Ernesto Rodrigues
Na hora em que são
editados os volumes III e IV da BdB −
Bibliografia do Distrito de Bragança
(Série Escritores – Jornalistas – Artistas), cumpre celebrar este projecto de
Hirondino da Paixão Fernandes empreendido já nos anos 60, no Mensageiro de Bragança, e que teve em
António Jorge Nunes, presidente da Câmara Municipal, o necessário apoio,
acertado e justo. Farei, antes, breve historial da dicionarística literária em
Portugal, de modo a enquadrar a BdB e
perceber a importância de iniciativa tão fecunda quão honrosa para a Cultura do
distrito.
Vidas, linhagens e
genealogias, bibliografias, catálogos e relações de livrarias ou bibliotecas, são
imprescindíveis na investigação: por mais enfadonhos, trazem sempre algo de
fresco e útil. Os tenteios inaugurais de vida
e obra vêm numa colecção manuscrita de Manuel Severim de Faria, Compendio de Varias Obras de Authores
Portugueses (1613), e na vida de Camões, por Pedro de Mariz (1613), sendo
Camões núcleo reflexivo desde Manuel de Lira (1591). Mas o século XVII – que
também é o da Imprensa periódica, cujos dicionários interessam à literatura, e
do impressionismo crítico no Hospital das
Letras (1657; editado em 1721), após duplo esforço canonizador de Jacinto
Cordeiro, Elogio de Poetas Lusitanos,
e António de Sousa de Macedo, Flores de
España..., ambos de 1631 – reserva dois monumentos singulares: a Biblioteca de João Franco Barreto =
Biblioteca / Lusitana / Autores / Portuguesez / 1.ª Parte, etc., e Joanne
[João] Soares de Brito, Theatrum
Lusitaniae Litterarium [...],
1655. A Bibliotheca… consta de
cinco volumes, e um sexto de Índices (de nomes, sobrenomes, pátrias dos
autores), no total de 1180 páginas. Se a introdução data de 27 de Janeiro de
1648, a obra estende-se para lá de 1656. Cerca de mil autores é uma soma
respeitável; este princípio de todos reunir, até os que versaram Direito Civil
e Canónico, inspirará Diogo Barbosa Machado, Inocêncio Francisco da Silva… e
Hirondino Fernandes. Outra preciosidade é o manuscrito Cathalogo dos Auctores Portugueses, de Manuel de Faria e Sousa (BN,
COD. 361). Concomitantemente, urge compulsar os índices inquisitoriais
quinhentistas e o Index Auctorum Damnatae
Memoriae (1624). No conspecto europeu, consulte-se a Bibliotheca Scriptorum Societatis Jesu […], de Pedro de Rivadeneyra, 1643.
A Bibliotheca Hispana de Nicolau António (1672; ed. aumentada,
1783-1788) inspira a Bibliotheca
Lusitana: Historica, Critica, e Cronológica [...]
(Lisboa, 4 vols.; 1741-1759; já em formato digital), que não se queda
pelo impresso em língua portuguesa, como Inocêncio, mas evita anónimos. A BdB tem anónimos e estrangeiros, se
atinentes ao distrito. Devedor de Franco Barreto, Barbosa é canibalizado por
muitos. Conviria confrontá-lo com a “Memória de alguns escritores em todas as
ciências da Companhia de Jesus”, título actualizado constante do apócrifo Cathalogos de Ministros e Memorias Varias
(manuscrito após 1754; BN, COD. 1457). Bento José de Sousa Farinha faz, em 1206
páginas e três tomos, um Summario da
Bibliotheca Luzitana (1786), despachando, no terceiro (1787), as letras
L-Z. E, oportunista, acrescenta um quarto tomo de Bibliotheca Luzitana Escolhida (1786), o que é um bom exercício de
cânone literário do tempo. Bibliotheca
Lusitana Escolhida ou Catalogo dos Escriptores Portugueses será título de
José Augusto Salgado (1841). O critério ora afina, ora relaxa. Exemplo de
solução mista, em tempo de Ilustração nascente, é o Anno Historico, / Diario Portuguez, Noticia Abreviada / De pessoas grandes, e cousas notaveis de Portugal,
[...], pelo Padre Mestre / Francisco de Santa
Maria, 1744. Os três volumes, além de efemérides, biografam vultos, na linha do
que farão os almanaques. No ano seguinte, temos o Corpus Illustrium Poetarum Lusitanorum qui Latine Scripserunt, [...] (8 tomos, 1745-1748), compilado
pelos padres António dos Reis e Manuel Monteiro.
Enquanto isso, está por estudar a faceta dicionarística de Francisco Xavier
de Oliveira, com dezenas de artigos sobre obras de portugueses em David
Clément, Bibliothèque Curieuse Historique
et Critique, ou Catalogue Raisonné des Livres Difficiles à Trouver (9
vols., 1750-1760). Deve ser confrontada com as suas Mémoires Historiques, Politiques et
Littéraires, concernant le Portugal et toutes ses dépendances, avec la
Bibliothèques des écrivains et des historiens de ces états, 2 vols., 1743. Diz-nos que o
jesuíta Francisco da Cruz deixou Memorias
Manuscritas para uma sonhada Bibliotheca
Portuguesa.
Entre outras margens de dicionarização, em Setecentos,
citemos uma Bibliotheca Portuguesa
(1736-1741) e outra Bibliotheca Lusitana,
em cinco volumes manuscritos, ambas com informação biobibliográfica de autores
portugueses remetida a D. Francisco de Almeida (1701-1745; BN: COD. 908 e COD.
909-912). O Diccionario da Lingoa
Portugueza (1793) fecha o século com um selecto cânone de autores.
De Inocêncio a Prado Coelho
O Diccionario Bibliographico
Portuguez (1858; já digitalizado) vinha sendo pedido por Cunha Rivara celebrando
Barbosa Machado, e propondo uma Bibliotheca
Portugueza n’O Panorama (X,
30-IV-1853). Aquele Diccionario… é mais
do que de Inocêncio. Continuado por Brito Aranha, Gomes de Brito, Álvaro Neves,
o tomo XXI é dedicado a Herculano (1914), no pretexto centenarial (1910); o t.
XXII (1923) fecha a série, em que só nos reencontramos se tivermos à mão João
Soares de Sousa, Índice Alfabético (1938),
ou um esforçado Ernesto Soares, Guia
Bibliográfica, correspondendo ao tomo XXIII (1972), e que fora suplemento
ao Boletim da Biblioteca da Universidade
de Coimbra, vol. XXIII, 1958. No Rio de Janeiro, Sacramento Augusto Victorino
Blake responsabilizou-se por outro Dicionário
Bibliográfico Português. Sem indicação de tomo, está Martinho da Fonseca, Aditamentos ao Dicionário Bibliográfico
Português (1927; 1972), já autor de Subsídios
para Um Diccionario de Pseudonymos, Iniciaes e Obras Anonimas de Escriptores
Portuguezes (1896; 1973), que podemos considerar o vigésimo quinto tomo de
tão magno projecto. A paginação dos dez volumes da BdB não se ficará, todavia, atrás.
Vinte anos depois do
primeiro Inocêncio, Ricardo Pinto de Mattos (que assinara Bibliographia Historica Portuguesa, 1850) traz precisões no Manual Bibliographico Portuguez de Livros
Raros, Classicos e Curiosos (1878), revisto e prefaciado por Camilo Castelo
Branco. Do estrangeiro, interessam-nos: Augustin et Aloïs de Backer, Bibliothèque des Écrivains de la Compagnie
de Jésus, ou Notices Bibliographiques [...], 7 vols., 1853-1861; o médico
setubalense Domingo García Peres, Catálogo
Razonado Biográfico e Bibliográfico de los Autores Portugueses Que Escribieron
en Castellano, 1890; Meyer Kayserling, Biblioteca
Española-Portuguesa-Judaica. Dictionnaire bibliographique des auteurs juifs, de leurs ouvrages espagnols
et portugais et des ouvres sur et contre les juifs..., 1890. Tirante isto, há o conceito de
notabilidade, em que todos se misturam, seja no Álbum das Glórias de Rafael Bordalo Pinheiro, na Revista Contemporânea de Portugal e Brasil
(1859-1865), nas necrologias do Novo
Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro, em inaugurada biografia
herculaniana de Júlio César Machado, “Notas para um dicionário dos portugueses
notáveis do meu tempo”, A Illustração.
Revista de Portugal e do Brazil (ano 5, v. 5, n.º 4, 20-II-1888). Desactualizados
estão a Portuguese Bibliography (1922),
de Aubrey Bell, e o Dicionário Universal
de Literatura: Bio-Bibliográfico e Cronológico (1934, 1940), de Henrique
Perdigão.
Ora, em 1 de Março de
1956, no suplemento ‘Artes e Letras’ do Diário
de Notícias, Jacinto do Prado Coelho anunciava o Dicionário das Literaturas Portuguesa, Galega e Brasileira, cujo
primeiro fascículo saiu em Agosto de 1956. Em Outubro de 1960, a Livraria
Figueirinhas resumia tudo a um só volume, a duas colunas, páginas 3-880, com Addenda
e corrigenda, Índice de nomes de autores, Índice de títulos de obras e revistas,
Errata, até à p. 1021. A 2.ª edição atenta mais à literatura brasileira e à
estilística: torna-se Dicionário das
Literaturas Portuguesa, Brasileira, Galega e Estilística Literária, Temos
dois volumes (A-M, 1969, 686 páginas; N-Z, 1971; total: 1527 páginas) a três
colunas, ilustrações, e uma 3.ª edição em três (1976) e cinco volumes (1973),
da qual decorre, nos anos 80 e 90, alegada 4.ª edição (desde 1992), e que, na
prática, significa uma vintena de reimpressões. O texto de 1969-1971 mantém-se
incólume até 2002-2003, quando, apoiado em Pires Laranjeira e José Viale
Moutinho, coordenei três volumes de Actualização.
Posso afirmar que conheço os agora oito volumes como as minhas mãos. Em 29 de
Março de 1984, eu inserira no Diário de
Lisboa o artigo “Um dicionário vergonhoso de Literatura Portuguesa”,
vergastando um Dicionário de Literatura
Portuguesa, sem data (1983?), e sem indicação de editor, de um certo José
Correia do Souto, plagiando regularmente J. do Prado Coelho... Releve-se, nos 800
novos artigos para 958 páginas, a fecundidade das bibliografias – em que só a BdB o ultrapassa –, não raro mais
extensas que o verbete.
A variedade contida no Dicionário de
Literatura animou projectos afins ou de aprofundamento parcelar. Prometia
muito o Grande Dicionário da Literatura
Portuguesa e de Teoria Literária, I, 1977 (iniciou o 2.º vol., de que
restaram fascículos soltos), dirigido por João José Cochofel. Tal promessa foi
satisfatoriamente cumprida pela Biblos.
Enciclopédia Verbo das Literaturas de Língua Portuguesa (5 vols.,
1995-2005). Concretizou-se num volume o Dicionário
de Literatura Portuguesa (1996; dir. de Álvaro Manuel Machado), pensado em
termos só de autores, enquanto o Dicionário
Cronológico de Autores Portugueses (6 vols., 1985-2001), pela informação
quase exaustiva sobre nomes, é um manancial, mas sem particulares juízos
críticos, nem orientações bibliográficas. O seu índice de pseudónimos deve ser
complementado por Adriano Guerra Andrade, Dicionário
de Pseudónimos e Iniciais de Escritores Portugueses (1999). Projectos
internacionais não devem passar despercebidos (caso do Dicionário Biográfico Universal de Autores, 5 vols., 1966-1982);
outros são inúteis, ou pouco menos (Fernanda Frazão, Maria Filomena Boavida, Pequeno Dicionário de Autores de Língua
Portuguesa, 1983; O Dicionário /
Literatura Portuguesa, vendido com o diário Público, 2004; Célia Vieira e Isabel Rio Novo, Literatura Portuguesa no Mundo. Dicionário
Ilustrado, 2005, 12 vols.).
Por períodos ou movimentos, saudemos: Dicionário
de Literatura Medieval Galega e Portuguesa (dir. de Giulia Lanciani e G.
Tavani, 1993); Dicionário da Arte Barroca
em Portugal (dir. de José Fernandes Pereira e Paulo Pereira, 1989); Dicionário do Romantismo Literário Português
(coord. por Helena Carvalhão Buescu, 1997). Em nome próprio, o Dicionário de Eça de Queiroz (1988; 1993),
organizado por A. Campos Matos, exigiu Suplemento
(2000); o Dicionário de Camilo Castelo
Branco (1989), testamento de Alexandre Cabral, saiu actualizado em 2003;
qual díptico, chegou o Dicionário de
Personagens da Novela Camiliana (dir. de Maria de Lourdes A. Ferraz, 2002).
Cidades, distritos, regiões e antigas possessões não se lamentem. Ficam
exemplos, desde o fim do Antigo Regime, todos muito aquém da BdB, ainda que olhando somente ao
critério literário: Francisco de Carvalho, Historia
de Coimbra..., BN, COD. 905; Agostinho Tinoco, Dicionário dos Autores do Distrito de Leiria, 1979; João Afonso, Bibliografia Geral dos Açores. Sequência
Açoriana do Dicionário Bibliográfico Português, 3 vols., 1985-1997; Padre
Fernando Augusto da Silva e Carlos Azevedo de Meneses, Elucidário Madeirense, 3 vols., 1940-1946; fac-símile, 1998; Luiz
Peter Clode, Registo Bio-Bibliográfico de
Madeirenses. Sécs. XIX e XX, s. d.; Aleixo Manuel da Costa, Dicionário de Literatura Goesa, 3 vols.,
1997. Do claustro saem inúmeros: baste Francisco Álvares Loureiro da Silva, Bibliografia dos Autores Trinitários
Portugueses, 1996. As mulheres conquistam o seu Dicionário no Feminino (Séculos XIX-XX; dir. de Zília Osório de
Castro, João Esteves, 2005). As crianças têm António
Garcia Barreto, Dicionário da Literatura
Infantil Portuguesa, 2002.
Entre profissões, destaquem-se militares, juristas e médicos: Francisco
Augusto Martins de Carvalho, Diccionario Bibliographico
Militar Portuguez, 1891; Eduardo Alves de Sá, Bibliographia Juridica Portugalensis, 1898, precedido de Ignacio da
Costa Quintela, Bibliotheca
Jurisconsultorum Lusitanorum, 1790, e do Demetrio Moderno ou Bibliographo Juridico Portuguez..., 1781, de
António Barnabé de E. Barreto de Aragão; Gracinda Pais Brígida, Escritores Médicos Portugueses na Segunda
Metade do Séc. XIX, 1948; Armando Moreno, Médicos Escritores Portugueses, 1990.
Pouco adiantaremos ao olhar para enciclopédias e dicionários estrangeiros
que inscrevam os nossos autores; mas notem-se os brasileiros Celso Pedro Luft, Dicionário de Literatura Portuguêsa e Brasileira,
1967, e Massaud Moisés, org., Pequeno
Dicionário de Literatura Portuguesa, 1981. No campo da teoria, importam alguns
dicionários de termos literários
(Harry Shaw, Massaud Moisés, António Moniz / Olegário Paz) ou o Dicionário de Narratologia, de Carlos
Reis / Ana Cristina Macário Lopes, 1987.
Fonte de criação
Seria possível conjugar a
diversidade de intenções acima resumida? Hirondino Fernandes disse que sim.
Por ordem de apelido,
inclusive em pseudónimos e iniciais, aos nomes sucede indicação de lugar e data
de nascimento e morte, se possíveis. As biografias são desiguais, quer em
espaço, quer em método, mas suficientes. A riqueza está na bibliografia activa
(manuscrita, dactilografada, mimeografada, impressa), por anos, e excertos
úteis, nos títulos menos acessíveis. Intercalam remissões e fecha uma não raro
extensa bibliografia passiva − acompanhada de eventuais ‘ecos da Imprensa’ −,
só parcialmente referenciada no limiar do vol. I, onde seguem centenas de
publicações periódicas consultadas. Nomes com parte de leão temos o Abade de Baçal
(I, p. 341-350) ou Trindade Coelho (II, p. 429-706), aliás, inseridos em
edições comemorativas.
Considere-se, entretanto,
maioria de impressos, seja qual for o suporte, a extensão e qualidade. O senão
de rastrear mero artigo de jornal, nem sempre de fácil atribuição, é que o
autor pode não rever-se num passado que deseja rasurar. São mais aceitáveis, em
termos de bibliografia activa, a revista e livro (e, mesmo, o recurso ao online), mas o efeito de desentranhar
páginas inesperadas, que escapam aos autores, é prova de uma dedicação que
nunca louvaremos assaz.
Com menos relevo, mas
decisão fundada, estão os não naturais, cujos títulos respeitam ao distrito. É
um olhar de fora, geralmente empático, que mostra interlocutores insuspeitados,
para lá das fronteiras regionais, nacionais, linguísticas. Ver e ser visto
torna-se, assim, mais fácil.
Se perde, em relação a
Inocêncio ou Prado Coelho, na injustificada inclusão de brasileiros e galegos,
embora alguns compareçam, por outras razões, a todos os dicionários sobreleva
esta BdB, e não só em número de
páginas: de escopo distrital, vai para lá deste chão, conjugando vocações,
actividades, profissões, desde o título ou apelidos mais antigos, longe de
serem todos forçosamente ilustres
(muitos destes estão ausentes, por não entrarem na série). O critério editorial não-selectivo deixa entrever
as principais dificuldades: uniformização, em tempo útil, de dados biográficos
(ora com datas precisas, ora só os anos, por exemplo), várias interrogações,
sobretudo, nos corpora
bibliográficos. Mas só quem não investiga neste país desconhece as dificuldades.
Conjugando Barreto,
Barbosa Machado e Inocêncio (na esperança de que o décimo volume, de índices,
esclareça os caminhos), estamos em condições, agora, de ler o distrito em
títulos, temas, conceitos, épocas, potencialidades, que entreabria Prado Coelho.
Sendo a melhor fonte de um passado que ainda mal se conhece, com ganhos para
estudiosos, que não terão pequenas surpresas, a inclusão dos mais novos ou de
quem pratica as nossas especialidades ajuda-nos num acompanhamento próximo
imediato. Já tínhamos as Memórias
Arqueológico-Históricas… baçalianas; com a BdB, temos o segundo monumento cultural da nossa terra.