeia hierarquizada entre ricos (digamos antes abastados), pobres ( digamos antes muito pobres) e remediados( digamos antes, no limiar da pobreza, mas com algum património).
O livro, sendo um testemunho de solidariedade vicinal e de hospitalidade para o forasteiro, é sobretudo um hino à mulher, como o elemento fundamental da comunidade.
 E o autor vai enumerando pelo nome, as mulheres como heroínas e os homens que fazem parte da sua memória e da sua infância, com os nomes e mesmo as alcunhas.
O autor é rigoroso na descrição das festividades, tanto pagãs como religiosas, desde a festa do Divino Espírito Santo até à matança do porco em Dezembro.
E não deixa de lembrar que o início do ano agrícola é uma espécie do início de vida. Tudo na aldeia se move por ciclos, os homens e a natureza.
Hiatos há que vêm perturbar esta rotina secular: os anos loucos do volfrâmio, em que as riquezas morriam tão cedo como tão rápido tinham nascido.
Depois, com as minas em ruínas e os mitos abandonados, tudo regressa à normalidade das trovoadas de Maio, das pulhas e do Entrudo, da Quaresma,dos jogos do fito e do ferro, das segadas, de Agosto quente e das festas do Cabeço.
E atento à minúcia, o autor descreve, como se fosse o guia de um Museu do Mundo Rural, a malhadeira e o carro de bois. A descrição deste, é exemplar, com utensílios aperfeiçoados ao longo dos séculos, num conhecimento empírico que nos leva a admirar como aquela simplicidade é tão complexa.
A linguagem tecnológica e asséptica do software, hard ware, down load, etc. etc,  se é simples para os seus utilizadores e hoje tão vulgarizada, em relação às partículas ( passe a ironia) que compõem um carro de bois, é pobre. Dificilmente um hacker compreenderia esta linguagem.
 Vai longa já a conversa. Muito haveria ainda de dizer, desde a generosa tentativa de uma juventude carregada de ideais, com o 25 de Abril,  ressuscitar tradições e promover ciclos culturais, com a criação de escolas e a visita semanal do médico.Mas os sonhos foram-se perdendo. Cada um partiu para o seu lado, à procura de vida melhor, o deserto vai-se estendendo pelas aldeias, o próprio país é um sítio cada vez menos frequentado.
Resta ao autor a ligação profunda, de um intensidade quase possessiva, pela sua aldeia.
 E não quero terminar sem citar uma das passagens que mais me comoveu no livro. Em 1963, chegou finalmente à aldeia a luz eléctrica E qual poeta Homero que, não vendo, via mais do que os que viam, Alfredo, e passo a citar, “ que nunca verá luz eléctrica chora abraçado a mim, no dia em que oficialmente chegou a luz a Benlhevai”.

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