A Intriga, desta novela, desenrola-se numa vila do Nordeste Transmontano, denominada Vilancete, região que Miguel Torga batizou de “Reino Maravilhoso” e local que nós hoje temos o privilégio de habitar. A obra relata as vivências e as peripécias do protagonista, José Bernardo, um engenheiro reformado que regressa da cidade para, pensava ele, desfrutar da sua reforma com placidez, esperançado no conforto e proteção da casa e propriedade familiar, que anos antes o vira nascer.
Mas como é frequente dizer-se, de boas intenções está o inferno cheio. E, sem contar, o protagonista vê-se envolvido em acontecimentos que o arrastam para outros locais. Por conseguinte, a ação é levada para outros espaços: Porto, Lisboa, Madrid, Brasil e Suíça, por onde o protagonista deambula com o intuito de ordenar o caos provocado pelas outras personagens que de uma ou de outra forma a ele se encontram ligados numa teia bem urdida que o narrador nos vai desvendando com mestria e concisão, prendendo, deste modo, o leitor ao texto.
A obra apresenta um número reduzido de personagens onde, salvo raras exceções, quem dita o devir da ação é a personagem feminina. Este facto traz à nossa memória as antigas sociedades matriarcais. Assim, no livro, é a mulher, ou melhor, pela mulher que o protagonista se bate, qual Dom Quixote sempre pronto a socorrer a sua Dulcineia e, por conseguinte, a repor a justiça ou a colocar em ordem o caos que se havia instalado.
Passo, sucintamente, a mencionar algumas das personagens pelo seu revelo. Desde logo, o amigo de infância, Alexandre Manuel, que desempenha as funções de confidente. De seguida, a neta do protagonista, Constança que, de certa forma, podemos considerar uma personagem tipo, visto que representa todas as mulheres que são vítimas de violência doméstica e que dificilmente se conseguem livrar das garras dos agressores sem a ajuda de terceiros. Abro aqui um parêntese para recordar, não sem mágoa e tristeza, que este flagelo está, infelizmente, a aumentar em Portugal, como constantemente vemos noticiado na comunicação social. Estou em crer que nem outra foi a intenção do autor, a não ser condenar, de forma veemente, este “crime” e levar o leitor a refletir na humilhação a que alguns seres humanos estão sujeitos. Por outro lado, Alexandre Manuel, em minha opinião, representa o amigo genuíno, sincero e o companheiro de todas as horas, sempre pronto a ouvir, a ajudar e a aconselhar José Bernardo.
Fecho o parêntese, apresentado a personagem Dirce, uma brasileira, não cheia de encantos e deslumbres, mas antes pelo contrário plena de malícia e crueldade. Parece-me que, à semelhança de Constança, Dirce representa todas as mulheres oportunistas e sem escrúpulos que não olham a meios para atingirem os fins, mesmo que isso implique acabar com outro casamento e cometer, em desespero de causa, o próprio suicídio. Por último, apresento a personagem Joana Ludovina, que dá título à obra, e que por antonomásia representa todas as mulheres altruístas e filantropas que dão a sua vida e o melhor de si em prol dos outros, mais necessitados. Nesse sentido, esta personagem é mais quimérica do que real, sendo, também, aquela que apresenta uma maior densidade psicológica. Esta personagem, sobretudo no fim da narrativa, quando o leitor tem acesso à sua história de vida, faz-nos pensar que ainda é possível, neste mundo cruel e desumano, encontrar anjos da guarda que “abdicam” da sua vida para dar rumo e sentido à vida dos outros.
Para além das temáticas já mencionadas acima, também são afloradas na obra as seguintes: a emigração tanto a primeira leva provocada pela miséria e pela fome que grassavam em Portugal nas décadas de cinquenta e sessenta do século passado, representada no texto pela personagem Luciana, como pela emigração atual incentivada pela falta de emprego e oportunidades, empurrando os nossos melhores jovens para fora do país, situação que o autor relata de forma corrosiva. O tema da caça, associada ao passatempo, ao prazer e ao companheirismo, também se encontra patente na obra. Outra realidade que a obra atesta é a imigração de pessoas dos países de leste que encontram em Portugal e, mais concretamente, no Nordeste Transmontano, trabalho e acolhimento. Esta situação é documentada na obra pelo casal Vladimir e esposa. A derradeira temática, mas nem por isso menos relevante, que encontramos no final da narrativa, em jeito de remissão definitiva, está relacionada, ainda, com a Guerra Colonial, que deixou um património impalpável, mas perdurável de traumas e distúrbios de índole psíquica num grande número de soldados, como um vasto filão literário tem vindo a corroborar. Estes combatentes encontram-se personificados, nesta narrativa, pelo engenheiro e protagonista José Eduardo.
Para além destes motivos de reflexão que, como vimos, a obra proporciona, o autor usa e abusa da ironia e do sarcasmo nas várias passagens do texto em que reflete sobre a dura situação económica e social que vem assolando Portugal. O autor chega ao ponto de nomear os agentes políticos responsáveis pela situação a que o país chegou. Estas personalidades, ironia do destino, continuam impunes e indiferentes ao sofrimento e à miséria da população, aumentando, este facto, a indignação do autor.
A obra é, ainda, enriquecida pelas referências literárias que convoca e sua pertinência, permitindo fazer inferências com o que está a ser narrado.
Concluo, asseverando que a leitura de “As Divinas Nádegas de Joana Ludovina”, de Fernando Mascarenhas, é aprazível e cativa, pelo tom coloquial, pelo vocabulário acessível e referencial, pelas temáticas escalpelizadas e pelo enredo, o leitor que facilmente se identifica com algumas das personagens do livro.
Norberto Veiga