30 novembro 2013

«A Casa de Bragança» e «Do Movimento Operário e Outras Viagens»

No lançamento de A Casa de Bragança e Do Movimento Operário e Outras Viagens, na Livraria Ferin, em 27 de Novembro

Agradeço a presença de todos, desde jovens universitários a colegas deste ofício de trevas, que é a literatura, em que buscamos iluminar alguns caminhos; desde familiares a amigos, alguns de longa data, outros que vim fazendo na minha actividade crítica e editorial, no associativismo regional, na Academia de Letras de Trás-os-Montes, no Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias da Universidade de Lisboa. Permito-me salientar, por razões de idade e pelo que representa de sacrifício, os nomes de Eduardo Lourenço, Eugénio Lisboa e João Rui de Sousa.
Quis a Âncora Editora arriscar uma dupla neste dificultoso torneio do papel impresso, e logo, também, com poesia, integrando-me em colecção dirigida por Rogério Rodrigues: o provento será escasso, não a dívida com que fico para com Inês Figueiras e Sofia Ferreira de Lima. Já no romance, curou da edição Virgínia Caldeira, que conheço desde os idos de 80, quando ela trocava a Dom Quixote ‒ onde eu me estreava no romance, com A Serpente de Bronze (1989) ‒ pela Editorial Notícias, que editaria o meu segundo romance, Torre de Dona Chama (1994). Mais constante interlocutor era, todavia, António Baptista Lopes, que, já na Âncora, aceitou inesperada Antologia da Poesia Húngara (2002), uma das 20 espécies que dessa língua do diabo traduzi. Os nossos almoços, viagens, telefonemas e encontros dariam volume rico de impressões e boa disposição, na companhia de Teresa Martins Marques e Amadeu Ferreira.
Depois de, há dois anos, ter lançado o terceiro romance, O Romance do Gramático, na Livraria Bertrand, sabe-me bem descer à segunda mais antiga livraria nacional – inicialmente, Librairie Belge-Française −, fundada em 1840, e secundada pelo Cabinet de Lecture de Mlle Férin, na Rua do Carmo, família que se estendia à encadernação e à moda. Com efeito, O Mundo Elegante / Periodico Semanal, de Modas, Litteratura, Theatros, Bellas-Artes, dirigido por Camilo Castelo Branco no Porto, em 1858, propunha extratextos com toilettes de baile e passeio segundo as avisadas «Mmes Ferins». E ocorre-me ter antologiado, em Crónica Jornalística. Século XIX (2004), texto de Fialho de Almeida n’O Repórter, de Oliveira Martins, em 2-I-1888, intitulado “A Boa-Hora Cómica”, donde cito: «Subo a Rua Nova do Almada um tanto aborrecido – acabo de pagar uma enorme conta no livreiro e de ser apresentado ao orador que eu mais detesto, depois do cornetim. O dia é pardo, nuvens no alto, o vento a erguer da rua redemoinhos dum pó corrosivo à pele; e com um milhão de diabos!, não tenho hoje visto senão raparigas barbudas nos asfaltos! // Estas picuinhas todas irritam-me; e, como o Ferin não tem novidades, enfio pela espécie de saguão estreito, que a Câmara Municipal convencionou chamar o Largo da Boa-Hora.» Não é um dia fialhiano; o tribunal desertou, mas temos entre nós dignos magistrados; felizmente, a Ferin está cheia de novidades; e, se alguma barbuda existe, só se for em ministério nas proximidades. Grato, pois, aos editores e a esta velha casa.

Comecei a abandonar a crítica e o ensaísmo, a que dediquei demasiada vida. Editei oito títulos de ensaio e crítica; sou responsável por 35 volumes de autores como o Padre António Vieira, Herculano, António Pedro Lopes de Mendonça e o primeiro jornal socialista, vários Camilos, As Farpas completas de Ramalho, Júlio Dinis, Eça, os jornalistas Alves Correia e Raul Rêgo, Augusto Moreno poeta, José Marmelo e Silva, António José Saraiva. Pediram mais tempo a actualização do Dicionário de Literatura, de Jacinto do Prado Coelho, e as 1 064 páginas do clássico de um grande jurisconsulto, desembargador e procurador da Coroa, Tomé Pinheiro da Veiga e sua Fastigínia (1605), com que sonhei durante 23 anos. Se juntar capítulos em obras colectivas, actas, prefácios, revistas de circulação nacional e internacional, subo às 160 espécies, que é um terço dos artigos desde 1971. Desconto a cronística; não contabilizo o profissional do jornalismo que também fui. Ou seja: a necessidade e a Universidade desviaram-me… de mim. Silenciei sete peças de teatro; há contos novos, após A Flor e a Morte, de 1983; e, à atenção dos editores, oito romances à espera. O duplo lançamento de hoje significa viragem e reencontro comigo. Falarei, pois, destes frutos.  

Com Do Movimento Operário e Outras Viagens, sexto livro de versos, celebro 40 anos de vida literária. Estreei-me em 1973, andava no então 6.º ano do liceu, com um volume impresso nas oficinas franciscanas de Montariol, em Braga. Era chefe das máquinas frei Perdigão, que, em noite diluviana do mês de Maria, acolheu o noviço das letras, me banqueteou em mesa austera, levou aos granéis de Inconvencional (como se intitulava) e ofereceu generosa cela. Revimo-nos 33 anos depois. Eu estava na Feira do Livro e contava a Vergílio Alberto Vieira essa primeira ida a Braga, quando a Teresa impôs subida. Boleados, dirigi-me à portaria: «Frei Perdigão ainda é vivo?» Eis uma frase camiliana. Camiliano é o início do romance: «Eu tinha oito anos e nada sabia de mim.» Vejam o início de Mistérios de Lisboa: «Era eu um rapaz de catorze anos, e não sabia quem era.» Do frade eu guardava memória de ser de muitos dias. E o recepcionista, espantado: «Sim. Está além a conversar com umas pessoas.» A sala era obscura; eu estava em vésperas de um descolamento de retina. Vislumbrei um ainda poderoso frade, aos 69 anos, que, encerrada a gráfica, explorava o húmus do convento em ervas e medicinas do corpo. «Frei Perdigão?» «Sim. Quem me procura?» «Sou Ernesto Rodrigues.» «Não é de Bragança, pois não?» Ele não aceitava que aquele cinquentão substituísse retrato antigo, ousado como o menino do poema oitavo d’O Guardador de Rebanhos. «Sim, sou.» «Não me diga!» E desatou no elogio da obra e criança que, fora de horas, batera à porta do silêncio… Vivi cinco anos dentro das paredes de dois seminários, mas tive naquele frade o único abraço caloroso de um ministro do Céu. Não é pouco, se isso deram uns versos mal-educados, com palavras feias manchando os caracteres da tipografia divina.
Sou escritor desde que me conheço; já enquanto leitor, que era antes dos seis anos, quando entrei na escola primária de Torre de Dona Chama. Do lado da minha Mãe, havia a nobreza das letras, que deu historiadores, sociólogos, políticos, filósofos e jornalistas, mas também, nas artes, um arquitecto e um pintor.  
Contra a solidão de leitor, já escrevedor voraz, meti-me, aos 12 anos, a criar jornais de parede, lá onde pairava o nome de ex-colega, Afonso Praça. Em letra impressa desde os 14, fui encontrar, no semanário diocesano Mensageiro de Bragança (a par de outros, alguns de Lisboa, como a revista Eva, Diário Popular, A Capital), o reverso de mim associável à literatura ‒ daí, a tese de doutoramento conjugar literatura e jornalismo ‒, e não poucas cumplicidades. Destas, nasceram colectâneas a oito mãos, sendo mais badalada J. C. Falhou Um Penalty. O balanço lírico é, hoje, de seis títulos com a minha assinatura, dois em colaboração e 18 presenças em antologias, também desde 1973, quando Maria Alberta Meneres me integrou em O Poeta Faz-se aos Dez Anos, na Assírio & Alvim.
Fraca produção para quatro décadas. O ritmo criador é, em média, menos de um poema por mês, bem pouco em nação de poetas derramados. A síntese da primeira década, Para Ortense: Variantes, em 1981, quando iniciava funções de leitor de Português na Universidade de Budapeste, teve palavras amigas de Luís de Miranda Rocha no Diário de Lisboa ou de João Rui de Sousa na Colóquio/Letras; mas poucos conheceram, e menos entreviram, o que de inquietação psíquico-formal e novas propostas emergiam, pela singela razão de que nascera um aborto gráfico e me envergonhei de colocar esse livro no mercado. A plaquete Sobre o Danúbio, em 1985, mereceu de Luiz Fagundes Duarte, no JL – Jornal de Letras, Artes e Ideias, a seguinte apreciação: «A meu ver, este livro representa muito do que poderá ser a porta de saída do nosso lirismo português...» E, se venho construindo, como aí se lia, uma «teoria lírica», certo é que só em 2016, quando reunir 45 anos de poemas, se entenderá um percurso já entretanto aberto pelo discreto Do Movimento Operário e Outras Viagens.
Na tarde gélida de 1 de Novembro de 1981, visitei, no castelo de Buda ‒ com aquela vista fabulosa sobre o Danúbio, o Parlamento, etc. ‒ , o Museu do Movimento Operário, hoje chamado Ernst Múzeum, dedicado à arte contemporânea. Subitamente, deparo com uma forja de ferreiro, igual à dos ruídos em minha casa, que me alimentou, e a lima de meus tenteios literários não abafava. Nasceu, assim, o poema de uma separação forçada de pais e filhos em país que se resolvia na emigração, como volta a ser o caso, hoje, com a diferença de que os novos meios de comunicação facilitam os contactos. Dedicando o romance à memória da Mãe, que pede o segundo poema ‒ «Minha mãe nunca atrasa o meu futuro. / Repito a escansão deste verso e nado em luz.» ‒, agradecer a Pai artista num título alusivo é o mínimo que se exige.
Destes movimentos do coração, onde assomam Filhas e amigos, passamos às viagens na História e na Geografia. O que em mim faz deflagrar a poesia está em dois versos de “Árvore”, interlocutora no parque atrás do apartamento de Budapeste, que revisitei, em idas à Hungria e ao passado. Certa manhã, ao vê-la, nasceu isto: «Todo emudeci ‒ lentamente franzido na alma / como ribeiro onde caiu a folha suspirada.» Face à referência imediata, sucede um confronto íntimo, «Um abandono de tudo, como na felicidade», e nesse transe vão meus passos e ritmos ao longo do Danúbio ou da Váci utca, à arte do barroco, ao realismo socialista, Europa fora, particularizada em cidades de passagem ou de demora ‒ entre estas, Château-Thierry, terra de La Fontaine, mostrou-me, aos 16 anos, em 1972, que a liberdade política e de pensamento não eram uma fábula…
Após uma incursão marroquina, sucedem os lugares da portugalidade, cá dentro e além-mar, do Porto Santo e Pico a Maputo, de Timor ao Brasil. Relevo as feiras dos Santos e dos Reis, na Torre de Dona Chama natal, «feiras dignas de Plutarco». Doseada a técnica do encavalgamento com uma estrofação ritmada aprendida nos latinos e no jazz, e rima vária vigiada, subo, entretanto, aos conceitos de pátria-berço, pátria-poesia, pugno por uma democracia «recta, cultivada», pela greve digna, por uma civilização que se não reduza (como na cidade de São Paulo) a três milhões de veículos diários parados nos engarrafamentos e poluindo-nos de barbárie; enfim, defendo uma «funda razão ética» na base da cultura, convicto de que ninguém se salva sozinho. E se, como digo, «Sempre o passado pergunta.», as respostas do presente são aleatórias, impreparadas, dramáticas, mesmo. A atitude nacional revia-se, ainda há pouco, no dístico: «Cá vamos, pois, seculares, / num descanso como nunca.» Ora, essa negligência só podia dar mau resultado. Peço, por isso, «Ao mar, ao mar, ser absorto!», porque devemos inventar-nos, ou naufragamos. A análise política aqui explícita toca o exaspero com o abandono de Timor-Leste pela ONU, em 1999, e retine o sarcasmo quando olho ao governo, resumindo a situação neste verso: «A maldade tornou-se nosso fado.» Se quiserem, leio as quadras iniciais: «A maldade tomou conta de nós. / Prometia baixar impostos; dar/ emprego a milhares; ser correcto; / ajudar quem precisa, e avós. // Um: enganou-nos. Dois: subiu o mar / do desespero, sem sabermos onde / trabalhar. Três: cresceu tom demagogo. / Quatro: não há futuro para netos.»
O quarto andamento mal se entrevê; mas, após tantas andanças convergindo, enfim, no díptico Pátria e Amor, torna-se cada vez mais audível uma nota de estoicismo. Lúcido, este tanto me serve na relação com os outros (venço, por exemplo, inveja ou ciúme), como quando quero apanhar um autocarro: «Tenho quanto me não desvia dessa / via doce da alma, conformada / ao hoje, bom ou mau. Não perco nada, / nem ganho amanhãs por ir depressa.»

Falemos, agora, do romance, outro regresso a casa, não do Pai, mas da Mãe.  
A Casa de Bragança é um título que serve a romance e ensaio. Bastaria, porém, o grafismo da capa ‒ onde sobressai bela fotografia do castelo, por Nuno Calvet ‒ para nos situarmos nessa cidade e sua morada primordial, sem, todavia, abandonarmos algumas propostas de ensaísmo histórico, incluindo a transcrição de documentos no tombo do Arquivo Nacional. Romance histórico? Sim ‒ mas de alcance fundamente psicológico no quadro político e social de dois períodos (entre 1344-1464 e 1964-2014) destacados do milénio da família Roĩz ou Rodrigues, seja, desde 1014. Como conciliar esses lapsos temporais?
A montagem é simples: avós nascidos em 1344 contam a neto quanto viveram até 1398, ano do seu nascimento. Ele acrescenta episódios até ao momento da escrita, em 1464, celebra Bragança o título de cidade, dado por D. Afonso V, em Ceuta, a 20 de Fevereiro. No pós-25 de Abril, parte já impressa desse texto e parte manuscrita são desviadas de certa casa por um jovem nascido em 1956, que lhes acrescenta 50 anos de vida consciente, entre 1964 e 2014, até à manhã de 20 de Fevereiro, quando reencontra a proprietária dos fólios medievais …
Diz o narrador actual, no prólogo: «Um longo parágrafo de cinco séculos vinha até 1964 – tinha eu oito anos, nada sabia de mim −, deslaçando-se em 20 de Fevereiro de 2014, cujo ponto final nem Deus conhece.» No epílogo, conta a manhã deste 20 de Fevereiro, por vir: «Inês acompanha-me à igreja de Santa Maria, ou de Nossa Senhora do Sardão, onde a cidade começou; melhor, à Domus Municipalis, onde nós começámos. […] Dona Inês de Castro aguarda, na sombra matinal do polígono. A seu lado, Clotilde tem na mão esquerda um estojo azul-escuro.» Junto daqueles monumentos, há dois começos: um, medieval, da cidade; outro, de uma paixão aos 18, em Junho de 1974. Agora, ex-jornalista de 58 anos, revê-se aos oito, 18 anos e nos últimos meses, contados na terceira parte. Dentro de instantes, o leitor vai conhecer, ao mesmo tempo que o narrador-protagonista, Inês e Clotilde, a história dos seus nascimentos; e percebemos que, intermediando esse conhecimento, está um original que ocupa as duas partes iniciais, bem como algo dentro do estojo azul-escuro. Que objecto liga a Inês de Castro de 1353 à homónima de 2014?
O miolo da história inaugura-se com o casamento de Pedro e Inês que a tradição diz ter sido na igreja de São Vicente, em cujo exterior deitando para a Rua Abílio Beça acaba de ser colocado um painel de azulejos alusivo, inscrevendo quadra castelhana tirada deste romance. A ideia do então presidente Jorge Nunes nasceu no acto do lançamento da 1.ª edição deste livro, após considerações minhas sobre a vantagem de Bragança triangular com Coimbra e Alcobaça um roteiro inesiano. Aos oito anos, o décimo Rodrigues  ‒ avô do narrador ‒ assiste à cerimónia, como, em 1964, aos oito anos, outro Rodrigues assiste à inauguração da estátua de D. Fernando, segundo duque, à entrada do castelo, enquanto observa menina da mesma idade, que segura a salva de prata onde se tem a tesoura corta-fitas.
Em casa contígua, também nascida em 1344 ‒ logo, com oito anos ‒, frente à Domus Municipalis e à branca igreja de Santa Maria, vive Inês, cuja mãe é ama de um menino aí nado em 1352. É o nosso herói, e revelação para a cidade, que ignorava tão ilustre filho. Segundo parto de Inês e Pedro, chama-se D. João de Portugal e Castro, e devera ter sido rei de Portugal. O meio-irmão mais novo, Mestre de Avis, dizia-se «regente e defensor do reino», antes de ser imposto por Nuno Álvares Pereira como D. João I; sabem poucos do respeito que este nutria pelo mais velho D. João de Portugal e Castro, figura romanesca a cuja morte sucede o nascimento do narrador Afonso Rodrigues…
Vemos, no entretempo, como a família Roĩz emparelha com os bragançãos e primeiros reis; como um nono avô, poeta, acompanha D. Dinis no recebimento de Isabel de Aragão; como um derradeiro braganção, D. Nuno Martins de Chacim ‒ de má índole e fama, sepultado no Mosteiro de Castro de Avelãs ‒, foi bisavô de Inês de Castro.
Todavia, em primeiro plano, temos a degolação desta, vida e feitos do filho João, até ao alegado assassínio da suposta mulher D. Maria Teles, que o torna foragido, com efeitos na sucessão dinástica. Os seus amigos de infância, avós do narrador ‒ por cuja casa passam D. João I e o filho ilegítimo D. Afonso (futuro primeiro duque), Nuno Álvares Pereira e Fernão Lopes ‒, são figuras grandiosas, como será, na revelação da última página, uma Inês de Castro do nosso tempo, que tudo coordena, à distância.
Na maturidade do narrador quatrocentista, passeamos pela Europa central com o infante D. Pedro, o das Sete Partidas, sofremos com o mártir de Fez, D. Fernando, assistimos ao erguer da imponente torre de menagem brigantina. É este espaço a casa? ou tão-só a Domus Municipalis, representativa do poder democrático, senão a igreja? ou um modesto rés-do-chão que as confronta, qual insígnia da linhagem dos Rodrigues?
A leitura é um entrever de sentidos, hipóteses, neblinas. Não há obras impossíveis de ler, desde que, pacientes, dominemos certos códigos ou nos esforcemos por abri-los ‒ dentro da liberdade de não as lermos. Não há castelos inexpugnáveis: um dia, entraremos neles como turistas distraídos. É essa a fortuna dos textos bem fundados, com a maquinaria oleada, em que só a por vezes custosa conquista gratifica corajosos, únicos a poderem libar a doce peçonha que é a literatura.
Ana Diogo confessou a Teresa Martins Marques, online: «Devo dizer-lhe que foi um desafio fascinante pelas vastas e profundas referências históricas que fui tentando interpretar ou decifrar – e não foi fácil, não, confesso. Mas foi uma satisfação galopante à medida que avançava nas narrativas, tão magistralmente enredadas; pasmei perante riqueza lexical e semântica de tal modo opulenta e desafiante; deliciei-me com o recurso a excertos (penso eu) de Fernão Lopes e de outros que me recordaram a beleza do Português arcaico; mantive durante muito tempo a dúvida sobre a real existência de algumas figuras, como a de D. João de Portugal e Castro. Um aprazível tormento… Em suma, a leitura foi longa e trabalhosa, sim, mas foi uma labuta deleitosa, um repto constante que me deixou presa, suspensa e enlevada até ao surpreendente final. Gostei tanto, tanto, que não tenho palavras para lhe agradecer a sugestão que em boa hora me fez.»
Deixo excerto da resposta que dei: «A sua apreciação é de uma leitora-modelo, que qualquer autor gostaria de ter: intui a dificuldade, mas, vencendo-se a si mesma, conquista, a pouco e pouco, o Evereste de veredas e sentidos.  // O meu conceito de literatura assenta num trabalho filigranado da linguagem, cujo registo se adequa aos tempos e personagens, e, nos fios do narrador medieval, é tão irónico e distanciado como, no narrador de hoje, melancólico e desencantado. // […] Cada personagem é, como o narrador-autor de si mesmo diz, o tal «castelo de enigmas, […] disposto a ser conquistado». Donde, é um luxo, ainda que em «aprazível tormento» de generosos leitores, sofrer tão desejada invasão.»
Este projecto era uma velha dívida que eu tinha para com a cidade onde, há 40 anos, estreei fato novo de poeta. No cenário de um locus amœnus assim engrandecido pela ensaiada arquitectura do verbo e pela investigação histórica, este livro sonda, em resumo, linhagens que ergueram Portugal; revê o mito de Inês e exalça um filho a conhecer melhor, na sua fácil entrega ao povo miúdo, a exemplo do pai, D. Pedro; espelha desencontros no seio da ínclita geração, que deixa morrer irmão por razões de Estado; mas, acima de tudo, no percurso do transcritor medieval e de quem, hoje, o revê, importa a demanda de uma filiação, sem a qual ruiria a casa do coração, única onde a vida se harmoniza.
Obrigado a todos.

Ernesto Rodrigues


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